DISSERTAÇÃO DE
MESTRADO DE ÂNGELO TORRES – NA CADEIRA DE FILOSOFIA DA UERJ – 1990
A
CHAVE DO LÉXICO DE AUGUSTO COMTE (Ângelo Torres)..
INTRODUÇÃO
A extensa
obra de Augusto Comte apresenta duas partes, uma abstrata e outra aplicada. A primeira parte é preparatória, como
fundamento da segunda, a Ciência
Política, verdadeiro e importante objetivo final de seu plano de
trabalho. Essa segunda parte, voltada
para aplicação, deveria indicar em pormenor a necessidade e as condições de um regime de governo e de uma filosofia política para a reforma
da sociedade humana na modernidade, através do consenso filosófico.
O
coroamento político da filosofia enciclopédica de Comte, sob a forma de um
governo presidencialista, foi
implantado no Brasil, a partir de 1891, já no regime republicano, no estado
do Rio Grande do Sul, por longos 40 anos, o que constitui uma experiência
política única no mundo. Até mesmo
a liberdade profissional completa
foi implantada, como uma das muitas formas de libertação recomendadas pelo
filósofo, livrando o estado sulino dos diplomas oficiais e de seus privilégios,
considerados como um dos muitos modos da iníqua espoliação feita pelos
poderosos contra a classe trabalhadora e contra a sociedade em geral.
Foi
realizada, também sob a aprovação eleitoral, dentro do princípio
presidencialista, a elaboração das leis pelo executivo, sem assembléia parlamentar, pela consulta obrigatória e
transparente diretamente ao povo, por longo período, nos meios de comunicação.
A corrupção política imputada ao parlamentarismo foi assim afastada. Mas essa mudança sofreu naturais protestos
dos numerosos beneficiários de privilégios extintos, às vezes mesmo por
violentos e sangrentos atos pouco democráticos, por meio da agressão da revolta
armada, por duas vezes mal-sucedida. No
âmbito do governo federal da nova república brasileira também instituições
recomendadas por Augusto Comte foram implantadas, entre
elas a
importante liberdade religiosa completa.[1]
Tanto o
regime político do Estado do Rio Grande do Sul, como as instituições do governo
federal, orientados pela doutrina sociológica comtiana estão até hoje em
debate, sob as mais duras críticas.
Para alguns, essa influência foi de caráter progressista, para outros,
foi uma orientação maléfica, sendo que há quem discuta até se houve ou não
houve a república... A participação nesse debate, impossível de
ser feita nesta dissertação, exige, no entanto, o estudo e o conhecimento da
complexa e extensa obra de Augusto Comte.
Sem esse saber, será impossível identificar quais ações teriam sido
criação de políticos locais ou tenham sido aplicações práticas de pormenorizadas recomendações de Ciência Política,
plenamente pensadas e redigidas em Paris, no bureau do filósofo do positivismo. É um caso de ação da cultura francesa
à distância, em que se veria o intenso brilho de Paris, como capital da
cultura humana, atravessando o
Atlântico, até alcançar o Brasil.[2]
Seria de
interesse pesquisar como jovens brasileiros terão chegado a ler a difícil obra
filosófica e política de Comte, como interpretaram-na e como chegaram a
aplicá-la à praxis, no momento
mesmo da grande transformação política da monarquia para a república.
Para a
glória da filosofia moderna esse fato constitui até um generoso exemplo de como
a teoria filosófica universal de um puro pensador pode modificar
distintamente, a longa distância, após muito tempo, pela via racional, a vida
política de um país e, também, mesmo, a vida de vários deles. E como, pelo contrário, a resistente reação
conservadora e retrógrada impediu, tenazmente, na Europa, a quebra de
privilégios e a derribada de mitos e superstições.
Para
elaborar a base abstrata da técnica
política, capaz de lhe dar a certeza científica da previsão, pretendeu
Comte desenvolver uma ciência preditiva da sociedade, a sociologia. Para começar essa pesquisa, fez o filósofo
uma avaliação dos progressos científicos até sua época, procurando tirar dos
primeiros e rudimentares progressos das ciências então conhecidas a metodologia científica e sociológica,
de que resultou uma filosofia, no Cours de Philosophie Positive. Seria obter a
revolucinária filosofia demonstrável e discutível, a partir da ciência. Seria, em caso de sucesso do pensador, a
filosofia de caráter necessário para
a vida na modernidade.
O Cours de Philosophie seria a partida
para a grande mudança na cultura humana, com a pretensão de ser a
maior revolução filosófica em toda a história social da humanidade. Consistiria em procurar o saber firme,
seguro, posto rigorosamente sobre a base sólida do saber de observação, por meio de uma indução cognitiva haurida no
conteúdo e na evolução do método científico.
A revolução compreenderia uma rejeição radical, rigorosa da
“filosofia” tradicional fundada
na intuição não-sensorial, a partir do a-priori do teísmo ou da
metafísica ontológica. Porque só assim
seria obtido o saber cartesiano claro e
distinto, resistente à ação corrosiva da dúvida sistemática, capaz de
realizar previsões certas e úteis, dentro da desejável precisão possível.
A pretensão
do pensador foi, apoiado nessa pesquisa, a de elaborar uma sociologia abstrata,
na busca de leis infalíveis no âmbito dos fenômenos sociais, e não das “coisas” ou do ser, sempre para guiar, pela previsão, a ação
política. Uma ciência que
não poderia ser somente uma simples e empírica descrição sistemática dos
fatos sociais em sua concretude. Deveria
ser capaz de prever o regime político a ser
estabelecido pelos politólogos na práxis.
O que só poderia ser realizado pela determinação
segura do saber científico. A
leitura cuidadosa do texto de Augusto Comte indica que teria ele comprovado ser
condição necessária, cientificamente estabelecida, para o governo, a mais ampla
liberdade
dos humanos. E teria sido
por uma extensa indução histórica que Augusto Comte se tornaria candidato
a fundador da sociologia e primeiro
dos sociólogos, na pretensão de
determinar a estrutura e o desenvolvimento da sociedade, por meio do que chamou
o método da filiação histórica. A
primeira versão da sociologia comtiana ocupa o quarto, o quinto e o sexto
volumes do Cours de Philosophie, sua
obra “fundamental”. Mas a sua composição
“principal”, com a versão completa da sociologia
abstrata seria mostrada no Système de Politique Positive, do primeiro
ao terceiro volume. Essa nova ciência
constituiria a base do ambiciosamente abrangente sistema gnosiológico da original, complexa, incompreendida e enciclopédica filosofia de Augusto
Comte. Será, de fato, essa a
filosofia enciclopédica da liberdade?
Notar com
atenção que este trabalho de dissertação não pretende fazer a crítica e
avaliação da obra do filósofo, para atestar a validade de sua filosofia ou a
sinceridade de seu liberalismo, se ele existir.
Apenas cabe aqui explicitar suas intenções e auxiliar a compreensão de
sua comunicação, deixando para outros mais capazes em outra ocasião essa tarefa
maior.
Nos quatro
volumes do Système de Politique
Augusto Comte é que proporia a separação da
psicologia da sociologia,
até esse texto apresentadas em conjunto, sem identificação distinta. A partir do segundo volume da Política,
considerou ele a PSICOLOGIA autônoma, como ciência abstrata independente. Denominou-a de “MORAL TEÓRICA”, para que não fosse confundida com a psicologia de seu tempo, que procurava
estudar a “alma” humana, tida como uma inacessível entidade metafísica, a ser
estudada por meio da introspecção. Comte
afirmou ser impossível e inexistente essa
antiga psicologia. Mas o novo apelido
de “Moral” para a ciência do comportamento humano
individual, para a psicologia, confunde a nova disciplina com uma vaga
normatização ética, dificultando o seu reconhecimento como ciência, e constituindo um obstáculo invencível para identificar a moderna
psicologia de Comte como ciência de previsão. Contém essa elaboração do filósofo uma teoria científica da cognição. Aí é elaborado o estudo pormenorizado das funções
cerebrais elementares simples, que constituem os três grandes setores
psicológicos das funções afetivas, da capacidade intelectual e da preparação
mental da atividade. Goblot, severo
crítico, afirma ser Augusto Comte merecedor de estar entre os
grandes mestres do pensamento humano,
lamentando que sua psicologia tenha ficado ocultada até ser reencontrada pelos estudos contemporâneos. Em outras palavras, alguma razão fez esconder a criação da nova psicologia
: sua leitura no Système de Politique ficou desconhecida, em contraste com a grande
divulgação do Cours de Philosophie
Positive. A psicologia comtiana pretenderia, como toda ciência positiva, obter
a previsão por meio das leis, no caso as leis que regessem o comportamento
humano: não deveria ser essa psicologia
somente uma disciplina descritiva, obtida apenas por uma rústica e empírica pesquisa
concreta.[3]
A obra de
Comte, em sua elaborada formação abstrata,
pretende mostrar-se, portanto, primeiro como uma filosofia, para então elaborar uma sociologia e depois, mais tardiamente, uma psicologia. A ciência política, voltada para a práxis, viria a apoiar-se nessa preparação
teórica. Mas, tanto a teoria como
a prática, teriam o caráter de previsibilidade. Seria, portanto, uma nova forma de filosofia, enciclopédica, lógica,
discutível, aberta, mas voltada para a ação efetiva, para resultados bem
definidos e seguros de previsão. A
filosofia de Augusto Comte pretenderia ser
a filosofia da previsão científica
e da ação, consistindo, primeiro, de uma extensa preparação abstrata, e,
depois, de uma aplicação prática,
para ação imediata, que vale tanto para a política, para a arte, para a
educação e para a ética, para a política, para a atividade produtiva e para a
técnica em todas as suas especializações.
Perguntar-se-á --- um plano tão vasto, terá sido bem sucedido ?
Certo é que um plano como esse, terá, correspondendo à sua grandeza e
complexidade, uma vastíssima dificuldade de comunicação. Será, talvez, devido à chocante
originalidade e grandiosidade dessa obra filosófica, que Stuart Mill afirma ser
Augusto Comte tão grande como
Descartes e Leibniz, apenas
sendo mais extravagante.[4]
Serão esses
atributos extremados que farão, do filósofo, um pensador muito odiado por
alguns e por outros até adorado, religiosamente adorado, posto em altares. De uma forma ou de outra, fora do comum, seja
para o bem, seja para o mal. Será um
mito, uma figura humana de características extremas, inesquecível, admirável,
irremovível da memória filosófica universal.
A CIÊNCIA
POLÍTICA de Comte, como aplicação prática de sua obra abstrata, está posta em pormenor no
quarto volume do Système de Politique. Mas essa elaboração, que poderá ser considerada como um monumento
erguido à realização da liberdade na práxis
ou da efetivação da mais rígida ditadura tirânica, apresenta-se travestido por
uma linguagem aparentemente mística,
quase completamente ilegível, tanto para os revolucionários como para os
conservadores. Decerto esse tratado de politologia poderia ser lido e teria mais repercussão se
fora editado em separado e sem a dificuldade da
forma de seu léxico característico. Caracteriza essa Ciência Política a pretensão
de opor uma interdição rigorosa do comando das opiniões pelo poder político
material, obrigando-o a manter as mais amplas liberdades, como a de
imprensa, de ensino, a liberdade profissional e religiosa. O poder político ficaria subordinado ainda
ao controle, julgamento e às penalidades severas de atribuição do poder
autônomo de uma assembléia orçamentária independente e eleita por meio do sufrágio democrático direto. O poder político normativo do governo ficaria
reduzido, então, ao Estado mínimo, de custo reduzido, apenas no controle das
coisas materiais, do prosáico, livre da prepotência e do privilégio dos nobres,
dos teóricos, dos religiosos oficializados e dos demais privilegiados. E seria assim que, modernamente,
esperaríamos que deve acontecer numa república
democrática.
Ao
completar seu plano de trabalho, já na maturidade, o filósofo teria completado
a elaboração de sua proposta de um sistema enciclopédico, tanto do conhecimento abstrato como da sua
aplicação política na práxis, sistema filosófico que se
poderia chamar de uma gnosiologia
positiva, uma teoria geral do
conhecimento humano. O atributo de
positividade indicaria, de forma concisa, ser essa gnosiologia dotada de
reprodutibilidade verificável, de previsão e de certeza. E não uma doutrina apenas de descrição
empírica, concreta e especializada. Mas deveria ter valor de
intersubjetividade, capaz de harmonizar os humanos num consenso necessário à sua liberdade e à sua felicidade. O que levaria essa nova gnosiologia a
possuir o atributo identificado por Comte de organicidade. Esse atributo
teria sido obtido sempre, em todas as civilizações anteriores, por meio de cada gnosiologia da época, ou,
vale dizer, por meio de cada sistema filosófico, ou, o que seria o mesmo, através de cada sistema “religioso”. Assim teria sido produzida, durante toda a
evolução social, e cada vez mais aprimoradamente, a coesão, pelo consenso, em liberdade, do grupo
e do indivíduo em torno dos valores
tornados comuns a todos. Esse pensador teria visto, acertadamente ou
não, na história, o evolver da harmonia, da coesão, dos seres
humanos em sociedade, ao contrário de outros, que ali viram o conflito,
a luta, a revolta.
Comentadores
contemporâneos notam, porém, que Augusto Comte não é lido. Apesar de seus textos não serem
compulsados por uma leitura atenta,
seu nome não perde uma atração permanente, como afirma
Arbousse-Bastide: essa seria uma
característica do filósofo-mito, desconhecido, ilegível, incrível, mas
inevitável. É caso único na filosofia francesa:
--- a nenhum outro pensador cabendo esse prêmio --- ou esse castigo. Durkheim fez uma sociologia para opor-se à de
Comte, mas Lévy-Bruhl, no entanto, continuou o trajeto iniciado por ele, na
visão de Arbousse-Bastide.[5]
Sua
proposta de psicologia chegou mais
recentemente aos laboratórios avançados da Europa. Hoje, essa proposta psicológica é estudada
com seriedade, como uma teoria básica para o estudo da psique e da cognição, como teoria sistêmica, teoria ainda
não plenamente desenvolvida, em nossos dias, apesar dos enormes avanços nos
equipamentos da engenharia médica e da pesquisa empírica. Grande parte de suas hipóteses sobre as
funções do cérebro e de sua localização teriam sido confirmadas pelas pesquisas
da neurofisiologia moderna.[6]
A Ciência Política desenvolvida por Augusto Comte foi aplicada
por longo tempo no Brasil, e também no México, no Chile, na Argentina e em
outros países. Seus resultados, porém,
só podem ser avaliados corretamente em comparação com o texto original,
complexo, exuberante e de difícil leitura.
A liberdade religiosa que o filósofo recomenda e que no Brasil separou a
Igreja Católica do Estado, contra a vontade de seu clero, trouxe benefícios de monta ao catolicismo
brasileiro, como afirma Amoroso Lima, livrando-o do padroado, dos sacerdotes
pagos pelos cofres públicos e subservientes ao governo político. O altar era então sustentado e
voluntariamente subordinado ao poder
político nacional, mansamente desligando-se do poder papal, como ocorreu em
todos os países do ocidente, com o fim do poder filosófico e moral do papado a
partir do século XIV.[7]
O conhecido
dicionarista Littré acusa em Comte uma escrita prolixa, as frases
por demais longas, o estilo pesado, as repetições, os epítetos
superabundantes. Mas curiosamente afirma
que esse estilo, com sua originalidade, com seu vigor bem filosófico, apresenta um certo “charme”, um certo encanto, apesar de seu pedantismo. Longchampt, dileto discípulo, diz que Comte
escreve como se pensasse em voz alta, sem cogitar do leitor; resultando sempre
numa espécie de confissão intelectual
do que de num tratado. Suas obras, diz Longchampt, serão só
acessíveis a um pequeno número de
espíritos de elite. Para o padre
Gruber é necessário uma comprovada paciência para mergulhar nesse “oceano de
palavras”, para abordar suas lições de filosofia que contam sempre de cem a
trezentas páginas. Gruber que qualificou
tais doutrinas como falsas, comparáveis à revolta de Lúcifer, ao tentar explicar
o mundo em outras bases que as fundadas na essência mesma do ser. Serão essas grandes virtudes ou os mortais
pecados da obra de Comte, ao lado das dificuldades semânticas, que nos cabe
explicitar, sempre pesquisando sua obra, mas sem ter ocasião, aqui, de
avaliá-la.[8]
O trabalho
de dissertação aqui proposto nasceu da verificação, tanto na bibliografia
brasileira como na estrangeira, de numerosos e freqüentes casos de distorções grosseiras feitas no texto
de Augusto Comte. Esses erros são
amplificados e difundidos por publicações baseadas em fontes de segunda mão e
pelo próprio ensino, como se fossem verdades definitivas, em forma
quase sempre adversa, em processo seriamente acusatório, para demérito
do filósofo. O efeito dessas distorções
é deletério por transferir o debate para teses errôneas, atribuídas falsamente
a Comte. Ao mesmo tempo, evita que
originais doutrinas comtianas sejam conhecidas e postas em discussão, com o
mesmo efeito perverso de uma censura obscurantista, obstruindo o caminho
do estudo filosófico.
O tema
desta dissertação será a identificação das dificuldades de leitura da obra do
filósofo e a procurar-lhe as origens. O
problema posto será o de identificar esses enganos e propor meios efetivos para
evitar e para corrigir os seus efeitos nocivos.
Enganos esses que tornam renomados autores responsáveis por ridículas e
indefensáveis erros, falsificações e fraudes, transformando suas pesquisas em
lamentáveis obras de qualidade inferior, atestando uma leitura insuficiente e
um raciocínio incompleto.[9]
A
metodologia a ser empregada nessa difícil tarefa consistirá na análise dos
textos originais, com sua comparação em alguns comentadores, e. em especial,
com sua tradução para a língua inglesa.
Os tradutores ingleses explicitaram em muitas passagens obscuras o texto
original, oferecendo ainda uma indexação
temática muito conveniente para a pesquisa. Por isso muitos dos textos de Comte a serem
analisados deverão ser citados, quer no original francês, quer em sua versão em
inglês e não em sua tradução em português.
O estudo
será realizado sobretudo no Cours de
Philosophie e no Système de
Politique, e, em outras obras de Comte, relacionadas com o tema. A pesquisa não poderá abarcar todos os textos
nem todos os conceitos do autor, dando ênfase apenas aos casos mais freqüentes e mais importantes
de afastamento interpretativo com viéses sérios e, por vezes, em oposição direta ao pensamento original
do filósofo.
Fica
impossível, além de estudar a criptografia da obra de Augusto Comte, elaborar
também a sua crítica e a avaliação, o que exigiria um estudo de enorme extensão
e dificuldade. Procura-se aqui, apenas,
deixar mais claro e distinto o pensamento do autor, possibilitando, então, um
posterior estudo e debate.
A simples
recuperação, nesta dissertação, do significado original no texto de Comte pode
parecer um grande e constante elogio do filósofo. Mas tal não se dá; a falsa impressão
apologética decorrendo apenas da injusta,
imensa e constante deturpação de sua
obra, propalada essa distorção e a maledicência reacionária por meio do
ensino e posta na bibliografia corrente, como verdade incontestável. No caso, o ato de fazer justiça ao recuperar a verdade falseada, não poderá
ser qualificado como um ato de favorecimento.
É, sim, um motivo sério para lamentar o engano cometido por
pesquisadores de valor, mas com base em leituras falseadas de segunda mão,
incompletas, geradas na dificuldade de consulta e de compreensão do texto
original. Essa será, talvez, uma
oportunidade em que poderemos colaborar com nossos modestos recursos para a salvação
da verdade e da justiça.
O trabalho
será apresentado, no capítulo primeiro, pela definição de criptografia e sua
identificação nos problemas semânticos do texto comtiano, mostrando apenas alguns
exemplos característicos.
O segundo
capítulo estudará as mais importantes formas de criptografia no texto abstrato do autor. São extremamente numerosas e sérias as
distorções registradas nesse nível em sua filosofia,
em sociologia e em psicologia.
A criptografia
notada na aplicação política da
teoria comtiana abstrata é analisada no terceiro capítulo, em seus casos mais
importantes. Aqui os desvios semânticos são ainda mais sérios, desde que a
Ciência Política de Comte ameaça a posição privilegiada das classes
dominantes. Todo o corporativismo
político parlamentar, junto com o que restou da nobreza, da realeza e do clero
medieval percebe o perigo de uma democracia republicana presidencialista
radical, com a desregulamentação geral do Estado. Todo esse contingente de ilustres e, por
vezes, poderosos privilegiados, promove, com muita razão, uma avaliação
correspondentemente depreciativa de toda a obra comtiana, dificultando sua
divulgação e, se possível, impedindo-a.
Em
complemento ao texto, coloca-se, em anexo, um glossário resumido do léxico
específico do autor, para servir como chave da decifração de sua obra.
Ao final
desta dissertação espera-se ter conseguido tornar a leitura do texto de Augusto
Comte mais accessível, para então, mais tarde, em outra oportunidade e por mãos
mais competentes, permitir seu estudo, sua crítica e sua avaliação.
1. PRIMEIRO CAPÍTULO
A Identificação
da Criptografia
As
dificuldades semânticas do texto de Augusto Comte nem sempre podem ser
facilmente identificadas,
embora sejam imediatamente sentidas,
desde o primeiro contato.
Os
obstáculos de significação notados em Comte serão aqui denominados de criptogramas, e seu uso, de criptografia, palavras que indicarão apenas haver um significado menos claro, escondido, no
texto. Não se pretende nesta dissertação
mostrar na redação comtiana passagens feitas em código secreto especial, de
difícil decifração. O termo criptografia
simplificará apenas as referências, enfatizando os problemas semânticos
encontrados ou postos na leitura do filósofo.
Tanto aquelas dificuldades de origem no próprio autor, tanto pelo passar
do tempo e tanto como colocados nos seus textos por leitores distraídos.
Algumas
criptografias resultam do emprego de palavras
usuais com significado modificado. Outras vezes são referências feitas
a eventos, a conceitos e a pessoas, sem citar seu nome, apenas pelo uso de
epítetos ou atributos bem conhecidos de Comte e de seus contemporâneos, na
história ou na literatura. Por vezes,
terão sido já referidos anteriormente no texto do autor, mas que se tornam
ininteligíveis quer em primeira abordagem, quer para leitores de outra época,
de outra cultura, ou de pouca ou nenhuma base informativa. Neste capítulo inicial, para maior clareza,
será interessante reconhecer, em alguns exemplos, o que aqui denominamos de
criptogramas.
O emprego
do apelido de criptografia, se poderá resultar em certo exagero, serve, no
entanto, com proveito, para dramatizar as reais dificuldades do texto comtiano,
por vezes por demais sérias. Poderá até
ser uma forma de metáfora, na figura de estilo denominada de “hipérbole”.
(CRUZ, 1959, p.97)
A vantagem
será de enfatizar, de maneira indelével, a existência de significações muito
alteradas de palavras simples e usuais, aparentemente sem prévia advertência,
por vezes usadas como se formasse um dialeto filosófico especializado,
particular, de Augusto Comte.
Na verdade, há sempre, na redação do filósofo, um grande cuidado na
seleção e no emprego das palavras. No
entanto, a criteriosa definição do vocabulário nem sempre fica dentro do
alcance do pesquisador episódico e muito menos do leitor apressado e
superficial.
1.1
ABSTRACT CRYPTIC ALLUSIONS
Na tradução
para o inglês feita por J.H.Bridges do Discours sur l’ensemble du positivisme,
faz Frederic Harrison na Introdução
considerações aqui parcialmente citadas, traduzidas para o português:
“O positivismo não é simplesmente um sistema de
filosofia; nem é simplesmente uma nova forma de Religião; nem é simplesmente um
esquema de regeneração social. Ele é
tudo isso, e professa harmonizar tudo sob uma concepção dominante que é
igualmente filosófica e social.
Imediatamente ficou claro que um sistema tão
abrangente nunca foi jamais oferecido ao mundo.
Nem o Evangelho nem qualquer forma conhecida de religião tomou a tarefa de formar uma reunião sintética das
Ciências. Nenhum esquema sintético de
filosofia jamais tentou correlacionar
religião, política, arte e indústria.
Nenhum sistema de Socialismo, antigo ou moderno, partiu da matemática e
subiu até um ideal de uma devoção humana
ao dever, com um ritual de culto religioso, público e privado.
Então o famoso Sistema de Política Positiva propôs-se
a essa tarefa gigantesca. E a novidade
e a extensão de tal trabalho explica
e justifica a extrema dificuldade encontrada por seus
leitores no seu original em francês, e também pela fascinação que se mantém
após mais de cinqüenta anos após a morte de seu autor. Foi ele comentado, criticado, e até mesmo
ridicularizado, na ignorância de seu verdadeiro caráter, o que SÓ PODE SER DESCULPADO em razão da
forma severa e abstrata em que Comte pensou por bem condensar seus
pensamentos.
A tradução para o inglês é, ela mesma, uma
obra-prima literária. Ela transforma
um tipo de dogmatismo filosófico francês extremamente abstrato e
complexo num texto fácil e simples em inglês, enquanto ao mesmo tempo preserva
e mesmo elucida as alusões e nuanças de alguma forma criptográficas no texto original. O pensamento em francês é cheio, prenhe e
sugestivo, sendo ao mesmo tempo sutil e abstrato, e rico, com palavras
de uma nova cunhagem -- como altruísmo,
sociologia, dinâmica (i.e.
história) --- e antigas palavras, mas usadas em sentido especial”. (HARRISON,
Introduction, in Bridges, 1908,
p.VIII a XI)
No original do texto parcial de Harrison:
“Positivism
is not simply a system of Philosophy; nor is it simply a new form of Religion;
nor is it simply a scheme of social regeneration. It partakes of all of these, and professes to
harmonize them under one dominant conception that is equally philosophical and
social.
Now it is
clear that no such comprehensive system was ever before offered to the world. Neither the Gospel nor any known type of
religion undertook to give a synthetic
grouping of the Sciences. No synthetic scheme of philosophy ever
attempted to correlate religion, politics, art, and industry. No system of Socialism, ancient or modern,
started with mathematics and led up to an ideal of a human devotion to duty,
with a ritual of worship, both public and private.
Now Comte’s
famous Positive Polity did attempt this gigantic task. And the
novelty and extent of such a work explains and accounts for the extreme
difficulty met with by readers of the original French, and also for the
fascination which it has maintained more than fifty years after the author’s
death. It has been talked about,
criticized, and even ridiculed, with an ignorance of its true character which
can ONLY BE EXCUSED by the abstract
and severe form in which Comte thought right to condense his thoughts.
The
translation itself is a
literary masterpiece. It renders an
extremely abstract and complex French type of philosophical dogmatism
into easy and simple English, whilst at the same time preserving and even
elucidating the somewhat cryptic
allusions and nuances
of the original. The thought in the French is full, pregnant, and suggestive, at once subtle and
abstract, and rich with words
of a new coinage --- as altruism,
sociology, dynamics (i.e. history), and old words used in a special sense”. (Harrison, Introduction, in Bridges,1908,p.VIII a XI)
Tem razão
Harrison em dizer que a tradução para a língua inglesa é uma obra-prima, ao
tornar o texto denso e rico de Comte em leitura mais amena, mais clara, apesar
da doutrina complexa e abstrata
do filósofo.
A
extraordinária abrangência da obra comtiana foi, desde a juventude do filósofo,
planejada para conduzir à regeneração política da sociedade humana. Não pela ação da violência, mas por meio da regeneração do saber, ou, em outras palavras, por
meio da elaboração de uma nova
filosofia.. Pelas luzes dessa
nova gnosiologia poderia ser
coordenada a política em todos os seus aspectos, do poder, de produção, da arte,
da ciência pura, das diferentes especializações, mas principalmente pela política da educação, pela formação de
uma opinião
pública libertada e coesa, emancipada das masmorras do obscurantismo da
superstição e do jugo da
injustiça dos privilégios. A nova doutrina gnosiológica seria
gradualmente elaborada por uma revolução filosófica abstrata e severa, pela
criação de novas ciências, pela identificação da religião como instituição universal, eterna e única,
como suave e adorada proteção da liberdade e da felicidade dos humanos sob formas as mais
diferentes. A comunicação dessa sinfonia emocional do pensamento acumulado na
cultura multissecular humana exigiria, de fato, para sua explicitação, uma
obra-prima sem par.
Palavras
originais cunhadas pelo autor são, entre outras, o altruísmo, como antônimo perfeito de egoísmo e o nome de sociologia, um termo híbrido
greco-romano proposital. A sociologia dinâmica refere-se à
original filosofia da história comtiana, abstrata, base científica da nova
ciência da sociedade. Veremos mais tarde muitas das locuções empregadas por
Comte, em nova significação, com o emprego de palavras vulgares, mas tomadas
com outro sentido.
Esse
testemunho apresentado por Harrison de “alguma forma de alusões criptográficas” no texto comtiano constitui-se numa
referência insuspeita, oferecida por um destacado adepto britânico de
Comte. Os tradutores ingleses do
filósofo fornecem, em suas obras, informações adicionais indispensáveis para a
leitura, além de mostrarem uma utilíssima indexação detalhada, temática e
alfabética. Atuam como se fossem uma
chave parcial de decifração, só assim permitindo o acesso cômodo a essa
imensidão de conceitos, de palavras, de idéias, de saber filosófico. Veremos como esses elementos nos ajudarão
nesta dissertação.[10]
Será
somente nos textos mesmos originais, em francês, de Comte, que deveremos
verificar os problemas de sua mensagem, para avaliar sua dificuldade e
descobrir porque sua leitura se torna espinhosa, senão, por vezes, impossível. E ainda desvendar qual a razão de tanta
deformação encontrada, em todos os países, mesmo no comentário de muitos
pesquisadores famosos, supostamente competentes.
No segundo
volume do Sistema de Política,
escreve o filósofo, quase ao encerrar a “Teoria da Linguagem”, tema relacionado ao nosso campo de pesquisa:
“Il faut, à
cet effet, distinguer, dans toute élaboration scientifique, deux phases
naturelles: l’une, purement préparatoire, où les
conceptions ne sont point encore communicables; l’autre où elles le deviennent, et qui seule est définitive. On attribue trop de part aux signes envers la première opération, et pas assez pour la seconde.” (Politique
II-248)
O leitor
pode sentir pessoalmente a dificuldade desse texto comtiano procurando captar o
significado dessa citação antes de ler sua tradução. Deve parar aqui, e reler o texto em
francês. Procure escrever sua tradução.
Só depois deverá recorrer à tradução e comparar:
“Para esse fim, será necessário distinguir, em toda elaboração
científica, duas fases naturais: uma,
puramente preparatória, onde as concepções não são ainda comunicáveis; outra fase, onde as concepções se tornam
comunicáveis, fase que, somente ela, é definitiva. Atribui-se exageradamente a participação dos sinais na primeira operação, e não se
reconhece suficientemente sua participação na segunda fase.”
Esse texto
mostra como o estilo do autor permite expressar, com poucas palavras,
concisamente, seu pensamento. Para que a
tradução seja explicitada, será necessário o uso de palavras muito mais
numerosas. Nota-se claramente como a
concisão tende a reduzir sutilmente a compreensão. Mas o estilo comtiano
apresenta, de fato, um certo encanto em sua construção. O trecho indicado está relacionado com o
parágrafo anterior:
Ayant maintenant reconnu combien le langage assiste les plus puissantes
de toutes nos fonctions cérébrales et les constructions qui conviennent le
mieux à notre intelligence, on doit pressentir son importance supérieure envers l’élaboration mentale la moins
spontanée et la plus abstraite. Son
office dans la conception scientifique fut même conçu avec une exagération
très-vicieuse sous le régime métaphysique, par des penseurs qui, presque
toujours livrés au vague et à la fluctuation, devaient surtout aux signes l’apparente fixité de leurs
idées. Outre qu’ils méconnurent
essentiellement la combinaison directe
des notions réelles, ils négligèrent entièrement la réaction logique des sentiments, et même celle des images. Toute leur attention resta donc bornée au moins puissant des trois
auxiliaires génénéraux de nos méditations, en attachant beaucoup trop de prix à
la disponibilité qui le caractérise.
Quoique les études scientifiques aient souvent conduit à constater
partiellement ces aberrations ontologiques, l’esprit positif ne put acquérir assez de généralité pour
construire à cet égard une meilleure théorie, jusqu’à ce que la fondation de la
sociologie eût constitué le seul point de vue convenable. Car c’est surtout en rapportant le
langage à sa destination sociale
qu’on peut concevoir sainement sa principale efficacité théorique.”
Também aqui
será de interesse avaliar a compreensão do texto, antes de ler sua tradução:
“Tendo reconhecido como a linguagem assiste as
mais possantes de todas as nossas funções cerebrais e as construções que convêm
mais a nossa inteligência, deve-se pressentir sua importância superior em
relação à elaboração mental na ciência
pura, menos espontânea e a mais
abstrata. Sua utilidade na concepção
científica foi mesmo apresentada com uma exageração muito viciosa durante o
regime metafísico, por pensadores que, quase sempre voltados ao vago e à flutuação, devem sobretudo aos sinais a aparente fixidez de
sua próprias idéias. Além de que eles
tenham desconhecido essencialmente a combinação
direta das noções reais, eles negligenciaram inteiramente a reação lógica dos sentimentos e mesmo a reação lógica das imagens. Toda a sua
atenção permaneceu, então, limitada ao
menos possante auxiliar do pensamento, o sinal, entre os três auxiliares gerais de nossas
meditações, os sentimentos, as imagens e os sinais, dando muito mais
atenção à disponibilidade que
caracteriza o sinal. Embora os estudos científicos tenham muitas
vezes conduzido a verificar parcialmente essas aberrações ontológicas, o espírito positivo não conseguiu adquirir
bastante generalidade para elaborar a esse respeito uma teoria melhor, a não
ser depois que a fundação da sociologia pudesse elaborar o único ponto de vista
conveniente. Porque é sobretudo
relacionando a linguagem à sua destinação social que se pode conceber
corretamente sua principal eficácia teórica.”
Pode
notar-se que será difícil compreender os conceitos contidos no texto, sempre
adjetivados, como “as mais possantes de nossas funções cerebrais”, “a menos
espontânea e a mais abstrata”,
“a reação lógica dos sentimentos”,
e “aquela das imagens”, “os três auxiliares gerais de nossas
meditações”, a que se refere “a
disponibilidade que a caracteriza”.
Sente-se que o parágrafo não é autônomo, mas está relacionado com noções
anteriores, que devem ter sido esclarecidas, e com explicações a serem
explicitadas em seguida.
O estilo
característico de Comte poderá mostrar-se, e assim ser identificado, ao
comparar o original com a versão inglesa do mesmo texto:
“Now that
we have established the great use of Language in aiding the most powerful of
our cerebral functions, and the
constructions best adapted to our intelligence, it remains to show its even
higher importance in the least spontaneous, and the most abstract of our mental
operations. Its part in scientific
conceptions was regarded with a most mistaken spirit of exaggeration, under the
reign of Metaphysics. Thinkers, who were
themselves almost invariably given up to
vague and floating ideas, owed
what these had of apparent fixity
chiefly to Signs. Besides that
they profoundly misconceived the direct combination of real notions,
they entirely neglected the reaction of
the Feelings over the reasoning powers, and even that of
Images. Their whole attention threfore
was concentrated on Signs, the least
powerful of the three general aids to reflection; and they attached far too great importance to
the adaptability which is the great quality of Signs. Although scientific studies have often given
a partial confutation of these metaphysical aberrations, the positive spirit in
philosophy had not acquired views sufficiently general to construct a better
theory, until the foundation of Sociology had established the only point of
view in agreement with the true theory.
For, it is only when we refer language to its social purpose,
that we can duly estimate its principal theoretic importance.” (Polity, II-208)
Houve na
tradução para o inglês o desmembramento do período iniciado por “Son office”, para separar a observação feita
sobre “des penseurs au vague”, aos
pensadores da metafísica. Vê-se que a
construção, mesmo traduzida, é muito circunstanciada, com cuidadosa referência
a outras conceituações, tudo muito adjetivado, abundante em idéias
diferentes. As funções são “as mais
possantes”, as construções, “as que mais convêm”, sua importância “é superior”,
a elaboração mental é “menos espontânea e a mais abstrata”. Os auxiliares
na elaboração lógica, não identificados, são os sentimentos, as
imagens e os sinais; os menos possantes, implícitos, são os
sinais, que estão “mais disponíveis”. A
difícil conceituação comtiana da lógica contrasta com a noção de exclusividade
dos sinais na criação do conhecimento pelo logos, da palavra, sua origem
etimológica. Enfatiza que a elaboração
do pensamento, objeto da lógica, tem seu motor no sentimento, no afeto,
dependente da importantíssima lógica das imagens, de uso permanente nas artes, a
além do exclusivo puro emprego dos sinais, da palavra. (Politique, I, 447 a 451. Polity,
I, 362 a 366; Síntese Subjetiva, 27)
A
qualificação pejorativa da metafísica e do ontológico deve agredir e aborrecer
a leitura do texto por adeptos da essencialidade platônica, que em nossos dias,
sinceramente, buscam a verdade, na manutenção ou no ressurgimento de alguma
nova forma de realismo. Mas o cuidado do
autor estará, sempre, em evitar a conceituação imprecisa, não verificável e
nebulosa, que, permitida em sua pesquisa, seria responsável por uma interdição da certeza, da previsibilidade e da intersubjetividade dos resultados. Essa norma, seguida rigorosamente por Augusto Comte, parece ser uma maldosa e
“obsessiva perseguição” contra a liberdade de sonhar e de construir mitos apriorísticos, daqueles personalizados
em deuses, ou de outros impessoais, em “coisas”, numa ontologia
semi-científica. Esse modo espontâneo de
pensar seria um hábito humano mitológico necessário e espontâneo, desde a mais
remota antigüidade, e que tende a retornar natural e constantemente.
A versão
inglesa da passagem em estudo tornou-se mais legível, apresentando ainda, fora
do texto, a seu lado, na margem, a indicação do assunto tratado. Nesse
caso, ao lado do “Now that we have established...”, lê-se, em letras menores: “Effect
of Language on speculative powers.”
O parágrafo
destina-se, como se vê, a mostrar a importância ainda maior da linguagem no
estudo científico, menos espontâneo e menos concreto do que o senso comum, por
ser mais abstrato, por referir-se a fenômenos
do ser, e não ao ser, na elaboração intelectual da ciência “pura”, vale dizer
da ciência feita de leis fenomênicas
abstratas.
Após o
parágrafo “Il faut, à cet effet,”...
segue-se um texto de interesse:
“Pendant
l’ébauche initiale des conceptions, inductives ou déductives, le principal
office logique appartient directement aux sentiments
qui dirigent et soutiennent la contention mentale, en s’aidant des images qui la rendent plus précise et
plus rapide. Les signes n’y participent qu’accessoirement, pour fixer davantage les
éléments et les résultats de chaque spéculation abstraite, trop exposés à
s’altérer ou s’effacer sans un tel secours.
Toute la science du calcul nous offre, même dès ses premiers pas, d’admirables
exemples de cette précieuse aptitude. Déjà
la numération abstraite nous
deviendrait impossible au delà du
nombre trois, comme chez les animaux, si l’institution des noms ne nous
permettait pas de conserver et de distinguer les divers groupes d’unités. Mais cette incontestable efficacité des
signes envers les plus simples notions diminue beaucoup à mésure que les sujets
se compliquent. Hors du domaine
mathématique, le langage n’assiste réellement cette première phase méditative
qu’en fournissant, suivant l’heureuse expression de Hobbes, quelques notes propres à jalonner la route spontanée de
l’esprit. Convenablement appliquées çà et là, elles déterminent mieux les
conditions et les produits de cette élaboration provisoire, qui ne pourrait
encore comporter aucun véritable discours.” (Politique, II-249)
A tradução
inglesa tem ao lado, na margem, o subtítulo:
“Whilst conception is in
formation, Language only sugests notes”.
` O texto diz :
“Whilst ideas, inductive or deductive, are in
the first process of formation, the principal logical office belongs diretly to
the feelings, which guide and sustain the effort of the mind, calling in images
so as to make its work more precise and more rapid. Signs have only a subordinate part, that of
giving greater fixity to the elements and the results of each abstract
speculation; and these are seriously exposed to be modified or effaced without
such help. The whole science of
calculation offers us from its primary steps, admirable examples of this
precious faculty. Indeed abstract numeration would become
impossible to us beyond the number three, as it is with the animals, if the power of giving names did not
enable us to preserve and distinguish the different groups of units. But this indisputable usefulness of Signs
with respect to the simplest notions very much diminishes as subjects become
complicated. Outside the sphere of
mathematics, Language really only assists this first phase of meditation, in so
far as it furnishes, according to the happy expression of Hobbes, some notes
to mark out the course freely chosen by the intelligence. Properly applied here and there, they give
increased precision to the conditions and the products of this provisional
construction of the mind, before it would bear any formal statement in
argument.” (Polity,II-209)
O texto em
francês analisado, se relido agora, depois da tradução em inglês, parece não
oferecer dificuldade maior. No segundo
período, “Les signes n’y participent...”, o tradutor evitou a expressão
idiomática inicial. O mesmo fez no
período “Hors du domaine...”, tornando a frase mais simples: “a linguagem só assiste a esta fase ... ao
fornecer algumas notas...” Em seguida o
tradutor eliminou o pronome “qui”, mudando a construção da última frase. Notar
que este parágrafo apresenta várias frases curtas, que são mais legíveis. A afirmação de que os animais contam até o
número três, mereceria uma explicação, num texto isolado, o que não foi feito,
uma vez que esse fato já teria sido abordado alhures, nesta mesma obra. Essa verificação de que os animais contam até
três está em Georges Leroy, em suas “Lettres
sur les Animaux”.[11]
Pode
sentir-se como o texto comtiano apresenta, além das peculiaridades do idioma
francês, uma redação encadeada, que implica o sentido em cada frase com
afirmações antecedentes e com as sentenças explicativas que se lhe seguem,
ainda mais com a redação cheia ou “prenhe”
de significações, sempre acompanhadas de uma adjetivação abundante, mas
exótica e instigante, por vezes geradora de maiores dúvidas, dando ao leitor a
amarga impressão de ele que não conseguiu compreender tudo o que foi escrito
com tanta força e tanto colorido.
1.2 A
CRIPTOGRAFIA DA HARMONIA
A
disposição ordenada entre as partes do discurso caracteriza a harmonia do
estilo, tanto em sua consonância como em sua sucessão. Seria como a música da comunicação. Poderá ser considerada quanto à harmonia das
frases ou a harmonia das palavras.
(CRUZ, 1959, p.84 e seg.)
A harmonia
das palavras apresenta defeitos como a cacofonia, com a formação de termos
inconvenientes; a colisão, com o encontro de consoantes; o eco, com repetição
de sons.
A harmonia
das frases exige, entre outros cuidados, a redução do emprego de orações
subordinadas em excesso, para evitar esse defeito, o mais comum. Do mesmo modo seria o uso de parêntesis
freqüentes e extensos, que reduzem a unidade da frase; quando as idéias se atropelam, com múltiplos
sujeitos empregados no período; ou pelo
emprego de palavras, expressões ou orações desnecessárias, supérfluas.
No texto de
Comte pode ver-se o cuidado em obedecer as regras gramaticais. A concisão predomina em seu estilo,
podendo-se sentir certa dificuldade do autor em oferecer clareza de expressão. Isso nota-se especialmente nos textos de
maior originalidade, em que novas idéias sejam apresentadas, com profundas
mudanças, em reformulação conceitual. A
redação é feita de memória, mediante um planejamento prévio, pormenorizado,
puramente mental, sem anotações, elaborado com antecedência. Uma vez imaginado o estudo completo, a
escrita passava a ser feita de pronto, de um só jato, sem revisão, sem
correção. A redação assim realizada seria então muito mais rápida, embora sofra
em sua forma e em sua compreensão, porque as sentenças sucedem-se em seqüência,
interligadas com abundância de pronomes como o “dont” o “ce, cet, cette, qui”,
usados com demasiada freqüência. Essa
característica denota a pressa com que foi realizada.
Como
resultado, o texto comtiano apresenta, por vezes, o vício mais comum na
harmonia das frases, pelo emprego de orações subordinadas freqüentes, extensas
e contínuas, com os correspondentes pronomes e conjunções subordinativas.
Eis o que
chamaremos a criptografia da harmonia do
estilo, como uma das causas de dificuldade de sua leitura.
Em conjunto
com essa dificuldade, acrescente-se que se lê no texto comtiano referências a
partes de volumes anteriores, feitas sem indicação de página, apenas dando o
tema pesquisado. Por exemplo, escreve o filósofo:
“Le volume
précédent a dogmatiquement établi la
théorie positive de la logique humaine, fondée sur l’emploi combiné des
sentiments, des images, et des signes pour faciliter nos contemplations e
surtout nos méditations. Dans le
premier chapitre du volume actuel, j’ai d’avance caracterisé l’élaboration
historique de ces trois élements généraux sous les trois phases
principales de notre initiation théologique.
(Politique,
II-238)
Na tradução
inglesa, cada citação como a mostrada é acompanhada da localização da página no
próprio texto traduzido. Embora não seja exatamente um enigma, essa é uma
dificuldade a mais na leitura.
O uso do
termo “dogmático” causa, também, desentendimento entre os comentadores de
Comte: - não significa aqui a referência a um
“dogma” absoluto, fechado,
imutável, mas ao aspecto temático ou doutrinário da pesquisa, que poderia
ser estudada historicamente, e não em referência a seu conteúdo.
Embora
muito cuidadoso na identificação das palavras, faz o autor a crítica da
linguagem artificial dos sinais, pelo estudo da lógica como procedimento da
elaboração intelectual.
Ao mesmo
tempo que devemos apreciar o estilo característico de Comte, veja-se o
conteúdo, referido à lógica dos sinais, “a menos possante das formas de combinação
mental”:
“De là résulte la destination logique du langage, pour
compléter, autant que possible, nos moyens généraux de combinaison mentale par
l’intervention habituelle des impressions les plus volontaires et les plus
variées. Les signes se lient à nos pensées d’une manière beaucoup
moins intime et moins spontanée que ne le font les sentiments, et même les
images. Mais, quand cette liaison
artificielle se trouve assez établie d’après un exercice décisif, la facilité
de les reproduire et de les multiplier permet à leur usage de rendre à la fois
plus rapide et plus précise notre élaboration spéculative. Néanmoins, leur office normal ne doit
jamais être conçu d’une manière isolée comme le firent irrationnellement,
sauf pendant le moyen âge, les
philosophes ontologistes qui, devant cette logique artificielle, méconnurent
essentiellement les deux logiques naturelles.
Malgré ces doctorales aberrations qui tendaient à réduire le raisonnement humain au simple langage, les lois
immuables de notre nature n’ont jamais cessé de faire spontanément prévaloir
l’usage logique des sentiments et des images sur celui des
signes. La principale efficacité de
cette troisième logique consiste même à assister la seconde, comme celle-ci
aide la première, afin de faciliter la combinaison des images, comme celles-ci
secondent la connexité des sentiments.
Toutefois, la liaison des signes aux pensées peut devenir directe, et
doit même l’être souvent envers les notions abstraites. Alors on rattache artificiellement notre monde intérieur au monde
extérieur. (...) On voit ainsi combien les prétendus logiciens se font des idées fausses et étroites de
notre mécanisme intellectuel, quand ils concentrent toute leur attention sur le
plus volontaire mais le moins
puissant des trois modes essentiels
que comporte la combinaison mentale.”(Politique II-240,241)
A
oportunidade do tema e o seu interesse parecem tornar a redação e sua leitura
mais fácil. O parágrafo é longo, e completa as considerações sobre lógica, como
diz o primeiro período.
A referência
a “aberrações doutorais” é pejorativa, e
se dirige aos leitores mais prováveis do texto, em geral, em nossos dias,
pesquisadores e estudantes na busca do saber, de títulos e de vantagens “doutorais”.
O tradutor para o inglês evitou esse termo, e essa agressão, mudando a
construção da frase:
“We may
disregard these pretentious authorities,
the effect of which would be to reduce the reasoning faculty of man to mere
Language: for the immutable laws of our nature have invariably given to the
instrument of Feelings and of Images, a higher logical value than to that of
Signs.” (Polity,II-202)
Contornou
assim o tradutor um obstáculo posto na leitura a ser empreendida pelos
numerosos doutores, de ontem e de hoje,
que passariam a severos críticos e maus leitores, ao lado dos ontologistes diversos, todos logo pejorativamente
qualificados. O estilo nesse texto do
original não parece tão difícil, apesar da controvérsia mantida a respeito da
lógica dos sentimentos e da lógica das imagens.
Assim se
descobre aversão semântica criada pelo texto comtiano, uma verdadeira criptografia das aberrações doutorais.
1.3 A
CRIPTOGRAFIA ANFIBOLÓGICA
Ferdinand
Brunetière, famoso crítico literário francês, diz que em Augusto Comte a frase
é mal feita:
”La phrase est mal faite, et la
construction amphibologique, -
on ne doit pas chercher dans la
prose d’Auguste Comte des exemples d’analyse grammaticale; --- mais le
sens n’est pas
douteux.”
Ou
seja, “A frase é mal feita e a construção é anfibológica, - não
se deve procurar na prosa de Augusto Comte exemplos de análise gramatical;
- mas o sentido não é duvidoso.”[12]
Anfibologia
é catalogada em sintaxe gramatical como um dos vícios de linguagem, ao lado de outros vícios como o barbarismo, o solecismo
e a obscuridade. Define-se anfibologia ou ambigüidade como
consistindo em dar à frase sentido duplo ou duvidoso. Tal como na afirmação
“Ama o povo o bom
rei” --- onde o sujeito da oração tanto pode ser “o
povo” como “o bom rei”.[13]
Referia-se Brunetière ao seguinte texto da Politique, no volume II, p.115:
“En un mot, sa discipline (du catholicisme au moyen
âge) ne fut alors hostile qu’envers l’esprit métaphysique, et l’on doit
aujour’dui regretter qu’elle ne l’ait point empêché davantage de troubler
l’essor spontané de l’esprit positif, dont il conserva longtemps la tutelle spéciale.” (BRUNETI1ÈRE, 1905, p.308)
Na dúvida,
pode-se ler a tradução inglesa do mesmo texto:
“In a word the Church was then only hostile to the
Metaphysical spirit; and we may now
regret, that it did not still further
succeed in preventing that phase from disturbing the growth of the Positive
spirit, which was long under the special guardianship of
Catholicism.” (Polity,II-100)
O texto em
francês tem, de fato, uma confusão difícil de deslindar. A continuação do
texto, em geral, esclarece e completa o pensamento:
“La théologie
du moyen âge était d’autant mieux fondée à exclure l’ontologie du domaine moral
et social, que le dogme catholique avait vraiment établi la seule théorie que
put en diriger la première culture systématique, du moins pour la vie privée,
base normale de la vie publique. Son
véritable créateur posa complétement le principe général de l’antagonisme
continu entre la nature et la
grâce, qui était alors aussi convenable à la theorie qu’indispensable à la
pratique.” (Politique,
II-115)
Note-se aí
como se mostra o hábito do filósofo em fazer alusão a um autor, sem lhe dar o
nome, mas apenas indicando sua qualificação:
no caso, “o verdadeiro criador”
(do catolicismo) - referindo-se não a Cristo, mas a São Paulo,
que poderia ser identificado por sua teoria da luta entre a natureza e a
graça. Deve-se ter em conta que, para
Comte, a doutrina da Idade Média seria a
doutrina de S. Paulo, que deixava livre de explicação, desprezado, e,
portanto, de permida pesquisa, protegido, o estudo da filosofia natural. Assim “tuteladas” e abençoadas, então as
ciências positivas progrediram por meio dos próprios monges medievais, tais
como Roger Bacon e muitos outros. Essa é
a demonstração feita por Augusto Comte da
idade das luzes científicas no
catolicismo da idade média, que o preconceito anti-histórico dos
revolucionários não lhes permite apreciar.
A metafísica era proscrita da filosofia moral ou da ciência humana, onde
dominava a doutrina da graça de S. Paulo.
Só mais tarde, com o tomismo, foi introduzido pela escolástica o
intelectualismo da metafísica aristotélica, um progresso necessário, mas
perigoso para a fé. Progresso que viria
a destruir a doutrina medieval por seus próprios padres, como nunca ocorreu na
história das religiões.
Vê-se que
Brunetière identifica, no texto comtiano, portanto, uma curiosa criptografia;
um vício de linguagem, a criptografia
anfibológica.
1.4
THE OVERLOADED STYLE
A expressão
“overloaded
with words” foi empregada por Miss Henriette Martineau, brilhante
intelectual inglesa. Indicava que o
texto do Cours de Philosophie
Positive estaria “sobrecarregado” de palavras. O estilo do filósofo
passaria, então, por ser “verboso”. Mas
essa “verbosidade” não é daquela usual, que pouco ou nada exprime. Há uma congestão de nomes, de qualificativos,
todos significativos, aparentemente indispensáveis, mas cuja existência só Miss
Martineau explicou. E, ao expurgar a
redação do “Cours” desse excesso de
cuidados e de complementos, corrigindo esse “estilo sobrecarregado”, o
“overloaded style”, tornou a leitura
da obra muito menos assustadora, o texto muito mais enxuto, sob a aprovação
direta do próprio autor.
Tradutora
dos volumosos seis tomos do Cours de Philosophie Positive,
condensando-os em apenas dois volumes, Miss Martineau conheceu bem o modo de
escrever de Augusto Comte. Em 1853,
portanto em vida do filósofo, no prefácio da tradução, diz ela sobre o texto
comtiano no Cours:
“ M.Comte
style is singular. It is at the same
time rich and diffuse. Every sentence is full fraught with meaning;
yet it is overloaded with words. His scrupulous
honesty leads him to guard his enunciations with epithets so constantly
repeated, that though, to his own mind, they are necessary in each individual
instance, they become wearisome, especially towards the end of his work, and
lose their effect by constant repetition.
It appeared to me worthwhile to condense his work, My belief is that thus, if nothing more were
done, it might be brought before the minds of many who would be deterred from the study of it by its bulk”. (MARTINEAU,1893,p.IV)
Em
português: “ O
estilo de Comte é singular. É ao mesmo
tempo rico e difuso. Toda sentença é bem cheia de
significado; e por cima é sobrecarregada
de palavras. Sua escrupulosa honestidade leva-o a proteger suas afirmações com
epítetos tão constantemente repetidos, que, embora, para sua própria impressão,
sejam eles necessários a cada momento individual, tornam-se cansativos,
especialmente mais para o fim de sua obra, e perdem seu efeito por causa da
repetição constante. Pareceu-me oportuno
condensar seu trabalho. Acredito que,
mesmo se nada mais fosse feito, apenas isso poderia colocá-lo ao alcance das
mentes de muitos leitores que desistiriam
de tentar seu estudo, assustados por seu enorme volume”
O Curso de
Filosofia se apresenta sob a forma de palestras. Elas foram proferidas separadamente, em
períodos afastados no tempo, o que exigia uma recapitulação repetida que se
tornou sem interesse e anti-filosófica. Essa prática, que tinha sido
indispensável, tornou-se desnecessária quando a obra se apresentou de uma só
vez, em conjunto. A condensação feita por
Miss Martineau em apenas dois volumes ocupa no original seis grandes volumes
com oitocentas páginas cada, em média. E
acredita-se que nada de significativo foi omitido, tendo o próprio filósofo
aprovado a condensação feita, recomendando sua leitura.
Uma
consideração importante a levar em conta é a declaração de Comte lamentando a precipitação com que
redigiu o Curso de Filosofia Positiva
e que, se vivesse o suficiente, re-escreveria
os seus seis imensos volumes.[14]
Esse
projeto de explicitação de seu próprio texto é uma prova clara do que
chamamos a criptografia de Augusto
Comte. E por ele próprio reconhecida.
E notar
especialmente que é a escrupulosa indicação dos autores originais de cada idéia
alheia empregada por Comte que torna a leitura do filósofo ainda mais difícil,
sendo por isso difícil considerá-lo como um plagiário. Um ponto de interesse para debate.
Eis aí
como, em candidato a plagiário pouco hábil, a escrupulosa honestidade
intelectual de Augusto Comte gerou a
criptografia do “overloaded style”.
1.5 A
CRIPTOGRAFIA DA PRESSA
Sentiu o
filósofo que a pesquisa psicossocial preparatória consumiria muitos anos de
trabalho. Seria por demais longa a
tarefa a que se dedicaria, para dar uma base científica à arte política da
modernidade.
O Cours de Philosophie deveria constar de
apenas quatro volumes. Mas só se
completou com o sexto volume. Toda essa
obra, desde as primeiras linhas, foi elaborada com extrema rapidez, embora
diversos obstáculos tenham retardado sua execução. A celeridade impressa em sua
redação produziu um texto muito mais difícil de ser lido: a causa desse estilo mais áspero seria a criptografia da pressa, ou seja a
dificuldade provocada pelo apressamento posto no trabalho de sua redação.
É no
prefácio do volume VI e último do Cours
de Philosophie que o próprio autor fala da elevada velocidade que de fato imprimiu à sua elaboração e da forma
como a realizou. Diz Comte:
“Quant au mode d’exécution des
diverses portions de ce Traité, il me suffit d’indiquer que les embarras d’une
situation personnelle, dont le lecteur connaît maintenant la gravité, ont dû
m’obliger à y apporter toujours la
plus grande célérité partielle, sans laquelle mon entreprise
philosophique fût ainsi restée essentiellement impraticable. Pour mesurer, autant que possible, cette vitesse effective, j’ai cru
devoir, dans la table générale des matières, placée à la fin de ce volume,
noter brièvement l’époque et la duré de chacune des treize elaborations distinctes qui ont constitué, à des intervalles
très-inégaux, le vaste ensemble de ma composition. A cette indication caractéristique, je dois
d’avance ajouter ici que, pressé par le
temps, j’ai jamais pu récrire
aucune partie quelconque de ce long travail, qui a toujours été imprimé sur mon
brouillon original, dont la transcription eût au moins doublé la durée de mon
exécution. Heuresement que, peu disposé,
de ma nature, à rien écrire avant une pleine maturité, ce premier jet s’est
trouvé constamment assez net pour permettre aisément, sans la moindre
réclamation, l’opération typographique, que je n’ai d’ailleurs ralentie par
aucun remaniement ulterieur. Ces divers
renseignements secondaires pourront, j’espère, susciter quelque indulgence pour les imperfections littéraires d’une
telle composition.” (Philosophie,VI-p.XXXVII)
Aí está o
pedido de indulgência do filósofo, para a
imperfeição literária por ele mesmo reconhecida de seu estilo. Portanto, qualquer dificuldade de leitura,
devida à forma apressada de redação, teria o caráter involuntário, resultante
da impossibilidade de re-escrever e corrigir o texto, como o comum dos autores
fazem. Consiste no que se chamou aqui de
criptografia da pressa.
Registrou,
portanto, no sumário do último volume a data e a duração de cada etapa de
redação, cujo primeiro volume foi escrito no primeiro semestre de 1830, o
último volume sendo terminado em julho de 1842.
Tem toda a razão Martineau em dizer que a obra completa tomou 12 anos
para ser escrita, mas seu plano geral foi elaborado em 1822, a partir de então tendo
sido apresentada oralmente em palestras públicas, ao longo de 20 anos. Notar que esse plano de trabalho tornou-se
válido para toda a vida filosófica e política de Comte, sendo uma importante
comprovação da continuidade entre
suas duas fases doutrinárias, correspondentes respectivamente ao Cours e ao Système de Politique.
A
preparação para a elaboração política e a própria teoria política de Comte
pertencem, ambas, a seu plano inicial. A
Politique jamais foi considerada
pelo filósofo como uma nova produção acidental em sua carreira, um novo rumo,
mas, desde o princípio de sua pesquisa, seu mais alto objetivo de
efetiva ação.
Consta do
programa de trabalho do jovem Comte a renovação da Política. Compreendendo, sobretudo, a renovação do
poder político sem ignorar o papel fundamental da renovação da filosofia, do valor filosófico. Em seus textos originais estaria o registro
de como essa filosofia seria pensada.
Se elaborada em liberdade, por meio da liberdade, para a liberdade, ou,
se, pelo contrário, essa filosofia seria a doutrina do autoritarismo
científico, da ditadura.
Pretenderia
produzir uma nova classe de filósofo da modernidade, a quem denomina de
“sacerdote”. Seria um poder puramente
moral e intelectual, independente da coerção tanto da violência como da
riqueza, para renovar a comunicação social, para sanear a educação em todos os
níveis e especializações. Mas essa
perfeita previsão no planejamento e essa continuidade de esforços também
denuncia a continuidade
da pressa na elaboração também de sua obra principal, a Política, o grande alvo do plano de juventude do pensador, que ambiciosamente
pretenderia refazer todo o sistema
social humano.
Em grande
parte os problemas conjugais de Comte contribuíram para o retardamento da
elaboração do Cours. Em combinação com a perda de cargos no ensino
oficial, na exclusão da universidade governamental, que afastou igualmente todos
os pensadores revolucionários e inovadores.
Isso obrigou-o a viver de aulas particulares, usando grande parte de seu
tempo em lecionar, para pagar suas despesas.
Mais tarde, conseguiria dedicar-se exclusivamente à filosofia, quando
instituído um subsídio em seu favor por seus discípulos e admiradores.
Testemunhada
a criptografia existente no texto de Comte pelo próprio filósofo, e por ele
mesmo justificada, continuaremos a examinar o estilo comtiano. Ao mesmo tempo, veremos que o autor expressa,
no prefácio do Système de Politique, sua decisão de manter o sacrificio do estilo em benefício da maior velocidade de
redação da obra. Confirmará, então, o
filósofo, a continuidade da criptografia da pressa em sua forma de redação.
Notar,
portanto, que temos examinado o estilo do autor, ao mesmo tempo considerando o
que Comte, mas não só ele, chamaria de “seu estudo dogmático”, isto é,
examinando o conteúdo do texto. Sem haver aí nenhum dogma fechado, do saber
absoluto.
Explica
Augusto Comte no prefácio do Système de
Politique o projeto para a elaboração do que viria a ser a
obra principal de sua doutrina:
“ A la philosophie positive, je fais
donc succéder aujourd’hui la politique
positive, qui
deviendra ma principale
construction, quoique
nécessairement fondée
sur la première. En systématisant
ïci la religion universelle d’après des principes déjà construits, mon
exposition dogmatique se rapproche davantage du vrai régime rationnel, où la
conviction résulte beaucoup plus d’une réflexion solitaire que d’aucune
controverse.” (Politique, I-p.3 e 4 do prefácio)[15]
No
parágrafo seguinte continua:
“Une telle réalisation du hardi projet de ma jeunesse constitue la meilleure récompense de
mon opiniâtre dévouement. Non moins vives et plus profondes, les mêmes tendances régénératrices qui
échauffèrent mon zèle naissant animent aujourd’hui les approches de ma digne
vieillesse. La vaste élaboration
théorique qui remplit ce long intervalle ne m’apparaît desormais que comme un épisode nécessaire de
l’incomparable mission que m’assigna l’ensemble de l’évolution humaine.”
O autor
continua em outro parágrafo:
“Malgré leur intime connexité, ces deux grands traités
doivent donc différer essentiellement. L’esprit prévaut dans l’un, pour mieux
caractériser la supériorité intellectuelle
du positivisme sur un théologisme quelconque.
Ici le coeur domine, afin de manifester assez la
prééminence morale de la vraie religion. Le nouveau sacerdoce occidental ne pouvait
dignement terminer la fatale insurrection
de l’intelligence contre le
sentiment qu’en procurant d’abord à la raison moderne une pleine
satisfaction normale. Mais, d’après
ce préambule nécessaire, les besoins moraux devaient ensuite reprendre
directement leur juste prépondérance,
pour construire une synthèse vraiment
complète, où l’amour
constitue naturellement le
seul principe universel.”
Traduzindo,
explicitando e adaptando livremente :
“Faço suceder hoje, depois do Cours de Philosophie Positive, o Système de
Politique Positive, que se
tornará a minha construção filosófica principal,
embora seja necessariamente fundada sobre o Cours. Essa é a realização do audacioso projeto de minha juventude. É a melhor recompensa de meu devotamento
perseverante. As mesmas tendências para
promover a regeneração social, que, tão vivas e tão profundas, estimularam
minha ação logo no início da carreira, animam hoje a aproximação de minha digna
velhice. A vasta elaboração teórica que
foi produzida nesse longo intervalo aparece-me apenas como um incidente necessário dentro da missão
incomparável a que me conduziu o conjunto da evolução humana.
Esses dois tratados, apesar de sua ligação íntima,
devem, no entanto, diferir completamente.
No Cours de
Philosophie prevalece
a inteligência, para caracterizar melhor a superioridade mental do positivismo
sobre qualquer teísmo. Na Politique dominará o sentimento, para bem indicar a superioridade psicológica da
nova doutrina. O novo filósofo a surgir no ocidente não
conseguirá acabar com a revolta fatal da
razão contra o sentimento a não ser oferecendo uma completa e
sistemática satisfação das carências da inteligência na modernidade. Porém, em conseqüência dessa inevitável
preparação, as necessidades afetivas deverão retomar imediatamente, com
justiça, sua preponderância, para instituir um sistema de saber verdadeiramente
completo, em que o sentimento social, o
altruísmo, constituirá, como é natural,
o único princípio geral”.
Notar que,
para traduzir, o estilo de Comte torna imperioso desenvolver as muitas idéias
contidas implicitamente na cuidadosa
forma concisa do texto original.
Abundância escondida em seu
vocabulário rico, bem empregado, eficiente, mas perturbador. O prefixo “cripto”
significa escondido --- daí a idéia de criptográfia.
O filósofo
afirma que é do altruísmo, como
princípio único de conjunto, que decorre a coesão
social. Insiste em mostrar a completa coerência da
segunda fase de sua vida filosófica em continuidade com a fase inicial, em que
produziu o Cours de Philosophie. Justifica, portanto, a mudança de metodologia
no Système de Politique. Alteração que, no entanto, não reduz a elevada celeridade de sua
elaboração, nem amenizaria a criptografia do seu estilo.
Em seguida
escreve:
“La
diversité normale de ces deux élaborations successives y affecte même le mode
d’exposition. Por tirer d’une science
dispersive les bases élémentaires de la saine
philosophie, mon ouvrage fondamental dut offrir surtout
un caractère de recherche et de discussion. En systématisant ici la religion universelle d’après de
principes déjà construits, mon exposition dogmatique
se rapproche davantage du vrai régime rationnel, où la conviction résulte
beaucoup plus d’une réflexion solitaire que d’aucune controverse.”
Em
português:
“A diferença natural dessas duas elaborações
sucessivas afeta mesmo o seu modo de
exposição. Para obter de uma ciência
dispersiva os elementos básicos de uma
filosofia sadia, minha obra fundamental, o Curso de Filosofia, deveria
oferecer sobretudo um caráter de pesquisa e de discussão. Ao sistematizar aqui a nova doutrina filosófica universal partindo
de princípios já demonstrados, a minha exposição do seu conteúdo se aproxima mais do tipo de regime usual de exposição,
onde o resultado do estudo resultará muito mais de uma reflexão solitária do
que de alguma controvérsia.”
Essa
tradução exemplifica uma das formas de decodificação da linguagem de
tom “religioso” encontrada em todo o Système de Politique. Essa
alteração de forma do texto original, aqui apresentada, no entanto, não implica
em nosso julgamento e condenação do vocabulário aparentemente teísta de
Comte. Dentro das premissas
estabelecidas pelo autor, sua linguagem parece corretamente expressar suas
idéias renovadoras. Mas, para um
pesquisador desavisado, a linguagem religiosa empregada desqualificaria a condição científica da pesquisa sociológica de Augusto Comte,
que seria julgada como um retorno à
metafísica ontológica ou ao puro teísmo. A mesma desqualificação valeria igualmente
para as descobertas em sua original ciência
da psicologia. E esse descrédito se
estenderia até às propostas precisas e pormenorizadas da ciência política comtiana. Tudo por conta de uma confusão semântica, causada por uma
mera criptografia.
O Cours de Philosophie de Augusto Comte
teve de fato o objetivo de produzir uma
filosofia, a filosofia das ciências, por vezes chamada de epistemologia, apelido não empregado no tempo do filósofo. O que corresponde a relacionar as diferentes
especialidades científicas a princípios
gerais, filosóficos. Esse seria o
primeiro passo para a elaboração de uma sociologia científica, por meio da
pesquisa da metodologia do saber puro como conhecimento abstrato. O êxito de Comte poderia ser avaliado pelo
reconhecimento de que a filosofia das ciências hoje seria o próprio positivismo comtiano.[16]
Mas teria
Comte empregado a expressão “filosofia das ciências” para
designar sua doutrina? A resposta
encontraremos nas próprias palavras do autor, ao mesmo tempo em que apreciamos
o seu cuidado na escolha dos nomes a empregar e em especial o seu estilo peculiar :
“Mais je n’ai pas dû choisir cette dernière
dénomination (de philosophie naturelle),
non plus que celle de philosophie des
sciences qui serait peut-être encore plus précise parce que l’une et
l’autre ne s’entendent pas encore
de tous les ordres de phénomènes, tandis que la philosophie positive, dans laquelle je comprends l’étude des
phénomènes sociaux aussi bien que de tous les autres, désigne une manière
uniforme de raisonner applicable à tous les sujets sur lesquels l’esprit
humain peut s’exercer.” (Cours, I,
Avertissement, p. VIII)
O filósofo,
portanto, decidiu desistir do nome de filosofia
das ciências, apesar de lhe parecer mais preciso, por não abranger, em
sua época, as ciências humanas.
Essa razão, no entanto, não é
mais válida em nossos dias, podendo-se considerar, assim, a filosofia de Comte
uma filosofia das ciências, mas não
apenas das ciências. Por ser também
a filosofia das belas artes, da educação, da política, das artes úteis, isto é,
da indústria.
Em seu
tempo, as ciências estavam se formando, constituindo-se em separado,
esparsamente, em informações certas e úteis, mas desarticuladas, sem conhecer princípios
de generalidade. O filósofo
pretendeu oferecer uma nova metodologia
uniforme, realizando a harmonia de suas divisões, classificando-as, descobrindo
relações estruturais perfectíveis, capazes de uma indefinida evolução, embora
sob um
imutável arranjo de relações
mútuas. O que viria a ser a filosofia positiva de Augusto Comte,
a ser considerada como uma proposição relativa
e perfectível.[17]
O desafio
estaria em elaborar um sistema aberto,
verificável, sem a condição de imobilidade do absoluto, mas realizando a
coerência ou a unidade de todo o conhecimento humano numa síntese gnosiológica compatível com a modernidade. Com o objetivo final da previsão clara dos
fatos políticos, para sua projeção no futuro.
Será essa a
tarefa do filósofo de nossos dias?
Mais
adiante nos informa o autor sobre sua forma literária de redação:
“Dès l’âge
de vingt-deux ans mon premier travail public sur la coordination historique
annonça, nettement l’ensemble de ma carrièrre philosophique, irrévocablement
fixée, deux ans après, par ma découverte des lois sociologiques.”
No
parágrafo seguinte escreve:
“Mais cette précocité n’aurait pas suffi pour me
procurer une seconde vie sans l’énergique résolution qui me fit sacrifier toute
vanité littéraire au besoin majeur de terminer à temps mon immense tâche
objective. Son exécution, qui dura douze
ans, en eût exigé au moins six de plus, si je m’étais assujetti, comme je
l’avais fait auparavant, á récrire mon manuscrit, au lieu de toujours livrer à
la presse ma première rédaction, jamais
suivie d’aucune correction importante.
Cette seule précaution m’aurait préservé des principaux reproches
littéraires adressés à mon ouvrage
fondamental, par des juges trop peu attentives aux explications spéciales de sa
dernière préface. Mes premiers opuscules, réimprimés à la fin du présent
traité, indiqueront si le talent
d’écrire m’est réellement
interdit quand je me conforme aux usages qu’éxige toujours le perfectionnemnt
du style.” (Politique,I, p.6 e 7 do prefácio)
Vê-se o
filósofo a defender-se da crítica feita ao seu estilo de difícil leitura, dando
como garantia de sua capacidade de bem escrever como nos Opúsculos de Filosofia Social produzidos em sua juventude, e que se acham
reproduzidos como apêndice do Système de
Politique. O caráter enigmático
ou “anfibológico” por vezes notado em
seu estilo, foi, portanto, reconhecido por Comte, e atribuído à celeridade que quis
dar ao seu trabalho.[18]
Assim se
confirma o problema semântico que estamos estudando, sob a forma da criptografia da pressa.
Esses
registros mostram alguns exemplos de dificuldade encontrados no estilo de
Augusto Comte, para ajudar na identificação dos obstáculos encontrados na
leitura de sua obra. Esse constitui o
primeiro passo para o estudo de como surgiram e como se apresentam as
criptografias.. Vimos, preliminarmente,
as dificuldades da harmonia do estilo, das aberrações doutorais, da
anfibologia, do estilo sobrecarregado e a criptografia da pressa. Começamos a ter uma noção da criptografia
comtiana, a sentir até onde vai a nocividade desse problema e a admirar a
sofisticação de seu texto, por seu requintado vocabulário e sua impressionante
concisão. Mas, nesta dissertação, nada
poderemos avaliar do seu conteúdo filosófico, científico ou político, se
consistente, verdadeiro ou pura falsificação.
2.
SEGUNDO CAPÍTULO
A Obra
Abstrata: Uma Revolução Filosófica
Estudaremos
em seguida a criptografia encontrada nos textos da elaboração abstrata
do filósofo. Essa preparação é muito
mais longa do que o texto de aplicação a ser encontrado na filosofia
política de Comte, a ser vista no terceiro capítulo.
Analisaremos
aqui algumas dificuldades vistas na vasta elaboração teórica do filósofo, e, no capítulo seguinte, as
dificuldades encontradas na aplicação
de seus conceitos à prática política, isto é, em sua ciência política.
É importante
notar que o filósofo planejou sua carreira para chegar a um objetivo final bem
definido: dar à ciência política o
embasamento científico firme, pela constituição de uma sociologia verificável,
capaz de prever com segurança sua aplicação na
prática de um regime político mais adequado para a modernidade. A pretensão seria a de que a sociologia
científica não poderia ser uma simples descrição ou experimentação empírica
especializada: deveria oferecer leis
sociológicas infalíveis no plano abstrato, a serem aplicadas a cada caso
político concreto, com segurança, para previsão. Mas com a mesma certeza com que se aplicam
hoje as leis abstratas da astronomia e da física na técnica industrial, na arte
de navegar e nos satélites artificiais.
Para tanto, a nova ciência deveria ser plenamente demonstrável, e,
portanto, deveria resistir à dúvida cartesiana.
Deveria provar, por exemplo, que os regimes totalitários são de
realização impossível na sociedade contemporânea, a longo prazo, no
ocidente.
A
sociologia comtiana pretenderia conduzir com firmeza a uma Ciência Política
capaz de defender a democracia no
século XX, o que foi impossível à sociologia pobremente descritiva e
estéril do início do século e da crise de 1930.
A tragédia
da teoria política, de sua esterilidade e incompetência para defender o
liberalismo parece, talvez, estender-se até à sociologia e à Ciência
Política de nossos dias. Se assim de
fato fosse, ter-se-iam evitado as hecatombes das grandes guerras, do nazismo e
do comunismo no ocidente e no oriente, com centenas de milhões de vítimas. O desafio naturalmente permanece, por todo
lugar, até agora, sem solução.
Uma
reflexão cabe, então: se essa pretensão
de Augusto Comte, ao se colocar como um reformista social, seria mesmo ridícula
ou, se ainda, em nossos dias, seria indispensável alguma solução urgente e
eficaz do problema da guerra, da pobreza, da fome e de consumo dos tóxicos.
A
verificação só poderá ser feita decifrando os textos do filósofo, tanto na sua
produção abstrata como nos textos de aplicação política, comparada ainda à
verificação de seus resultados na práxis
do poder no Brasil e em outros países.
Neste
segundo capítulo o objetivo será a análise das formas criptográficas mais
comuns no texto comtiano, em sua parte abstrata. Como antes, examinaremos o estilo e a
semântica apenas do texto correspondente aos criptogramas mais importantes.
A questão
implica decerto na identificação clara e distinta do que seja a filosofia. Propõe Augusto Comte uma definição surpreendentemente
simples:
“filosofia é a explicação do mundo e
do homem”.
(Cours, III, 269; Martineau, I, 295)
Essa é uma
oportunidade de registrar a surpreendente capacidade de concisão do pensamento
comtiano, a ser constantemente vista em toda a sua obra. O que a torna por vezes por demais simples, e
por vezes muito complexa. Compare-se com
uma definição de Caio Prado Júnior:
“filosofia é o exame do conhecimento, do fato
cognitivo em sua generalidade, que se reduz à consideração sistemática do
essencial dos sucessivos fatos ou momentos em que se compõe e desdobra a
dialética humana: da prática ao Conhecimento, e desse Conhecimento de retorno à
prática.”[19]
O bem feito
Dicionário Básico de Filosofia, de
Hilton Japiassu e Danilo Marcondes, cuidadosamente registra ser difícil dar uma definição de
filosofia, já que ela varia conforme o filósofo e com o período histórico.[20]
E ainda
compare-se com a tentativa de Garcia Morente:
“filosofia é a ciência dos objetos do ponto de vista da
totalidade, enquanto que as ciências particulares são os setores parciais do
ser, províncias recortadas dentro do continente total do ser. - Mas isso é falso, - mas tem sentido: - a disciplina que considera
o seu objeto sempre do ponto de vista universal e totalitário. Enquanto que qualquer outra disciplina, que
não seja a filosofia, o considera de um ponto de vista parcial e derivado.”[21]
A definição
deveria servir às diversas formas de filosofia, sem exclusão nem mesmo das mais
absurdas e fantasiosas. E também deveria
convir às diferentes formas que a filosofia assume em sua evolução ao longo de
toda história. De acordo com a definição
comtiana todo saber humano, teórico ou prático, faria parte da filosofia. Ver o Quadro dos Conhecimentos, da
Gnosiologia, em anexo.
Na leitura
do texto de Comte dois termos são importantes: eles formam o par do método
com a doutrina.
Pretende
Comte que cada ciência tenha o seu método preponderante, mas sem exclusão dos
demais meios. Cada um desses métodos
deve ser aprendido sobretudo na doutrina científica correspondente, onde
predomina. Refere-se o filósofo aos Trissotinos
de Molière, que pretendiam
ensinar a arte da dedução sem que tivessem eles
próprios aprendido e executado qualquer dedução matemática. (Catecismo,
p.208)
A relação
do método com a doutrina liga-se, assim, com a aprendizagem da habilidade. Aprende-se a nadar, nadando, jamais pela
leitura ou pelo discurso sobre a natação.
Porque a habilidade de execução exige a percepção pessoal e
intransferível da gradação do esforço e do ritmo durante a realização da
tarefa. O mesmo se dá ao pesquisar
e ao filosofar.
Assim
pode-se bem interpretar a muito citada recomendação kantiana de que a
filosofia não se ensina, a filosofia se aprende. Ou seja, aprende-se a pensar, pensando. Ou será que se aprende a pensar, comentando o
pensamento alheio?
E, de fato,
se assim for, filosofia não se
aprenderia lendo ou pensando os comentadores da filosofia ou dos
filósofos: --- somente aprende-se a filosofar,
filosofando!
A
determinação clara da relação entre o sujeito e o objeto é fundante do
conceito de relativismo em Augusto Comte, válido para todo tipo de saber
humano.
No quarto volume do Système de Politique Augusto
Comte proporia uma “filosofia primeira”, como o conjunto dos princípios mais gerais da
gnosiologia, fundantes de todo o conhecimento.
Nessa nova “metafísica” define-se que o saber nada mais seria do que uma hipótese às vezes confirmada, às
vezes rejeitada, ou seja,
nada mais é do que mera suposição subjetiva, humana.
(Politique,v. IV, p.173,
174; ver também no Cours, v. VI, p.728 e seg.)
Esse seria
o princípio gerador da teoria do conhecimento, a lei-mater da epistemologia:
“Elle consiste dans le principe, vraiment fondamental,
qui partout prescrit de former l’hypothèse la plus simple que comporte
l’ensemble des documents à représenter.”
O autor
definiria a verdade, então, assim: verdade
é a hipótese tomada para satisfazer o conjunto de dados conhecidos do problema. A verdade então é variável, relacionada com
os conhecimentos disponíveis, no tempo e no espaço.
Toda o ato,
mesmo o mais simples, é precedido da elaboração de um plano de ação, sempre
feito sobre hipóteses, por vezes por suposições não verificadas. E todo o conhecimento se relacionaria com os
dados, com as observações, com os resultados, que poderão ter origem objetiva,
exterior, ou interior, subjetiva, mas sempre processados no nível subjetivo, da
razão lógica, da imaginação.
Entenderia
então Comte que um povo primitivo, em sua adoração mágica, tinha aí, nessa
crença, a sua verdade, a sua fé. Seria o seu positivismo de então, o seu
saber. Para o filósofo, os humanos
seriam todos sempre positivistas, em diferentes graus de evolução. Porque a verdade seria sempre relativa,
perfectível, logo imperfeita.
E a lei-mãe
da filosofia, como a dignidade do tema exigiria, seria a lei-mãe da fé, de toda fé.
Porque a fé é o aceitar conceitual
antes e independente da
aceitação pela razão. É,
portanto, uma hipótese, mas uma hipótese muito sagrada, muito especial, posta
na mais alta posição.
Um aforismo
filosófico proposto por Comte em sua juventude afirmava que
“tudo
é relativo, eis
o único princípio
absoluto”
(Cours, VI,746.747,749,750;
GIANOTTI, 1973, p.68,69)[22]
É a
afirmação feita pelo pretensioso pensador, que tem a coragem de dizer que o
saber absoluto não existe, que
nada de eterno foi jamais dito ou feito, que tudo sempre muda, que a mutação no
pensar e no fazer é a regra definitiva.
Ou melhor, que a evolução é a regra.
O saber
tornar-se-ia definitivo no sistema filosófico de Comte:
---
definitivamente em
mutação...
Mas essa
mutação do conhecimento não é efetivamente arbitrária. Ela se faria por correções sucessivas,
descobertas e repetidamente testadas no estudo das relações
entre os fenômenos do ser.
Afirmaria
Comte, portanto, a verdade dos mitos oportunos, indispensáveis à vida e a
unidade ou harmonia dos humanos, em seu tempo, em seu lugar, no indivíduo em
liberdade e no grupo em coesão.
E,
curiosamente, não tem essa pequena e
simples assertiva ---
“tudo é relativo” --- nenhuma dificuldade semântica, nenhuma palavra
nova, é livre de qualquer neologismo.
É, no
entanto uma revolução do pensar. A revolução mais geral, mais importante e
mais difícil de todas: a que tem por fim
a refusão completa do sistema social! (COMTE, 1972, p. 68)
Será mesmo
de interesse a pesquisa da realidade e das conseqüências da continuada
positivação progressiva do conhecimento em nossos dias. E saber se esse movimento ameaça a filosofia
dos deuses e dos entes. Queixa-se
mesmo Jacques Maritain do mau
hábito introduzido no raciocínio de nossos dias pelo estudo científico, dificultando a
apreensão de noções metafísicas:
A elucidação de questões morais, diz Maritain, são
filosóficas, dependentes da
metafísica; e elas nos escaparão se recusarmos a
trabalhar ao nível da visualização filosófica e nos fixarmos no conhecimento
experimental. Essa é uma dificuldade constante, porque os
espíritos contemporâneos estão habituados ao conhecimento experimental e
deslumbrados por ele.[23]
A
positivação do saber será em Comte dos mais importantes criptogramas. Será o criptograma da mudança de método e de
conteúdo: a revolução metodológica e
dogmática. A filosofia deixaria de lado a pretensão ao
saber absoluto, tornando-se relativa,
depois de ter sido, sempre, por todo o tempo, absoluta! E mais recentemente, em graus
variáveis, metafísica! Na modernidade, até mesmo definida como
puramente metafísica![24]
A previsão
dos acontecimentos, a que a filosofia
sempre se propôs, seria mantida, mas agora feita com a certeza da
ciência. É essa a profunda revolução em
andamento na modernidade, posta na mesa de debate. Em nossos dias um debate felizmente
livre. Mas essa mudança radical não
poderá ser feita por meio de uma simples e fácil comunicação. Haverá dificuldades sérias de compreensão
nessa alteração profunda no modo de pensar. Haverá dificuldades. e muitas: portanto, haverá muitas formas de
criptografia.
Será essa
uma forma de criptografia, de dificuldade semântica, com toda a generalidade
filosófica: a criptografia da revolução
filosófica.
2.1
COMTE: O ÚNICO FILÓSOFO
LIBERAL
O
liberalismo inarredável de Augusto Comte é, entre suas teses inovadoras, das
que mais são desconhecidas e, por isso mesmo, deturpadas.
No entanto,
Comte prega a
liberdade
Ele apresenta a prova de que a liberdade é
necessária, isto é, que a liberdade é inevitável e indispensável. É condição social necessária na modernidade
e também
no mais remoto passado.
Mas essa
pregação libertária não é lida. A
pregação em favor da liberdade, alterada por muitas razões, entre elas também
pelas dificuldades semânticas, transforma-se paradoxalmente numa pregação
puramente ilusória em favor da ditadura como tirania.
Esse é um
dos motivos por que persistimos, aqui, com o estudo desse difícil processo de
comunicação.
Augusto
Comte, tantas vezes mostrado como autoritário, em declaração séria, confiante,
auto proclama-se como
o único pensador
a defender a
liberdade --- como
sistema
Será
racional a pretensão de Comte em tornar-se o grande protetor da liberdade? Será dando à sua obra o caráter de
rigorosa abertura, como doutrina verificável, colocada ao
livre exame, sempre sob a premissa de demonstrabilidade ? Porque uma doutrina demonstrável não temeria
a examinação livre, que se torna mortal aos conceitos absolutos. E porque o caráter unívoco da ciência
moderna explicaria esse exclusivo
atributo.
Para
Augusto Comte, quem elaborar uma outra doutrina demonstrável obterá, independentemente,
a mesma doutrina, exceto em pormenores secundários, uma vez que a doutrina
demonstrável resultaria da observação controlada e repetida, independente da
vontade dos cientistas, dos deuses, ou das entidades ou de categorias fundantes. E não seria fruto da vontade pessoal de
poderes intangíveis ou da ação de entidades metafísicas impessoais. Ou fruto das intuições arbitrárias
não-sensoriais de pensadores, nem de registros em livros, ou de tradições, por
mais sagrados, uns e outros, por mais consagrados, famosos ou mais antigos que
sejam.
Por essa
razão Comte não pretendia elaborar um comtismo, mas uma filosofia superior a
seu próprio autor, um “positivismo”. A ser , em suas próprias palavras, uma
doutrina “superior a seus órgãos quaisquer”.
Por isso,
cada ciência pura ou abstrata apresentaria o caráter de intersubjetividade,
sendo o único saber possível, para as mesmas condições de análise, a
nível abstrato, vale dizer, fenomênico, fora da concretude do ser. Essa a base racional da universalidade da
ciência moderna, em nada autoritária, mas plenamente livre, hoje utilizada na
globalização irreversível da economia e do saber planetário. Para consolo da liberdade de sonhar na
poesia, na arte, na metafísica, o sonho não será jamais proibido, apenas
tornar-se-á um sonho consciente, relativado, da mesma forma encantador, cada vez mais empregado para a
felicidade dos humanos.
E a
liberdade? Como será definida a
liberdade por Augusto Comte? De forma
explícita, “a liberdade consiste em toda parte em seguir sem obstáculos as leis
peculiares ao caso correspondente”. (Catecismo, 243,244)
A definição
tem uma aparência autoritária : só haveria liberdade para obedecer às
leis. O autor exemplifica com a queda
de um corpo em liberdade, em queda livre.
Só há liberdade aí, se não houver impecilhos ao cumprimento da lei. Mas para quem supõe o poder individual
completo, sem lei, para quem definir liberdade como sendo o mais amplo
arbítrio, essa definição será totalitária, sem remédio. No entanto, resta refletir que “sem
obstáculos” indica que também não haverá imposição para seguir as leis: em
outras palavras, a liberdade consiste
na possibilidade de seguir “voluntariamente” as leis. No caso, as
leis naturais. Como veremos, depois, no
exemplo dado pelo autor, da liberdade do cão comparada ao cativeiro do leão.
No Discours sur l’Ensemble du Positivisme,
editado como apresentação preliminar ao Système
de Politique, escreveu o autor claramente
sobre a liberdade, onde está a corajosa afirmação de ser sua doutrina e ele
próprio o órgão único de defesa
sistemática da liberdade :
“Désormais
le positivisme constitue réellement le seul organe systématique d’une véritable liberté
d’exposition et d’examen, que ne peuvent
franchement proclamer des doctrines incapables de résister à une discussion
approfondie, comme étrangères à toute démonstration
décisive.” (Politique, I , 122)
As
doutrinas “estrangeiras a toda demonstração” seriam as teses indemonstráveis
absolutas do teísmo e da ontologia metafísica, permanentes alvos de sua violenta
oposição. Seria, talvez, justificada
pelo cuidado em manter a verificabilidade de sua conceituação, que leva Comte a
colocar de lado com rigor essas doutrinas, incapazes de conduzir a previsões
seguras, certas, ao mesmo tempo em que fogem à possibilidade de demonstração.
O autor
expressa, então, sua posição em prol da liberdade, que somente uma doutrina que
fosse demonstrável poderia defender.
Liberdade que, nas páginas seguintes, estuda em seus diversos
aspectos. Seria, de fato, interessante
pesquisar a correlação natural, esperada, que possa existir entre a filosofia absoluta e o conseqüente governo absoluto.
Isso porque, quem pretende estar de posse do saber absoluto, por
conseqüência poderá fazer, e certamente o fará, a imposição de sua doutrina
coercitivamente, com a violência, por meio do regime político absoluto. A proposta de Comte, relativista, seria de
convencer, “filosoficamente” pela persuasão, pelo consenso, sempre pelo
livre assentimento, sob a condição necessária da liberdade de aceitação ou não
da doutrina reformadora. O filósofo
apresenta, em razão de sua completa confiança no poder da liberdade individual,
uma defesa da individualidade que chega a um aparente exagero, ou à pura
demagogia. Defesa do trabalhador
e das liberdades feita tanto na doutrina abstrata, como em sua aplicação na
ciência política, no regime republicano.
Onde um adversário, no Rio Grande do Sul, Assis Brasil, viu uma “democracia exagerada”.[25]
Também
refere-se Augusto Comte explicitamente à palavra liberdade quando trata do lema
“Liberdade e Ordem Pública”, de forma elogiosa. Identifique-se seu estilo, enquanto diz, em
relação à divisa por ele próprio proposta, de
“Ordem e Progresso”:
“... je doive ici me borner à indiquer sa
filiation et son avénement. Elle se rattache à la precedente, ainsi que celle-ci
se liait à la première, par l’un des éléments de cette combinaison sociale,
nécessairement binaire comme toute autre quelconque, même inorganique. D’ailleurs, elle consacre aussi, à sa manière, la notion commune aux deux
autres, puisque tout progrès
suppose la liberté.” (Politique, I,380)
“... devo aqui limitar-me a indicar sua filiação
e seu aparecimento. Ela se prende à
precedente, como esta se ligava à primeira, por um dos elementos dessa
combinação social, necessariamente binária
como toda outra
qualquer, mesmo inorgânica. Aliás, ela consagra também, a sua maneira,
a noção comum
aos dois outros, porque todo
progresso supõe a
liberdade.”
A
construção da frase compara a segunda divisa à que se referiu antes, e com
outra anterior, Liberté, Égalité. Afirma que
toda combinação é necessariamente binária, isso de passagem, e que mereceria
uma explicação. Mas nos interessa de perto saber que para o autor implica na liberdade o conceito de progresso de seu lema “Ordem e
Progresso”. Ou, de outra forma, implicaria em que o despotismo, sem liberdade,
não constitui progresso.
Esse texto
mostra novamente o estilo de leitura difícil, onde as idéias se escondem em sua
apresentação condensada, imbricada cada frase com referências a outras, no
mesmo período ou a outros períodos mais distantes. Mas está aí a preocupação
clara em favor das plenas liberdades humanas.
O texto
original do autor, mostrado acima, deve ser comparado com sua tradução para o
inglês. Notar em especial a como o
tradutor, inteligentemente, para maior clareza,
alterou muito a frase, embora perdendo a concisão original:
“I have now
only to show its connection with the other mottoes of which we have been
speaking and the probability of its adoption.
Each of them, like all combinations, whether in the moral or physical
world, is composed of two elements; and the last has one of its elements in
common with the second, as the second has in common with the first. Moreover, Liberty,
the element common to the two first, is in reality contained in the third; since all
Progress implies Liberty.” (Polity, v. I, 306)
As
alterações feitas pelo tradutor esclarecem o pensamento do autor, constituindo
o que chamaríamos uma “chave” de decifração do texto original.
Comparando as duas formas, admira-se a
elegância do estilo original de Comte, apesar mesmo da profusão de pronomes,
do excesso de adjetivação, com a criptografia resultante.
Elegância
porque o texto se apresenta esbelto, conciso, garboso. Será oportuno avaliar se, de fato, o autor
conseguiu clareza, a precisão e a concisão
que pretenderia obter.[26]
Assim, paradoxalmente, temos, no positivismo
comtiano, uma teoria científica da liberdade, uma pregação da liberdade, mas
que ficaria escondida, vendada, por muitas dificuldades semânticas e naturais
resistências inerciais contra a revolucionária mudança positivadora das luzes
da modernidade.
A leitura
do texto comtiano sofre, assim, o pesado ônus de uma injusta criptografia da doutrina da liberdade.
Pode
verificar-se como as palavras por vezes escondem as idéias, como no caso da
noção clara de liberdade. E até mesmo
conceitos básicos, quando “em
liberdade”, “livre”, passa a ser escrito como “digno”. No texto original, referindo-se à separação
dos dois poderes, o poder material e o poder das opiniões, lê-se:
“Cette
séparation systématique devient aussi la base nécessaire de la saine politique
moderne sous un second aspect fondamental, comme autant indispensable à
la digne activité personnelle qu’à
la sage coopération sociale. (Politique, I,366)
O tradutor
viu a liberdade onde ela não está claramente expressa, ao que parece, de
maneira acertada :
“But there
is another aspect of the question of not less importance in sound polity. Separation of temporal from spiritual power
is as necessary for free individual activity as for social
co-operation.” (Polity, I, 294)
A
“separação” referida foi esclarecida na tradução. É importante notar que “separar” nesse caso
indica que o governo temporal, coercitivo, não imporá sua opinião, suas
doutrinas, quer religiosas, quer científicas, pelo poder da força. Indica que os formadores de opinião poderão
exercer em plena liberdade suas funções de jornalistas, professores,
sacerdotes, independentemente e sem os subsídios oficiais e dos
correspondentes compromissos com os poderosos.
Na teoria
que denominou de “teoria geral da religião” ou “teoria positiva da unidade humana”, Augusto Comte apresenta considerações que desafiam a
leitura e a compreensão de qualquer pesquisador contemporâneo da sociologia, da
psicologia e da política. Isso porque a
proposta aparece sob uma roupagem vocabular “religiosa”, que, para o comum dos
estudiosos é abominada, como sendo um
teísmo ultrapassado pela ciência, com seus longos parágrafos, embora com
períodos mais curtos, como se pode encontrar na
Politique, v.II, p.7 e
seguintes.
Como teste
de sua capacidade de leitura e compreensão da redação de Comte, sugiro que se
leia e compreenda o importante texto seguinte, sobre a liberdade, no original,
antes de continuar:
“Afin de la
mieux caractériser ( l’affection
religieuse ) reprenons un moment la disposition théorique qui
prévalut plus ou moins jusqu’à l’époque très-récente où la biologie démontra
suffisamment l’existence naturelle des affections bienveillantes. L’unité morale ne pouvait alors résulter que
d’un principe égoïste. Or, j’ai assez
prouvé déjà l’inaptitude spontanée d’un tel régulateur. Le sentiment de la dépendance extérieure ne
saurait y suppléer réellement. Quelque
profonde que puisse être cette croyance, elle inspire tout au plus une
résignation forcée, si le dehors oppose une résistance évidemment
insurmontable. Mais cette triste
situation morale diffère beaucoup d’une véritable discipline affective,
qui doit toujours être libre pour devenir pleinement efficace. Il est aisé de le sentir en comparant l’état
moral d’un chien domestique avec celui d’un lion
captif. Quand une longue expérience
inspire au second une passive résignation, l’unité morale n’existe point en
lui: il flotte sans cesse entre
une lutte impuissante et une ignoble torpeur. Au
contraire, l’essor affectif du
premier devient direct et continu aussitôt qu’il a pu subordonner
ses penchants égoïstes à ses
instincts sympathiques. La comparaison se trouve encore plus décisive en
opposant l’esclave antique au prolétaire moderne. Quoique tous deux, sous le rapport
matériel, présentent à peu près la même existence personnelle, tant active que
passive, la liberté de celui-ci le rend seul susceptible d’une véritable
unité morale, en permettant l’essor de
ses affections bienveillantes. La
plus dure condition de l’ancien esclavage devait consister, chez les belles
âmes, à ne pouvoir jamais vivre
réellement pour autrui, leur office étant toujours forcé, ou du moins
supposé tel. On sent
aussi combien la conviction habituelle de l’assujettissement extérieur est
loin de suffire à l’unité humaine, quoiqu’elle y soit indispensable à un
certain degré. Car, losque cette
dépendance devient trop intense, elle empêche même la discipline affective qui
tend à résulter d’un essor spontané
des instintcts altruistes. Le bonheur et la dignité de tout être animé
exigent donc le concours habituel d’une
nécessité sentie et d’une libre
sympathie.” (Politique,II,14,15;
Polity, II,13,14)
O texto
parece um estudo sobre o sentimento do amor divino, dirigido aos deuses, sobre
as normas piedosas da religião. Mas de
fato, o autor expõe ali uma original teoria da liberdade humana!
Sim, diga-se novamente, Augusto Comte teria exposto na sua
sociologia --- a teoria
da liberdade!
Trata-se de
uma teoria
sociológica da liberdade. Verifique-se, no entanto, no texto original
se é a liberdade completa, democrática.
Ou se é aquela liberdade para
implantar o socialismo pela revolução e depois torturar e matar a
liberdade. Ou se será liberdade para
todos, não a liberdade para impor
doutrinas pelas verbas públicas e pela força política, ou para tentar a
modificação moral, dos costumes, pela violência policial, de modo que o
resultado seja acabar com a coerência pessoal e com a liberdade individual.
Liberdade
que é identificada, no texto comtiano, a partir das religiões desde a mais remota antigüidade, tem sua conceituação
analisada com rigor, depois justificada
em pormenor e assim, pelo raciocínio, louvada.
Compare-se
a aparente significação religiosa do texto original com a tentativa seguinte de
uma tradução livre em linguagem “laicizada”, explicitada e comentada :
“Para caracterizar melhor o
sentimento de coesão social, ou de
unidade grupal, retomemos por um momento a explicação teórica que prevaleceu
até uma época bem recente, ainda antes que a biologia tivesse demonstrado
suficientemente que os sentimentos altruístas ou associativos fossem
espontâneos e naturais. Essa teoria
ultrapassada afirmava que a unidade de
comportamento ou coesão moral resultava sempre de um sentimento
egoísta. Ora, eu já provei
suficientemente a incapacidade natural de tal regulador, a inoperância do
sentimento pessoal do egoísmo, para congregar os indivíduos. A
sensação da opressão pelo mundo exterior não poderá, na verdade, substituír
o egoísmo nessa atuação. Por mais
profunda que possa ser a sensação opressora externa, ela inspira no máximo uma
resignação forçada, caso as condições se oponham com uma resistência claramente
invencível. Mas essa triste situação
psicológica difere muito de uma verdadeira
disciplina afetiva, dos
sentimentos, que deve ser sempre livre para que possa ser plenamente eficaz. Isso é fácil de sentir quando se compara o
estado moral, do comportamento, de um
cão doméstico em liberdade com o que acontece na sujeição de um leão cativo preso numa jaula.. Se uma longa experiência mostra ao leão que
só lhe resta uma resignação passiva ao seu cativeiro, a coerência de conduta
ou unidade moral não existirá mais para ele: seu comportamento oscilará
sem parar, ora com uma luta impotente, ora com
um torpor ignóbil, estéril. Ao
contrário, o processo afetuoso, emocional, de convergência do cão se torna
direto e continuado, imediato e permanente, logo que o animal consegue subordinar
suas tendências egoístas aos sentimentos altruístas de simpatia, de
amizade. Essa verificação se mostra
mais clara quando se compara o escravo
da antigüidade com o trabalhador
moderno. Embora ambos, no aspecto de
bens materiais, tenham aproximadamente as mesmas condições de vida pessoal,
tanto ativa como passiva, a liberdade do
trabalhador lhe garante a possibilidade de uma verdadeira unidade moral,
que é a sua coerência de atitudes, o que lhe permite cultivar os sentimentos de bondade, de
associação. A situação mais dura, mais
desumana, para os indivíduos de melhores sentimentos, submetidos à escravidão
antiga, devia ser a impossibilidade de viver de forma voluntária em
sociedade, isto é, o fato da coerção
impedir-lhe de viver altruisticamente,
associativamente, ou seja, de viver para outrem, em
liberdade. Isso decorre de serem suas
tarefas sempre forçadas pela violência ou pelo menos pela constante ameaça de
violência. Percebe-se porque a
consciência constante da opressão
externa fica longe de ser suficiente para promover a coerência, que é a
harmonia ou a unidade mental e comportamental da vida humana,
apesar de ser o contingenciamento moderado indispensável em grau tolerável. Isso porque, a partir do momento em que essa
dependência se torne muito intensa, ela de
fato impede a disciplina afetiva ou
emocional, ou seja, a
auto-correção voluntária, que só ocorre pela criação espontânea e em
liberdade dos instintos da sociabilidade do altruísmo. Para todo ser, animal ou homem, tanto a felicidade quanto
a dignidade exigem, portanto, a
combinação permanente de uma necessidade sentida e com a liberdade para a
convergência, para a livre manifestação do altruísmo, para a simpatia só
possível sem coerção.”
Verifique-se
que até os animais, para Comte, exigem a liberdade, quando em estado de unidade
moral, de coerência, de coesão.
A
comparação entre o original em francês e essa tentativa de explicitação por
idioma leigo em língua portuguesa, mostra como o texto comtiano, sem ser
ambíguo, apresenta uma riqueza de significados postos como que numa forma
condensada, algo desordenada, mas concisa, escondendo, subterraneamente, em
modo “criptográfico”, importantes idéias e conceitos resultantes da extensa e profunda revolução do pensamento
da modernidade proposta por
Augusto Comte.
Nos quatro
tomos do “Système de Politique”, a
comunicação é feita sob uma roupagem “religiosa”, plenamente justificada
pelo pensador. Mas essa forma redacional
provoca o afastamento à sua leitura e leva à deturpação do texto comtiano tanto
por parte dos revolucionários metafísicos, por serem eles sutilmente
anti-religiosos, por vezes até abertamente ateístas, quanto também da parte dos
religiosos, teístas, naturais inimigos das doutrinas comtianas relativistas,
científicas e emancipadoras do pensar. São
dificuldades resultantes da radical revolução
filosófica de Comte, para a regeneração da harmonia e coesão
social na modernidade. Com o
emprego de um texto que conta, em adição, com a reação contrária dos
beneficiários remanescentes, mesmo em nossos dias, dos privilégios inerentes ao
regime político e mental da Idade Média, um regime há muito já extinto, mas
ainda não totalmente substituído.
Por mais
que tenhamos exposto a revolução comtiana do pensar, não poderemos atestar,
aqui, sua validade. Todas essas teses merecem uma severa
verificação e meticulosa crítica. Podem
parecer belas essas propostas de Augusto Comte, mas podem ser irreais,
enganosas.
2.2 THE SERVICE
AFTER DEATH
O filósofo dramatiza a continuidade verificada
na cultura humana acumulada através das gerações
chamando-a de “le service subjectif”, a que
o tradutor inglês denominou
com feliz clareza
de
“the service
after death”.
Essa
expressão serve para mostrar com ênfase a continuidade das ações na cultura
social dos humanos, vencendo o hiato da morte, na separação biológica entre as
gerações sucessivas. O que explicaria
fatos como teria agido Aristóteles, muitos séculos depois, agido na
medievalidade, introduzindo sua metafísica intelectualizada na doutrina da
época.
Na
sociologia abstrata, Augusto Comte, ao pesquisar a teoria da estática social,
no volume II do Système de Politique,
apresenta o estudo da estrutura da sociedade, isto é,
de seu arcabouço, de suas instituições,
a que chama de “a ordem
humana”. Não se deve esquecer que
a sociologia é a fonte da revolução
filosófica comtiana :
a lei dos três estados é sua base, mas essa lei não é toda a sociologia,
nem é, nessa sociologia, a lei única.
É com a teoria
geral da unidade humana, a que Augusto Comte denomina de “Teoria geral da Religião” que a sociologia
estática se inicia. Assim, para ele, a religião está associada à idéia de unidade ou coerência mental e moral dos
humanos, como sinônimos perfeitos.
Mas a
leitura da sociologia comtiana apresenta, para o leitor contemporâneo,
problemas adicionais, além das dificuldades de redação encontradas no Cours de Philosophie. No Système
de Politique o autor passa a empregar valores semanticamente modificados
para as palavras usuais, o que resulta num vocabulário alterado, ininteligível, de feição religioso-teísta para o
leitor desavisado. Mas esse caráter
teísta é apenas aparente; na verdade, a sociologia de Comte se mantém
científica, verificável, cartesianamente demonstrável. Apenas o
vocabulário se altera, de forma justificada.
Em primeiro
lugar o filósofo elabora a teoria geral da unidade humana, seguida da teoria da
propriedade material e do capital, da teoria da família, da linguagem, das
funções sociais, da teoria da ação filosófica e finalmente da teoria dos
limites de variação da estrutura social.
É em
sua teoria da
unidade humana que Comte enfatiza a liberdade. Ali estará, para o filósofo, a demonstração da importantíssima teoria da liberdade. E até mesmo
santifica a liberdade humana, como se lê no texto seguinte:
“Pour compléter l’appréciation sociale de la vraie
synthèse, on doit remarquer son aptitude spontanée à rallier sans comprimer. Car, la saine notion du Grand-Être consacre
autant l’indépendence que le
concours, comme également nécessaire au service fondamental; puisque
toutes les fonctions collectives exigent finalement des organes
individuels. Une sincère impulsion
sociale ne méconnaît jamais la liberté
personnelle que faute de lumière, et même d’extension. Ce conflit résulte surtout d’une grossière
ébauche, mentale et morale, de la synthèse altruiste, quand elle se borne à la solidarité, en négligeant la continuité. Il faut donc s’inquiéter peu d’une telle
aberration, directement contraire aux conceptions et aux sentiments qui
caractérisent le mieux la religion systématique de l’Humanité. Envers le vrai Grand-Être, le service subjetif domine de plus en plus le service objetif. Or, la subjectivité suppose toujours des
sources individuelles, que leur libre
concours peut seul convertir en impulsions collectives. Loin d’altérer l’indépendance, la religion positive la sanctifie et la développe, en lui offrant une noble destination. Indispensable à la dignité personnelle,
cette condition n’importe pas moins au service social, que paralyserait toute
oppression. Le vrai concours doit
toujours être facultatif, sauf la juste appréciation des motifs qui
détermineraient à le refuser. En un mot,
le régime altruiste suppose et produit la confiance,
comme il exige et développe la responsabilité. D’une autre part, il consacre directement
toutes les vraies supériorités, naturelles ou acquises, en vouant toujours les forts au service des faibles. Loin de disperser la puissance, spirituelle ou temporelle, il la concentre systématiquement, pour
la mieux adapter à son office social. En
appréciant le passé, il honore dignement les éminentes individualités dont
chacune a tant influé sur l’ensemble des destinées humaines. La religion positive inspire à tous les
serviteurs du Grand-Être une sainte émulation pour le représenter autant
que possible. Elle appelle la vénération
universelle sur chaque personnalité vraiment digne. Son avénement normal peut seul contenir aujourd’hui les tendances,
aveugles ou vicieuses, que poussent à comprimer
les inégalités réelles au lieu de les
utiliser. Un juste sentiment de la
valeur individuelle doit habituellement seconder la moralité positive, en
disposant à mieux combattre les impulsions vicieuses que altèreraint une force
consacrée au Grand-Être.” (Politique, II,73,74)
Poderemos
saber se ... “la condition indispensable
de la liberté paralyserait l’oppresion”, ou se
... “l’oppression paralyserait le service social”. Compare-se com a versão inglesa, que por cima
mostra como Augusto Comte se refere ao socialismo
de seu tempo sem nomeá-lo no original :
“To
complete our view of the social efficacy of the true Synthesis we must turn to
its power to unite without
coercing. For a sound conception
of the Great Being makes the
independence no less sacred than
the cooperation of the members: both
are equally necessary to the essential service;
since the parts performed by an aggregate are impossible without
individual organs. It can only be an unintelligent,
and even a narrow, view of social duty, which can ever lead an honest social
reformer to undervalue personal liberty. The supposed antagonism between individual
liberty and social combination comes from a crude attempt to found an altruistic
Unity, with only one mental and moral condition. These
socialist visionaries thought only of the solidarity of living men, and forgot the continuity of ages.
We need apprehend little from this misconception which is directly
contrary to the ideas and the feelings which characterise the systematic
Religion of Humanity. As regards the
Great Being the subjective service after
death constantly becomes more
and more important, compared with objective
service in life. Now subjectivity
invariably supposes individuals as its authors;
and their free cooperation
alone can endue them with an aggregate influence. Far from lowering the freedom of the
individual, the Positive religion sanctifies and develops it afresh; for it supplies it with a noble
destination. This freedom is a condition indispensable to personal dignity: it is in
no less degree indispensable to every
service of society, which any form of oppression would paralyse. True cooperation ought always to be wholly voluntary; allowance being made for the motives which
cause it to be withheld. In a word the
alruist regimen supposes and produces the spirit of trust, as it exacts and
increases the habit of responsiblility.
On the other hand it directly sanctions every real form of superiority,
be it natural or be it acquired; for it devotes on system the strong to the service of the weak. Far from
breaking up and subdividing Power, whether spiritual or temporal, the
Religion of Humanity habitually concentrates
Power, to enable it better to fulfil its social funcion. In its judgment on the Past, it gives the
amplest honour to the illustrious characters, each of whom has done so much to
influence the destinies of men. The
Positive Religion inspires all the servants of the Great Being with a sacred zeal to represent that Being as
fully as possible. It invokes the
veneration of all towards every truly worthy individual. The full acceptance of this Religion alone
can check that spirit of blindness or of envy, which in our day would seek to
crush out the real inequalities, which exist amongst men; instead of turning
the inequalities to account. A
healthy sense of individual merit should invariably sustain our Positive
morality, and dispose us to combat all those miserable attempts to discredit
the power of individuals - a
power for ever consecrated to the
service of the Great Being.” (Polity,II,65,66)
O tradutor
incluiu a expressão “visionários
socialistas” como o sujeito produtor do esboço
grosseiro, tanto mental como moralmente, limitado à solidariedade, mas deixando de lado a continuidade. Explicitou também que solidariedade se refere
à coesão social entre os vivos, e a continuidade à coesão social entre as
gerações sucessivas na raça humana. Parece que acertadamente, deu o tradutor a chave do criptograma que encobria a
identificação do “esboço grosseiro” do ou sistema socialista puramente
material. E tal esboço teria desprezado a liberdade individual, numa visão política obscura, “unintelligent”, não inteligente, e mesmo “narrow”,
estreita.
O conceito de continuidade aqui referido é de alta
relevância na doutrina de Augusto Comte.
O serviço “after death” menosprezado ou desconhecido pelos pensadores
materialistas, é a força da cultura humana, o suave mas imperioso poder do
social sobre o indivíduo. Note-se bem,
que nada há de transcendental nesse
“depois da morte”, nada de ingenuidade mística.
Essa força,
cada vez mais significativa, esse poder cada vez maior do passado,
oferecido pela educação a cada pessoa humana, e aceito voluntária e
continuadamente, no elo de ligação do presente, é uma conceituação das mais
importantes da filosofia de Comte. Sua
filosofia deverá, decerto, ser identificada como a filosofia da cultura, a filosofia da liberdade pela cultura completa,
afetiva, intelectual e de ação, sempre independente e soberana em relação aos
poderosos, sem a coerção do poder político. .
Essa conceituação de extrema importância resulta no reconhecimento da
realidade do social na vida humana,
que hoje, nos poderia motivar a composição de uma paráfrase de conhecida
citação hegeliana ligada à razão e à realidade:
só o
social é real
e só é
real o social
E fica para
a nossa reflexão questionar como o
“after death” é real, como ele
pode dominar a ação política, pode dominar as emoções e a razão, mesmo sem
afirmar a continuidade da vida objetiva depois da morte. Ou se é apenas um filosofar inútil de um
filósofo tardiamente romântico, fanático pela liberdade, mas criptográfica e erroneamente
conhecido como autoritário e liberticida.
Será,
decerto, de grande interesse, verificar se a doutrina comtiana, pretendendo o
progresso sem retorno ao passado, mas dizendo-se venerante a ele, conseguiria
propor uma nova filosofia realizável, na forma de uma gnosiologia à moda de
religião, mas sujeita à dúvida de Descartes.
Deve-se
notar como o tradutor britânico explicitou bem outras expressões que têm
significações implicadas no texto comtiano.
Importante aqui é ver no texto, novamente, a pregação clara da ampla
liberdade individual, com a
valorização da desigualdade e do mérito de cada um.
Identifica-se
na tradução inglesa uma forma do que poderia ser a chave da criptografia no texto de Augusto Comte, porque o tradutor
explicita, desenvolve, esclarece, muitos dos conceitos implícitos no texto
original, mesmo mantendo o fraseado “religioso”.
E com essa
explicitação, confirma a existência de expressões criptográficas
não-intencionais usadas pelo autor.
Do mais
alto valor seria notar se, de fato, a sociologia de Comte demonstraria, por meio dessa teoria geral da liberdade humana,
que
a
liberdade é indispensável e
inevitável na modernidade
E também
encontraria o pensador essa liberdade, em diferentes graus, em todos os sistemas religiosos do passado, por mais primitivos que
fossem. O que, de fato, pode
verificar-se no apogeu de cada civilização,
excetados os seus períodos de
crise, como em suas fases de
formação ou de declínio.
A
demonstração de uma “teoria da
liberdade”, tal como indicada aqui, terá uma consistência admissível como
postulação científica em sociologia ? Ou
será apenas um “wishful thinking”, um pensamento apenas de intenção,
destituido de valor lógico ? O
questionamento não cabe aqui : apenas
indicamos que existe esse texto, com suas peculiaridades de comunicação, tanto
de emissão, como de recepção. Texto
que, sem dúvida coloca um desafio aos sociólogos e políticos que desconsideram
o saber filosófico da lógica abstrata, dando valor apenas à ação
sem reflexão ou apenas a
pesquisas empíricas na concretude.
Daqueles que desconhecem, se não
invertem ou menosprezam
o supremo
valor da filosofia e
o poder eterno
da religião
tidos como lixo ou como ópio do
povo, sem levar em conta uma gnosiologia, isto é, uma doutrina filosófica
indispensável para a coesão social dos humanos. Desconhecer
o valor teórico da liberdade e
da religião, levará, de fato, a decretar a própria impotência em
defendê-las, e será o mesmo que traçar uma rota que leva diretamente ao
totalitarismo, ostensivo ou disfarçado.
O que
estamos lendo faz parte da sociologia abstrata,
que está elaborada nos três primeiros volumes do Système de Politique. A
aplicação prática dessa sociologia, no que se chama hoje de CIÊNCIA
POLÍTICA, será encontrada em seu
quarto volume.
Deve-se
recordar sempre que não temos, neste trabalho, a pretensão de julgar como
errônea ou como acertada a teoria da religião de Comte. Nem de avaliar essa proposta, nem alguma das
numerosas teses do filósofo, de seus seguidores ou de seus oponentes. Nosso objetivo permanente aqui é pesquisar
o ocultamento da obra do filósofo, das formas que essas deturpações
assumem, de suas causas, para remover os obstáculos reais ou imaginários inerentes
ou adquiridos por seu texto. Somos
obrigados, por falta de recursos, a deixar aos cuidados de outrem, mais
aquinhoados para ofício tão complexo, a ocasião e a tarefa de defesa ou de
contestação da doutrina comtiana.
A
preservação da Grécia, como o lar do
livre pensamento, é mostrada como notável progresso na evolução do
ocidente. Na interpretação de Comte
essa libertação se deve ao predomínio, nesse politeísmo, dos guerreiros
sobre a casta sacerdotal do regime teocrático, o regime mais estável da
civilização humana. É o ponto histórico
que marca o início do processo demolidor da doutrina do teísmo, com a
introdução sutil, mas contínua, da libertação do pensar então preso ao mito
personalizado dos deuses, por meio das entidades da metafísica. No caso grego, as condições geográficas
impediam a atividade da guerra de conquista:
“cette
activité” ( a guerra) “détermine
implicitement une précieuse réaction mentale, d’où dépendit la
principale préparation de l’esprit occidental d’après la grande élaboration
grecque. Ayant heureusement brisé le
joug théocratique, le principe militaire,
contenu par l’ensemble de la situation, pousse alors toutes les hautes
intelligences vers la culture spéculative, d’abord esthétique, puis
scientifique, et enfin philosophique. Il
ne conserve d’activité essentielle que celle qu’exige la digne préservation de ce libre foyer théorique contre
l’invasion du théocratisme oriental.
Mais, en secondant les nobles penseurs d’où dépendait alors notre essor, ce polythéisme
intellectuel détermine finalement une profonde dégradation dans l’ensemble de
la population correspondante, où prévaut alors le genre d’existence qui
convient le moins notre nature. (Politique, II,92)
A
fecundidade e a confusão se mostram no texto: estabelece a filiação do
pensamento grego a razões militares e seu contingenciamento pelo relevo
geográfico. Pretende explicar a dedicação desse povo preponderantemente à
atividade intelectual.
E mostra
três fases distintas de desenvolvimento departamentado da atividade mental
grega, em seqüência, primeiro com um surto poético, depois pela pesquisa filosófica, e enfim com
uma fase científica. Qualifica essa dedicação ao próprio uso da razão, como a menos conveniente para os
humanos, o que se poderia tornar
estranho na pena de um pensador.
Nada indica
ser Comte um puro idólatra
da razão, considerando a própria razão menos conveniente à natureza humana.[27]
Neste caso,
interessa-nos verificar a aprovação pelo filósofo da defesa da liberdade dos
gregos, para verificar se esse comportamento estará em harmonia com o sentido
geral da filosofia comtiana em favor da liberdade e contra o
autoritarismo.
A pesquisa
que o autor pretende fazer da evolução social torna-se uma grande dificuldade:
exige do leitor um extenso e profundo conhecimento da história, aliado a grande
perspicácia de análise e a uma indispensável emancipação de preconceitos
religiosos e metafísicos. Com sua
interpretação histórica Comte quereria estabelecer uma filosofia do progresso e
uma sociologia, como sendo uma ciência de rigor, na pretensão de prever com
certeza e de dirigir com firmeza a ação
política.
Essa
escrituração secreta procurada na história parece estar codificada nos anais de
acontecimentos singulares e esparsos no tempo,
até então tidos esses registros, postos cronologicamente, como a única
história possível.
Comte
possui sempre, ou pretende ter, a chave para sua decifração “inalterável” ou
até “irrevogável” desses anais. Quer seja essa ambiciosa pretensão errônea,
quer seja ela de fato uma verdadeira competência, logo ofende a inteligência do
leitor, o seu desconforto aumentando de forma insuportável quando ele percebe
que jamais notou ou mesmo desconhece completamente os fatos mais simples usados
no raciocínio do filósofo. Fatos
apresentados pelo autor de forma incompleta ou implícita, que tornam a
comunicação do pensamento criptográfica.
Esse mal
estar ocorre, por exemplo, quando o filósofo se refere ao rei que perdeu uma
guerra por não saber de quantos soldados dispunha no campo de batalha. O leitor fica sem saber quem foi esse
importante rei. Seu nome não é dado.[28]
Mas o
abrangente resultado dessa leitura multidisciplinar de Comte nunca foi proposta
como emanada de um poder metafísico.
Essa obra de profeta científico
não se constituiria numa intuição arbitrária, de propriedade pessoal, como um comtismo
particular. A proposta se dispõe com
ousadia a enfrentar a dúvida cartesiana, ficando, assim, sujeita a toda
contestação possível.
Outras
passagens dos textos de Augusto Comte, em grande quantidade, atestam a forma
como o filósofo institui a mais ampla liberdade como sistema de maneira em sua filosofia e em sua doutrina
política. Decerto, desde que se possa
fazer sua leitura original e se consiga contornar as criptografias próprias ou
postiças ao texto comtiano.[29]
2.3 A
DITADURA
O conceito
de ditadura em Augusto Comte é o mais enganoso.
Ditadura,
no texto comtiano, quando entendido como tirania,
como regime de força, sem liberdade, é o mais freqüente dos erros, perdendo
apenas para a ocorrência da falsa propensão anti-liberal atribuída ao filósofo.
Comte
escolheu a palavra ditadura para
significar um regime presidencialista.
Tal regime seria claramente não parlamentar, e, embora monocrático, sua
sucessão seria feita fora da hereditariedade familiar, por processos que hoje
denominamos de democráticos.
Para
infelicidade, mesmo em sua época, a palavra ditadura já despertava viva
antipatia por estar relacionada ao despotismo e a regimes de exceção. Em nossos dias, após diversas desastrosas
ditaduras militares autoritárias, o nome tornou-se ainda mais ligado à tirania
extremada, sempre acompanhada da supressão completa das liberdades.
Por sua
repercussão ativa, a palavra ditadura no texto comtiano é
a
mais importante armadilha
semântica
capaz de enganar a
todos os seus leitores, com raríssimas exceções.
Todos os
estudiosos que empregam hoje a mesma palavra inconveniente --- ditadura - o fazem com a significação de autoritarismo
e de tirania violenta.
Simplesmente porque esse é o valor semântico dessa nefanda palavra,
aceito, em nossos dias, por todas as pessoas.
A exceção
dá-se apenas entre alguns adeptos da doutrina de Comte, que empregam a palavra ditadura candidamente, como se fosse a
mais bela da língua portuguesa. E essa
malfadada palavra é mostrada valentemente como se constituísse num valioso
troféu de originalidade da ciência política de Comte. Mas na ingênua crença de que, para todos os leitores e ouvintes,
ditadura seja um sinônimo da mais ampla liberdade...
A leitura
errônea de um autoritarismo em Comte, por resultar mais da ausência de
declaração nominal do termo “liberdade”, torna-se mais fácil de
explicar e de corrigir. Mas essa
leitura, sem a liberdade bem expressa, em conjunto com a afirmação de clara
proposta de ditadura, torna bem definida uma falsa tirania radical, um
autoritarismo inexistente no texto comtiano.
Embora totalitarismo muito real, bem ligível, mas apenas na aparência.
É a grande
armadilha da criptografia da ditadura.
Esse engano
de leitura pode deixar mal a competência do pesquisador, ao passo que o
filósofo liberal, considerado fanaticamente
liberal, que é Augusto Comte,
não precisa de defesa. Seu texto está
pronto e acabado há muitos anos. Mas
nesta dissertação não cabe provar o liberalismo de Comte. Essa virtude do pensador está em debate.
Assim se
construiu uma forma de criptografia em todos os textos de Comte. Mas não apenas dessa maneira, como já temos
visto.
Na filosofia da história proposta por
Augusto Comte é que se vai encontrar a gênese da palavra “ditador”. E exatamente para indicar a legitimação do
poder político fora de sua transmissão primitiva no regime de castas da
teocracia, pelo nascimento, como direito divino, absoluto, dos reis. Isso, na visão de Comte, ocorreu ao assumir
Júlio César o poder em Roma, vencendo a tradição aristocrática do Senado.
O autor
prefere o nome de ditador para
caracterizar o modo não-hereditário
de transmissão do poder, fosse por eleição, fosse por designação do antecessor,
tendo em vista as necessidades sociais do momento. Essa forma de passagem da força política foi
chamada por Comte de “sociocrática”,
nome a ser comparado com nome do antigo modo ‘teocrático”. Sociocrático tem uma significação similar à
de socialista, parecendo tornar mais claro tratar-se de um governo pelo bem
social.
Portanto,
paradoxalmente, o título de ditador
indicaria uma nova prática de sucessão política referida ao mérito.
Mas Augusto
Comte enfatiza que a escolha dos ditadores
romanos era feita essencialmente por
meios eletivos, na forma
como modernamente é desejado!.
No texto do
autor:
“La constituition impériale doit être soigneusement
distinguée de celle qui précéda le régime aristocratique, malgré les efforts
intéressés du parti patricien pour les confondre en exagérant leurs
ressemblances apparentes. Au fond, le
chef suprême s’y trouvait exactement qualifié par le titre de dictateur perpétuel, qui lui fut
d’abord assigné, puisque son autorité consistait surtout dans la permanence de
l’ascendant exceptionnel attribué, pendant les crises républicaines, au magistrat ainsi désigné. Le besoin de se rattacher spécialement à
l’armée fit bientôt prévaloir un autre nom; mais celui-ci, souvent usité jadis
comme récompense militaire, n’indiquait pas davantage ume analogie réelle avec
la royauté primitive. Jamais l’empire ne put devenir vraiment héréditaire: il resta toujours essentiellement électif, sauf quand le chef inspirait
assez de confiance pour qu’on lui laissât le choix de son successeur,
quelquefois étranger à sa famille. De
fréquentes catastrophes achevèrent d’ailleurs de prouver combien les nouveaux
maîtres de Rome différaient réelement de ses anciens rois”. (Politique, III,p.390)
Conforme o
estilo do autor, cabe sempre explicitar sua construção: essa maneira de escrever supõe que o leitor
saiba o que havia antes da constituição aristocrática. O “outro nome” referido depois, não está
expresso.
Vejam-se as
modificações feitas na tradução inglesa:
“The
constitution of the Empire must be
carefully distinguished from that of the Monarchy
which preceded the aristocratic regime, in spite of the interested efforts of
the party of the nobility to confound them by exaggerating their apparent
points of similarity. The title of permanent
Dictator, the first that was
assigned to the chief of the state, is the one which most exactly defines his office. For it was, in the main, but a
permanent form of the exceptional supremacy conferred, in times of republican
crisis, on the magistrate known by that name.
The need of a special connection with the army soon led to the adoption
of another title; (Title of Imperator, posto em nota de margem na página),
but this, already familiar as a reward for success in the field, did not
present any more real analogy to the early Kingship than the title of
Dictator. The Empire never succeeded in
becoming really hereditary; it always continued to rest on an essentially elective basis, save when the character
of the ruler inspired such confidence that he was entrusted with the choice of
a successor, who was often drawn from ouside his own family. Moreover repeated catastrophes furnished
conclusive proof of the substantial difference between the new rulers of Rome
and her ancient Kings. (Polity, III,329)
A tradução
refere-se claramente à monarquia, que precedeu o regime aristocrático. Em outro local Comte faz notar que sempre a
transição da teocracia, em que o poder está com o sacerdócio, para o politeísmo
militar, onde os guerreiros prevalecem, é feita pelos reis. Mas a monarquia logo desaparece, por se
mostrar inadequada ao desenvolvimento da atividade coletiva da guerra. Só depois da monarquia é que o regime do
politeísmo militar se converte, na Grécia, numa democracia, e em Roma, numa
aristocracia. Mas tanto a realeza, como
a democracia e a aristocracia se apresentam como revolucionárias, comparadas
com o regime da teocracia. (Politique,
III, 224)
O “outro
nome” indicado nos textos é o título de imperador, que em inglês aparece na
margem direita do texto, fora do alinhamento, e na mesma linha. Dessa forma, o tradutor apresenta a “chave”
para a criptografia do texto original.
O emprego
do termo “ditadura”, portanto, deveria
dar a entender um governo não
hereditário, como é o presidencialismo, com uma sucessão democrática,
por eleição popular ou por
indicação consensual. O que se chamaria
hoje, de um regime ...
“democrático”. Mas não foi nessa
direção que caminhou a evolução semântica do termo ditadura. Levou, isso sim, à já identificada confusão
semântica, a grande criptografia da
ditadura.
Com o fim
da Idade Média, a análise histórica feita por Augusto Comte vê a concentração do poder como
resultante do declínio do feudalismo e de sua doutrina. O que promove a usurpação pelo poder material
de funções do governo espiritual enfraquecido, em decorrência da perda de
liderança do papado.
Instala-se,
segundo o filósofo, então, a crise da modernidade, a partir do fim século XIII,
e a condição social se torna revolucionária, acabando a comunidade de
pensamento, estabelecida então em plena liberdade pela filosofia medieval.
Os governos
modernos, portanto, se mantêm pela força, e não mais pelo prestígio
de uma doutrina comum aos povos, pelo consenso.
A esse tipo de governo, considerado como anômalo por Comte,
feito sem consenso, dá o autor também o nome de ditadura. Ditadura que
pode ser monárquica, como no continente europeu ou pode ser parlamentar. O
parlamentarismo ocorre com o predomínio da nobreza sobre a realeza, ou, em
outros termos, do poder local sobre o poder central, como na Inglaterra e em
Veneza.
Há,
portanto, duas formas de ditadura
moderna, no vocabulário de Comte: a ditadura monárquica e a ditadura
parlamentar. Implica esse modo de
expressar a noção de governo “provisório”, ou de exceção, numa fase anormal,
sem consenso de opiniões. Seria uma
transição de saída da civilização feudal e entrada em outra civilização, a
modernidade, que se estaria formando em nossos dias de revolução.
Por isso,
para Augusto Comte, os governos da modernidade são “ditaduras”, todos
eles. Ditaduras que podem ser tirânicas,
sem liberdades. Ou, pelo contrário,
podem ser “ditaduras liberais”,
como exemplificou o regime político do incrédulo imperador Frederico II,
o Grande, da Prússia. Seu governo
“democrático”, manteve as mais amplas
liberdades, o que permitiu a Kant sua “Kritik
der reinen theoretischen Vernunft”, de 1781, de tom pouco piedoso e
pouco metafísico. Uma política que se modificaria
após a morte de Frederico II, em 1786.
Seu sucessor, Frederico Guilherme, não foi exatamente um imperador
“democrata”, emitindo decreto real em que proibia a Kant abordar oralmente e
por escrito questões religiosas, lembrando sua dependência ao salário que o
pensador recebia do governo político.[30]
Na
linguagem de Comte ele diria que
Frederico II foi, de fato, um “ditador” que realizou os votos de
Hobbes, de conciliação do poder material com a liberdade espiritual.
É dessa
maneira que se forma a mensagem enigmática de Augusto Comte, como a contida na
expressão de uma “ditadura com liberdade de
expressão” com aparência de
uma perfeita contradição em termos.
Como numa
arrematada criptografia da ditadura.
2.4 A
CRIPTOGRAFIA DA RELIGIÃO
Outra
dificuldade semântica do texto comtiano tornar-se-ia mais sentida na segunda
fase da vida do filósofo. A partir da
publicação do Système de Politique
Positive Augusto Comte, em plena elaboração da sua original sociologia,
passou a empregar, como já vimos, um vocabulário religioso. Essa alteração vocabular esconde, ou
dificulta em muito, a leitura da importante elaboração da nova ciência da sociologia. Da mesma forma como praticamente impede
reconhecer sob o nome de “Moral Teórica” a nova e original psicologia científica comtiana. Essa seria a
sétima ciência da
escala enciclopédica na classificação das disciplinas abstratas, só
identificada a partir do volume II da Politique
Positive. Portanto, essa ocultação do pensamento do filósofo, essa criptografia
causada pela alteração semântica do
conceito de religião, merece uma menção especial. Essa criptografia terá validade pelo
restante da vida e da obra do pensador.
São comuns
as afirmações de comentaristas de Augusto Comte referindo-se à escala
classificatória das ciências abstratas como constando de apenas 6 ciências. Todos
eles resultam do desconhecimento da obra principal do pensador, estando
baseados somente no Cours de
Philosophie, se é que o leram diretamente.
Mais provável é que estejam apenas compilando informações incompletas,
encontradas em enciclopédias, em resumos e
em textos de vulgarização mal feitos.
A razão dessa desinformação decorre do fato de que a identificação e
inclusão da psicologia como a sétima ciência da classificação
comtiana se deu tardiamente no segundo volume do Système de Politique. E, para uma dificuldade maior, o próprio
filósofo negou que uma coisa
como uma psicologia
existisse. Mas ele se referia a uma
psicologia metafísica, e seu método de introspecção, única que havia em seu
tempo. Mas, além desse mal-entendido, a
nova psicologia positiva foi denominada pelo nome “ambíguo” de Moral,
de Moral Teórica. (Política, II,54).[31]
Ao induzir
ou “intuir” do conjunto da história uma teoria explicativa da unidade
humana, que corresponde à coesão
social dos grupos, pretendeu o autor
ver essa unidade espontaneamente realizada pela religião, presente em todas as civilizações, embora sob formas e deuses diversos.
Para o filósofo, a função constante da
religião se manteria sempre a mesma, variando apenas os meios empregados. Seria
mesmo de estranhar que uma sociologia de rigor pudesse explicar os eventos da
sociedade sem identificar e estudar ao pormenor a manifestação social da fé religiosa. Sua grande importância exige uma pesquisa
equilibrada e imparcial, de difícil realização, notando Comte que cada forma
religiosa tem mais adversários do que adeptos.
Quando
chegou a supor que descobrira a função integradora da religião em todos os
aspectos da vida humana, passou Augusto Comte a empregar permanentemente a nomenclatura
religiosa em semântica diversa da
vulgarizada pelo uso, naturalmente ligada à doutrina judaico-cristã bem
como às religiões mais antigas. Essa
alteração do sentido de palavras comuns com outra significação se
soma ao estilo difícil do autor, causando as maiores dificuldades na sua
leitura e na sua crítica.
São
virtuais armadilhas postas no texto do filósofo, na linguagem normatizada ao
longo da segunda fase de sua vida.
Esses engodos, esses logros, alçapões de caráter semântico, fazem suas
vítimas entre os pesquisadores mais apressados, em especial aqueles que se
apoiam em dicionários, enciclopédias, na bibliografia secundária e na opinião
de outros autores. São também comumente
encontradas vítimas entre os compiladores descuidados, perdidos numa falsa
hermenêutica feita sobre sucessivas cópias infiéis, sem verificação a ser feita
a partir do texto original.
Adicionalmente,
escolheu o autor o nome de ditadura, --- “ditadura republicana” --- nesse caso,
para um regime político que é um
presidencialismo com liberdades
“exageradas”, quando, mesmo em
sua época, ditadura já era um regime de exceção às leis, contando, portanto,
com grande antipatia. O
presidencialismo é colocado por Comte como provisório, já que, para o futuro,
imaginou que o poder e a riqueza se reuniriam, num só governo,
ou seja, que o governo político seria exercido pelo patriciado, pelos
empresários, sob a orientação dos novos filósofos, sob a fiscalização do poder
do número do proletariado.
Mas esses
problemas na comunicação em Comte não resultam da displicência na escolha das
palavras a serem sistematicamente usadas: --- pelo contrário, nota-se sempre o
cuidado com que o filósofo analisa o significado e a etimologia dos termos. Essa deformação semântica toma a forma de um sutil código cifrado, já
que realiza uma ocultação do significado
a comunicar, com o grave inconveniente de não
alertar o leitor, que pensa conhecer bem as palavras apresentadas. Toma o texto, dessa forma, um caráter
criptográfico.
Brunetière,
um bom católico, diz que, apesar dessa dificuldade, Augusto Comte,
“ ... dans le domaine da l’art
comme dans le domaine de la science et à qui les dilettantes peuvent bien reprocher ‘d’avoir mal écrit’, mais que la lourdeur de son style n’empêche pas d’être, avec Descartes, dans l’histoire de la pensée
philosophique, le plus grand nom
dont nous puissions, et à bon droit, nous enorgueillir.” (Brunetière,1905,p.4)
O famoso
crítico literário francês coloca, assim, Augusto Comte ao lado de Descartes,
como um dos maiores nomes franceses na história da filosofia. Mesmo apesar de seu estilo pesado.
No caso da
palavra “coração”, para indicar a esfera
dos sentimentos, em nossos dias já identificada como tendo sede no aparelho
cerebral, Comte cuidadosamente observa que:
“ notre perferfectionnement se rapporte surtout aux
deux qualités morales qui importent le plus à la vie réelle, pour l’impulsion
affective et la décision active, c’est-à-dire la tendresse et l’énergie, comme
l’indique, dans toutes nos langues occidentales, l’hereuse ambiguïté du mot
coeur chez les deux sexes.” (Politique,I-108)
Escolhe,
portanto a palavra “coração” por sua ambigüidade, já que ela significa para as mulheres a
ternura e para os homens a
energia. No caso essa ambigüidade seria desejada pelo autor.
Eis aí, em
Comte, a muito consciente criptografia
da ambigüidade.
A confusão
aparente de significados é vista por Comte como uma indicação importante da
percepção filosófica admirável do bom-senso popular, e não apenas um
engano ou falha acidental. Essa
observação é feita pelo autor ao comentar os dois sentidos da palavra necessário, como inevitável e
indispensável, quando propõe a composição de um dicionário de “équivoques”,
como uma obra inteiramente nova sobre a filosofia da linguagem. (Cours,
IV, 491,492,nota I)[32]
As
ambigüidades, que se atribuem desdenhosamente à penúria popular,
atestam ligações profundas entre os
conceitos, felizmente
identificados pelo bom senso comum, muitos
séculos antes que o estudo sistemático consiga fazê-lo. Estariam nesse caso outras ambigüidades
verdadeiramente notáveis, como as das palavras
juste, ordre, propriété,
humanité, peuple. (Politique, I,57 e
II,259)
A forma de
redação do filósofo, sempre encadeada com o texto anterior e com o que se
segue, torna as citações deformadas e muitas incompreensões resultam da leitura
segmentada do texto comtiano.[33]
Na teoria
da unidade humana pesquisa o filósofo, portanto, no conceito abstrato de religião os seus meios
e sua destinação principal.
Na
proposição de uma “teoria positiva da
unidade humana”, --- leia-se teoria da coesão
social ou, o que seria o mesmo, teoria da religião, --- estuda de início o
significado da palavra. Escreve então;
“ Avant tout, je dois ici dissiper le vague et
l’incertitude que présente encore la signification générale du mot
religion. Les
meilleurs esprits y confondent presque toujours le but
essentiel avec des moyens
temporaires. On n’a pas même fixé
la destination principale,
alternativement rapportée au sentiment et à l’intelligence. En outre, la pluralité souvent attribuée à ce terme indique assez que
son sens fondamental ne fut jamais saisi nettement.” (Politique, II-p.8)
Nesse texto
está a proposição do estudo da palavra
“religião” de forma diversa do uso vulgar. O estudo sistemático indicaria outro
significado, que o autor procura explicitar em seguida. A partir daí ele vai empregar o termo como sendo um
sistema filosófico ou “dogma” implicado no culto de uma entidade
superior, estabelecendo a normatização para a práxis, em regras sempre chamadas de “regime”. Segundo Comte, o resultado desse sistema,
ao longo da história, sob todas as suas variadas formas e deuses diversos, sempre foi o de realizar a coerência dos
humanos em duas esferas: no âmbito individual,
dando a unidade à mente pessoal independente e a nível social, congregando a coletividade com uma doutrina comum, sem o
que não haveria a convergência em
liberdade dos esforços do grupo.. A
etimologia da palavra corresponde, então ao destino
da religião: ligar
e re-ligar.
Essa
verificação só pode ser percebida quando a análise é feita na
religião dos outros, uma vez que
cada crente verá em sua própria fé a verdade absoluta, a sua amada ou temida
divindade será sempre o destino de sua vida, jamais a forma de operacionalizar uma função sociológica !
... Função, ou operação a ser jamais
reconhecida sem uma emancipação
do estudioso de seu próprio teísmo.
Mas a proposta
de Augusto Comte é revolucionária: -
no lugar das doutrinas míticas até hoje registradas como sistemas de religião,
pretende colocar uma doutrina adequada à modernidade, sujeita ao critério da
dúvida e da demonstração cartesiana, destinada a satisfazer a necessidade
lógica e à previsão dos acontecimentos.
Com essa
mudança fundamental , a palavra religião assume outra significação, sem conotação
ontológico-metafísica nem teísta, que o
filósofo curiosamente pretende que seja isenta de misticismo. Pelo menos de um misticismo ingênuo,
embora plena de um espiritualismo místico consciente, que. seria melhor
definido, talvez, como um espiritualismo puramente “artístico”. Herdeiro da longa e respeitável prática
mística que enche todo o passado humano.
Ao analisar
o sistema religioso, mantém o filósofo a terminologia vulgar, que se ajusta perfeitamente à nova forma da
fé. Apesar de palavras como culto, dogma e regime, como partes da
religião referentes respectivamente ao sentimento, à inteligência e à ação,
passem a ter seu significado muito alterado, em razão dessa nova teoria da
unidade social humana, dessa nova filosofia da religião.
Assim se
explica essa homonímia de
semântica diversa, resultante do respeito mesmo aos
nomes sempre usados no estudo religioso, evitando a criação de novos termos
tidos como desnecessários. E também
oferece a razão porque certos pesquisadores entenderam que fosse o sistema
comtiano mera cópia caricatural do catolicismo medieval. E que fosse até mesmo um retorno à
medievalidade, até mesmo com a volta do autoritarismo cruel da Inquisição,
método só empregado pelo catolicismo em declínio, incapaz de conter o fim de
seu prestígio moral. A ilusão se torna
completa, já que para quem conhece e reconhece apenas uma
das formas religiosas, isto é, a
sua própria doutrina. O retorno à
religião só poderia ser de volta a esse credo particular, para ele próprio o
único existente e verdadeiro, e para todo o sempre.[34]
Por
exemplo, a palavra culto, relativa à
adoração dos deuses, com aperfeiçoamento da afetividade. Com origem no medo, na
ambição e pelo amor, passaria, no sistema pretendido por Comte, a dirigir-se ao ser social, à
humanidade e a seus representantes mais importantes, seja na vida pessoal e
doméstica, na ação cívica e na cultura universal. Supunha o pensador que seria a unidade ou coesão feita em relação ao novo ser superior, a sociedade, como
um “nouveau
dieu”. Um deus que, para ele, teria
sido sempre o beneficiário da disciplina religiosa em todos os tempos. Embora a
adoração e o estudo filosófico fosse dirigido com sincero devotamento a outros entes míticos.
Esse é
outro aspecto sério que parece interferir, de forma muito intensa, na leitura
do texto comtiano. A revolução
filosófica de Augusto conflita diretamente com as crenças teístas, tanto quanto contesta o idealismo ontológico, seja deísta, seja ateu.
A famosa
lei dos três estados não pode ser aceita, a não ser que fosse comprendida a teogonia nela contida por meio da
observação histórica. Nessa teogonia
revolucionária os deuses passariam a ser criados espontaneamente pelos humanos,
e não os humanos, pelo contrário, que teriam sido criados pelos deuses. Mas esse processo necessário da divina
criação seguiria uma perfeita racionalidade, isenta de fraude e plena de
sinceridade, tanto da parte das elites religiosas mais primitivas, como por
parte de seus mais humildes seguidores.
Os diversos deuses, teriam sido criados espontaneamente pelas diversas e
sucessivas civilizações, até chegar ao reconhecimento do poder superior do ente
social, da coletividade dos seres convergentes, como centro teleológico da
existência da raça humana --- o novo poder superior, também cheio de
bondade, para os novos tempos da
modernidade: “o nouveau dieu”
--- o social.
Que,
afinal, seria a causa final da
revolução filosófica proposta pela gnosiologia comtiana. Mas uma causa final relativa, jamais
revelada, jamais absoluta.
Essa teodicéia
comtiana empírica, com as suas dificuldades lógicas e semânticas, sob a
reação oposta pelos crentes em outros deuses, e em outros entes, é que nos
conduz a reconhecer a dificuldade em ler e compreender a existência real do novo poder superior.
É sem
dúvida paradoxal! A própria ciência
neutra, fria, tida como infalível, pelo texto de Comte, parece aquecer-se no
calor eterno da teoria da religião e
--- pretende nos convencer do
poder de um Novo Deus!
Assim
reconhecemos a forma de criptografia
do Nouveau Dieu.
Na
identificação modificada da ontologia metafísica ela é colocada por Comte
como “ersatz”
do teísmo, isto é, uma forma de
substituição que nega a explicação por meio da vontade de uma divindade
humanizada para explicar, através da ação de abstrações em graus variáveis,
vagamente personalizadas, por entes como a
“sábia natureza”, as qualidades reais, as formas substanciais, a energia
cósmica, a história, a força vital. Essa
causalidade diferente, por vezes de aparência rigorosa e de falsa ciência,
sutilmente desloca, enfraquece e tende a substituir -- e a destruir
-- a vontade divina como a única causalidade.
Seria a doutrina dos revolucionários, a ideologia da destruição. Tem um caráter vago, ora mais para o mágico
ou divino, ora mais parecida com a ciência.
O panteísmo
de Espinosa, que parece alargar o poder de Deus, acaba rompendo a síntese
medieval, isto é, provoca a rutura do sistema unitário harmônico da doutrina
antiga, até chegar, imperceptivelmente, ao ateísmo, por meio do caráter vago
das definições inverificáveis. E Espinosa,
para evitar a morte na fogueira, teria que morar longe de Roma, que logo
percebeu o perigo de suas idéias, da sua
metafísica bem raciocinada.
É esse
conceito de metafísica que Comte adota.
E não a metafísica definida
como parte da especulação com o nome de filosofia primeira, posta como estudo
das causas primeiras e finais, dentro do sistema teológico de filosofia.
A
desumanização da causalidade teísta original tornaria, para Comte, os entes
metafísicos uma causalidade cega ou não-inteligente, na falta de uma
razão, a mesma razão inteligente explicativa
que muito assiste sempre aos deuses, dando-lhes o poder de aglutinar em
torno deles todo o grupo social, em harmonia teleológica, como verificado ao
longo da história humana. O que o
filósofo denomina de poder orgânico, de
criar a coesão social, um conceito fundamental em sociologia.
Ao pesquisar a evolução intelectual da Grécia
antiga, diz Augusto Comte:
“l’essor
de la prévision rationelle en astronomie ne permettait plus aux libres penseurs
de concilier suffisamment les Lois
naturelles et les Volontés divines.
Quelques penseurs, sans renoncer au problème absolu, tentèrent d’y
remplacer toutes les causes
intelligentes par des causes
aveugles, en s’efforçant d’instituer une synthèse purement objective. La causalité métaphysique ne mérite aucune
comparaison avec ses deux souches (as linhagens dos deuses e dos
fetiches), vu son inconséquence radicale, qui poursuit
le problème des origines et des destinations en rejetant l’unique solution
qu’íl comporte, sans comprendre que toute cause aveugle implique une
contradiction directe.” (Politique,v.III, p.302,303)
O
termo souche aqui é usado como estirpe, tronco familiar, do teísmo.
Para Comte,
portanto, a causalidade metafísica, sendo cega, constituir-se-ia em uma “contradição em termos”, como diz a
versão em inglês:
“the very notion of a blind cause implies a contradiction
in terms.” (Polity, v.III, p.254)
O texto em
que Augusto Comte reclama da objetividade
buscada pelo materialismo da metafísica, é de uma posição que parece estranho a
um filósofo da ciência, defendendo o subjetivismo animista:
“They (the atheists
and pantheists, who parody
Positivity), utterly spoil the initial
Synthesis (the Fetichism), robbing it of its happy subjectivity to give it a delusive objectivity, in accordance
with their characteristic materialism, which, by an abuse of the true
encyclopedic subordination, strives to explain our Moral nature by the Physical
world.” (Polity, III, 76)
A respeito
do resultado político do materialismo progressista, cabe notar uma interessante
observação de Comte. É que, embora “tenhamos
simpatia pelas teses populares” dos revolucionários, sempre o poder
político vai para as mãos dos conservadores.
(Catecismo, 1934, p.3)
Seria
penosa, portanto, a posição revolucionária.
Sempre perdem o poder. E quando o
conquistam, tornam-se conservadores,
tornam-se os mais violentos conservadores.
Essas
considerações põem em relevo questionamentos levantados pelo texto comtiano,
cheio de idéias e implicações filosóficas e políticas, num ambiente de
ideologias conflitantes.
Aí estaria,
portanto, um fecundo repertório de questões para estudo e debate, a ser feito
sem dogmatismo, com a abertura da liberdade democrática.
Vê-se que a revolução filosófica proposta por Comte provoca reações
consideráveis de oposição, vindas de ambos os lados, sejam de conservadores,
sejam de progressistas, que são a fonte de uma criptografia externa, deformante
do texto por si mesmo difícil. Uma
dificuldade reativa que inibe e esconde a leitura do texto comtiano.
As
dificuldades resultam de fontes que se relacionam mutuamente, mas têm formas e
razões diferentes. A criptografia da
religião decorre do vocabulário comtiano modificado, mas a semântica do novo deus decorre da dificuldade
de uma visão histórica emancipada. Aqui,
a dificuldade é a reação oposta à revolução comtiana.
Eis aí a
dificuldade exterior ao texto do filósofo: a criptografia reacionária.
Se
aceitamos que é livre a proposta de várias formas para a busca da verdade, não
serão as suas variadas vias utilizáveis por todas as pessoas.
A negação
ou a dúvida sobre a existência de uma divindade salvadora, corresponde, para
alguns crentes, a um risco de vida, ao perigo iminente para a sua sobrevivência. O mesmo se dá com a crença
numa vida objetiva após a morte, e sobre todos os outros mistérios não
resolvidos, É isso que explica o
fanatismo violento: - não se pode tirar
a esperança na continuidade desta vida, nem a confiança num ente supremo. A
morte, como fim real, imprevisto por vezes, talvez imediato, jamais poderá ser
aceita pelas populações primitivas e
mesmo por muitos de nós.
Mas de fato
Comte nunca apresentou-se como um ateu e jamais postulou a morte dos
deuses. Diz ele que ninguém conseguiu no
passado verificar a morte de Júpiter e de sua corte, nem de tantos deuses
antigos: eles foram apenas esquecidos,
não assassinados. Por sua filosofia, os problemas
da vida eterna, do paraíso, da formação do universo, seriam temas de
verificação impossível, pelo menos até nossos dias. O positivismo de Comte, ao pretender o abandono das incertezas das causas
primeiras e finais absolutas, tornar-se-ia
um modesto agnosticismo: sabemos que não sabemos.
O risco de
vida, o perigo da morte, morte eterna,
de padecer no inferno e mesmo a ameaça de doenças, desastres e de outros azares em vida, parecem constituir um obstáculo sério na
leitura de Comte. Decerto não
poderemos medir sua influência, mas pela
numerosa adesão popular às seitas pentecostais protestantes e ao rápido
enriquecimento de seus pastores, pode-se avaliar como essa ameaça da morte, na
forma de terror teísta, ainda
atormenta muitas pessoas e muitos estudiosos.
E essa
inquietação pela perda das “nossas mais caras esperanças” transforma a
leitura de textos aparentemente assassinos e de desesperança numa verdadeira
decifração semântica quase impossível. É
o bloqueio da supertição à liberdade de filosofar.
É a criptografia do medo.
Outras
palavras modificadas no vocabulário de Comte foram, além de culto, as noções de dogma e de regime.
O “dogma”
da religião comtiana é a filosofia das ciências e a filosofia em geral, que não
é dogmática, no sentido de doutrina “fechada”, absoluta. Portanto, “dogma” para Comte é a doutrina
intelectual, a filosofia, que cada religião apresenta, seja essa filosofia
absoluta, ou não.
O “regime”
é definido como a normatização
religiosa da vida, na práxis,
como o código de conduta, uma ética.
Todo o
elenco de conceitos relacionados com a religião sofre essa alteração semântica
no texto de Comte. Quando ele fala de fé, o conceito estará alterado, como
quando disser dos sacramentos, da oração.
No idioma
de Comte o filósofo passa a ser o sacerdote
da modernidade. Em nossos dias,
essa nobre função sacerdotal,
de condutor de mentes e formador de opinião, teria sua atuação segmentada,
dividida entre o professor, o orientador, o psicólogo, o jornalista. Esse fato mesmo seria anormal e sintomático,
indicando, na visão do pensador, que nossos tempos correspondem a uma longa e
profunda crise de transição entre a civilização medieval e a nova civilização
da modernidade, ainda em gestação.. Na
pesquisa histórica, em todas as sociedades e em todos os tempos,
a necessidade de coerência sempre
colocou essas nobres funções num único órgão,
o sacerdote ou filósofo,
o gnosiólogo da época e do lugar, organizado em liberdade
em comunidades religiosas.
Essa
percepção comtiana é que explica sua pretensão de “voltar”
a uma religião, que parece exótica a qualquer espírito
contemporâneo. Seria mesmo loucura
completa de um pensador moderno pretender o retorno ao feudalismo e à religião
daquela época.[35]
Curiosa é a
acusação de heresia positivista
feita pelo pensador contra a religião proposta por Saint-Simon, o saintsimonismo,
preso ao misticismo sobrenatural de um cristianismo modificado, qualificado por
Comte como, esse sim, uma caricatura do
catolicismo.[36]
Famoso já
em vida pela sua original filosofia das ciências, professada em cursos públicos
e gratuitos, Augusto Comte jamais
aceitou ser chamado de discípulo de Saint-Simon, muito menos em ser tido como
seu plagiário. Pelo contrário,
Saint-Simon e sua escola é que teriam dele aprendido e se apropriado de idéias
suas, ocultando a origem e incompetentemente misturando-as com o que retirava
superficialmente de outros autores. O
plágio seria, de fato, feito por Saint-Simon.[37]
St-Simon já
utilizava Comte e outros estudantes da época como ghost writers, “secretários”, cujos trabalhos
remunerados assinava como se fossem seus, embora a mesma assinatura sua fosse
inadvertidamente aposta descuidadamente em textos com opiniões conflitantes.
Apesar
dessas evidências, St.Simon chega a ser tido como o fundador da sociologia e
até do socialismo. Mas, como em todos os
pontos aqui estudados, esse tema permanece em aberto, para discussão: ---
“Augusto Comte, como simples plagiário”!
E, para
arrematar, seu estilo difícil seria explicado, portanto, por ser apenas uma
incoerente colcha de retalhos.
Quanto a
ser Augusto Comte um saint-simoniano dissidente, escreve Henri Gouhier:
“Auguste Comte
n’est pas fâché de mettre publiquement les choses au point: les pères suprêmes ou non suprêmes (do
saint-simonismo), déclare-t-il, on fait leur éducation philosophique et
politique à mon école; mais, incapables
de comprendre la marche scientifique de mon enseignement, ils on trouvé plus
expéditif de fabriquer une nouvelle religion, qui est une misérable parodie du catholicisme;
le positivisme n’est donc pas un schisme
saint-simonien: c’est le
saint-simonisme que est une hérésie
positiviste.” (Gouhier, 1931,p.186)
ou seja, em
português:
“Augusto Comte não fica constrangido em colocar a
limpo publicamente os fatos: os pais
supremos ou não supremos do saint-simonismo, declara Comte, receberam sua educação filosófica e política
na minha escola; mas, sem capacidade
para compreender a marcha científica de meu ensinamento, eles acharam que seria
mais rápido fabricar uma nova religião que não passa de uma paródia muito pobre do catolicismo; o positivismo não é uma dissidência do
saint-simonismo : é o saint-simonismo
que é uma heresia positivista.”
Eis como se
compreende a dificuldade de comunicação que teria sido introduzida, se assim
foi, na comunicação da obra de Comte,
pelo plágio de Saint-Simon e seus secretários:
seria a criptografia de St.-Simon.
A filosofia
da história, como vista pelo filósofo, indicaria que a modernidade consiste
num período
de transição entre a civilização
anterior, a medieval, e outra
civilização futura, a ser identificada e construída. O desmembramento da função de coordenação das
opiniões corresponderia então à rutura do poder espiritual da Idade Média, em
decadência mortal, nos últimos seis séculos.
Os diversos
agentes especializados dos órgãos formadores de opinião passariam a ser, então,
nada mais do que “sacerdotes degenerados”.
Consistiriam em nada mais do que usurpadores incompetentes, por vezes
conflitantes, da função sacerdotal, outrora nas mãos dos esclarecidos padres medievais, pertencentes à nobre genealogia das sagradas
castas das veneráveis teocracias
do oriente.
Mas reconhecer o próprio fracasso em nossos dias
pelo sacerdócio de cada uma das seitas conhecidas seria uma contradição. Cada facção se supõe em progresso
irresistível, a derrocada da religião da Idade Média não passando de uma “secularização” sem maiores conseqüências.[38]
Verifica-se,
portanto, como o significado das palavras se transforma para filósofo à medida
que os conceitos são revistos e modificados pela sua própria pesquisa
filosófica. E que se pode questionar se
chegaria a constituir exatamente uma contradição doutrinária ou se seria apenas
a evolução do pensador dentro do mesmo programa filosófico.
2.5
A GNOSIOLOGIA
A revolução
filosófica provocada por Augusto Comte tem um caráter enciclopédico e
complexo. Essa abrangência e
profundidade proporciona amplo campo natural para as dificuldades de
comunicação. Sendo uma revolução de
caráter científico, questiona-se sua cientificidade, seja para menos, por ser
anti-científica, por ser dogmática e rígida, seja para mais, por consistir em
exagero cientificista, logo anti-liberal.
Assim se originam algumas das diversas formas de problemas semânticos.
Empregaremos
aqui o nome de gnosiologia como a
teoria geral do conhecimento em forma de sistema
coerente. Esse sistema, abrangendo a
teoria do saber destinado a (1) idealizar a realidade, o saber
estético, ao lado do saber que busca (2) representar
a realidade, o saber racional, e ainda do saber para (3) modificar a realidade, a técnica.
Nesse nomenclatura, a teoria do saber racional, do conhecimento
científico, sob o nome de epistemologia, seria, portanto, apenas um capítulo da
teoria geral da gnosiologia. Para Comte,
o conhecimento, na modernidade, tenderia para uma positivação crescente, mas, a
cada época, teria se apresentado sob várias doutrinas míticas, animistas,
teístas, ontológicas. A gnosiologia
compreenderia toda a filosofia, todo
o saber, em quaisquer de suas formas,
a qualquer tempo, empregadas para explicar o mundo e o homem.
O termo
gnosiologia não foi empregado por Comte, que também não usou o nome de
epistemologia, ambos, então, fora da nomenclatura filosófica de sua época. Mas o conceito de gnosiologia que aqui
propomos tem a vantagem de caracterizar o
sistema completo do saber
humano, identificado pelo autor
como constituindo o sistema de religião de cada tempo e lugar. Mas a designação de gnosiologia não envolve os arraigados
preconceitos sectários inerentes ao conceito de cada religião em particular, as
mesmas crenças que no passado uniam os humanos e que em nossos dias, por vezes,
divide a nossa raça.
Teria
Augusto Comte empregado, de alguma forma, a denominação de “filosofia das ciências”?
Uma pesquisa de texto nos levou às explicações esclarecedoras. O autor diz ter preferido a denominação de filosofia positiva em lugar de filosofia natural ou de filosofia das ciências, por
entender que, em sua época, uma e outra não se estendiam então, ao estudo das ciências humanas,
limitadas às ciências naturais. Ao
empregar o nome de filosofia positiva,
desejava designar restritivamente o estudo apenas dos princípios gerais
das ciências, da generalidade
encontrada em comum nas ciências de observação, deixando de lado o estudo
especial de cada disciplina. Mas
desejava designar de modo ampliado
esse estudo até às ciências mais complexas, humanas. A filosofia positiva seria então um
vocábulo de conceituação ao mesmo tempo mais ampla e mais restrita, sob
dois aspectos diversos, do que os nomes de
filosofia natural e de
filosofia das ciências. (Cours, v. I, Avertissement, p.VII e
VIII)
Cada seita
religiosa, em sua época, constitui a gnosiologia desse tempo, a sua
“verdade”. O termo gnosiologia tem a
vantagem de mostrar como a religião em cada época é a sua teoria geral do
saber, com o ethos nesse
tempo, sendo ainda o mesmo que o sistema
de educação, tanto educação teórica como prática e sendo ainda o mesmo que
a enciclopédia completa da época.
Para o
filósofo, o sistema religioso, em cada era, sob cada forma, constituiria a
própria gnosiologia em seu tempo e
lugar. Os sacerdotes, que são os
pensadores, em cada época, formavam, com o saber disponível, uma teoria geral do conhecimento, sempre em forma de sistema, ou em outras palavras,
em conjunto orgânico de idéias, de
caráter necessário, capaz de cooptar
a livre colaboração coletiva, ou seja, tornando cada indivíduo um órgão em
liberdade, sem coerção, a serviço dos ideais grupais consensuais. Sem esse sistema consensual organizador,
orgânico, não haveria sociedade.
Retornando aos registros da história, seria comprovada, na pretensão de
Comte, a consistente e sempre retomada formação de sistemas de pensamento, considerados ao longo de períodos multisseculares
suficientemente prolongados, para que se estudem as grandes civilizações. Essa teoria geral da história, como uma
filosofia demonstrável da evolução humana, acha-se descrita em pormenor no Système de Politique, em seu terceiro
volume.
O
retalhamento do sistema de conhecimento dar-se-ia, portanto, para Comte, apenas
durante um prazo relativamente
curto de transição inter-sistema, no interregno de períodos regidos pelos
sistemas filosóficos ou religiosos, em geral de civilizações de duração
multissecular. Assim, nesse meio-tempo,
se mostrará, naturalmente, a real
impossibilidade de elaboração de sistemas filosóficos, tornados os
sistemas, então, de fato irrealizáveis, fora de “moda”, dentro do período de
crise da modernidade, agora com mais de 600 anos. Essa interdição resultou de uma razão muito
importante : a incapacidade intelectual
do centro aglutinante teleológico da medievalidade, de sua doutrina do ente
divino, em manter reunidos os povos do ocidente em torno de sua adoração, por
sua filosofia e para seu serviço, a partir do início do século XIV.
Para
restaurar a coesão social, na visão do filósofo, faltaria elaborar um novo polo a que referir todo o destino dos humanos. A revolução copernicana teria destruído o
antigo centro filosófico representado pela divindade, em torno de quem
giravam as mais caras esperanças de cada servidor do grupo. Essa pessoa, mantida pela religião medieval
e pela religião em todos os tempos e lugares, como um indivíduo feliz, independente
e em liberdade. Fora derrubada a
causalidade final e outra causa
deverá substituí-la. Porque somente essa
teleologia assegura a saúde mental, a coerência lógica, para o indivíduo e para
o grupo a unidade é condição sempre necessária.
Ao
apresentar sua obra principal, o Système
de Politique Positive, é que o autor amplia seu horizonte além da
ciência, para desenvolver uma síntese humanista por meio do saber
enciclopédico em forma de sistema, de uma gnosiologia. Mas tal síntese deveria manter-se coerente no
plano psicossocial das ciências humanas.
E, ao mesmo tempo, sem renegar sua base científica elaborada no Cours de Philosophie. Então a proposta de Comte passaria a
apresentar um centro único de referência sistêmica. Ou seja, descobriria uma teleologia
subjetiva harmoniosa
para todo o universo do mundo da vida, com a pretensão de colocar um alvo claro
e distinto para a existência humana.
Seria a proposta de uma nova causa final.
A arte não
seria mais a arte pela arte,
nem a ciência pela ciência,
nem a técnica pela técnica. Um valor mais alto se levanta. Resta pesquisar se a grande filosofia de
Augusto Comte teria enfim conseguido cordialmente
unificar todas as especialidades harmonicamente em torno dos objetivos
humanos, num sistema coerente e plenamente subjetivo.. E isso teria sido feito com o coração, por um
filósofo cientificista, tido como idólatra da razão. A tarefa, por demais extensa e complexa seria
de demorada execução e de difícil leitura.[39]
E a
pulverização do saber teórico seria, portanto, para Augusto Comte, um grave sintoma de desagregação social, de origem filosófica. Notar bem:
somente a condição de sistema
de opiniões comuns produziria a união
dos indivíduos em condição de liberdade,
em forma de convergência social consentida.
Não confundir, porém, como fez Durkheim em sua leitura, essa visão
comtiana da especialização filosófica
na teoria pura com a interpretação
da divisão do trabalho,
considerada por Comte como uma especialização
cada vez mais indispensável e útil na práxis,
no âmbito da concretude. Uma confusão
primária como essa só pode acontecer pelo desconhecimento da conceituação clara
e distinta da diferenciação entre o saber abstrato e o conhecimento concreto,
entre o fenômeno e a coisa.[40]
O conjunto
da nova
gnosiologia proposta por Augusto
Comte pode ser visto no Esboço do Quadro
dos Conhecimentos Humanos elaborado em CAVALCANTI, 1914, aqui apresentado
em anexo, com pequenas adaptações, na ortografia da época.[41]
Torna-se a
filosofia das ciências, nesse quadro
geral, apenas uma parte do conhecimento; apresentando em adição outro saber, a
filosofia da arte, a filosofia política
e a filosofia da indústria. Mas, como
introdução às ciências, é apresentada a filosofia
primeira, como princípios gerais do saber ou epistemologia; a filosofia terceira compreendendo a
teoria referente às artes aplicadas.
Verifica-se,
então, como seria apenas preparatória a primeira fase da carreira de Comte, em
que pretendeu desenvolver uma filosofia a partir dos princípios gerais
que formam as ciências. Pela pura homogeneidade
do método, pensou ele fazer uma síntese,
o que não conseguiu.[42]
A teoria da abstração merece uma atenção
especial na leitura do sistema de Comte.
Na
conceituação do filósofo, a descoberta das relações
entre os departamentos do saber teria a pretensão de não comprometer a sua
contínua evolução, não impondo, portanto, limites
ou fronteiras rígidas entre suas partes.
Para o filósofo, sempre será importante distinguir claramente o
conhecimento abstrato, o saber referente aos
fenômenos pelos
quais o ser se dá a conhecer,
comparado ao saber referente ao ser
concreto. (Politique, IV, 170 a 173)
A
importante identificação do formato abstrato do saber teria sido
empiricamente notado na elaboração de cada e de todas as ciências puras, não
aplicadas. Seria, portanto, o critério
adequado para possibilitar a classificação do saber em extraordinária
simplicidade. E seria mesmo a única
possibilidade de cada pessoa humana
abarcar todo o conhecimento enciclopédico, com o afastamento provisório da pormenorização
especializante da concretude.[43]
E somente
no âmbito do saber abstrato é que se
poderia alcançar a rara e nobre virtude da generalidade
filosófica.
A
elegância, claridade e distinção dessa ordenação sistematizante parece resultar
de uma identificação nítida da aptidão subjetiva dos humanos para a abstração, com que o
filósofo pretenderia explicar o processamento da imaginação.
Por isso é
que o positivismo de Comte não se constituiria num cientificismo rústico e factualista.[44]
Para Comte,
esse saber depurado mediante a abstração, livre dos pormenores da concretude, permite a
elaboração de conceitos de validade muito mais geral, levando a uma enorme simplificação na tarefa educativa,
já que poderá deixar de lado um volumoso conjunto de dados concretos, livrando o ensino da obrigação de tudo
guardar de memória, à maneira da escolástica medieval.
No entanto,
essa regra didática temporária
poderia ser tomada por engano como a interdição definitiva da evolução do saber, evolução que se faz
muito mais rapidamente em suas aplicações práticas. Aparentemente, o filósofo, ao recomendar a
exclusão apenas didática e provisória dos pormenores de aplicação da
ciência, estaria promovendo a rígida negação do progresso intelectual e
técnico. Sua doutrina, no entanto é
posta como permanentemente relacional, relativa, não absoluta, perfectível.
Pode-se
avaliar como será difícil a comunicação dessa nova teoria do conhecimento de
enorme generalidade e de abrangência nunca vista no saber humano seguro, com
base na observação, mas sem desprezar os poderes da razão e da imaginação
filosófica abstrata. Deixar de entender
a firmeza e a relatividade dessa proposta conduz a ocultar um aspecto básico da
obra filosófica de Comte. Seria uma
enganosa dificuldade de comunicação: seria o criptograma do dogmatismo anti-científico.
Só por meio
dessa simplificação abstracional justifica o filósofo sua temerária afirmação
de que o ensino da ciência, em todos os tempos, sempre poderá ser
enciclopédico, ou seja, abrangendo todos os degraus da escala fenomênica abstrata, ou todas
as SETE
ciências “puras”. Tal seria, se realizável, um ensino filosófico, vale dizer, um ensino de validade
geral, em todo o campo do saber humano.
Uma grande
falha hermenêutica na leitura de Comte seria vê-lo com horror ao progresso
científico, tanto abstrato como aplicado.
Nessa falácia primária o filósofo relativista da evolução continuada
teria ficado preso a um imobilismo próprio ao reino do dogmatismo das noções
absolutas, da verdade eterna.
Na doutrina
psicológica Comte, sugere ele a
identificação e a localização dos órgãos
cerebrais. Essa proposta tem recebido
confirmação recente por métodos arquitetônicos e neurofisiológicos.
(SILVEIRA, 1962,265)
Na teoria da cognição da original psicologia proposta por Comte, as funções básicas do
processo intelectual estão caracterizadas como as de concepção e de expressão
ou comunicação.[45]
A concepção
se apresenta sob duas formas: como passiva, ou contemplação, e ativa, ou meditação.
A contemplação se divide em concreta e abstrata; a meditação em indutiva e
dedutiva. A inteligência teria então
cinco funções elementares irredutíveis: 1.
a contemplação concreta; 2. a contemplação abstrata; 3. a meditação indutiva;
4. a meditação dedutiva; e 5. a expressão ou linguagem. Teria então o aparelho cerebral um órgão
específico para a linguagem, considerada como uma das funções intelectuais
simples. (Politique, v. I, p.715)[46]
A
psicologia de Augusto Comte, com toda sua originalidade, seria, porém, ilegível, irreconhecível a muitos
pesquisadores. Deu o autor à ciência do
comportamento individual o nome de MORAL TEÓRICA. Um nome comum,
mas de significado diferenciado:
nada menos que uma NOVA CIÊNCIA, a Psicologia, como nós hoje a
conhecemos.
Mas, além de
lhe dar o nome de Moral Teórica, afirmou que a psicologia não existiria
jamais, era uma disciplina puramente
ontológica, metafísica, o que de fato era verdade em seu tempo. Pode-se ler, por isso, em muitos autores,
erroneamente, que Comte não teria tratado do estudo da psique.[47]
Está aí
identificada uma importante
dificuldade semântica originada no próprio texto comtiano, dentro de
sua ampla revolução gnosiológica. É
aquela dificuldade de significado que esconde
a psicologia como ciência de observação elaborada originalmente por Augusto
Comte: eis a criptografia da psicologia
positiva.[48]
A revolução
de Copérnico, para Comte, teria tirado dos humanos o centro de referência do que se supunha ser a criação de um mundo
para o reinado dos homens. Essa a grande
culpa de Galileu. É-lhe
imperdoável haver acabado com esse
sonho, provocando um vazio teleológico : --- para que finalidade estamos agora vivendo?
O mesmo
abalo e derrocada havido com o sistema medieval terá ocorrido também com o
sistema de Comte ? Depois de mais de um
século, terão suas pretensões
filosóficas e científicas ruído
como ruíram as bases de todos os sistemas anteriores?
O debate se
torna aceso. Como se alteraram em
nossos dias os princípios gerais do saber científico?
Tendo todos
os sistemas sido abalados, seria essa a comprovação de que a era e a moda dos
sistemas já terão passado: agora seria então o império do caos, da revolução,
da filosofia do “contra-o-método”.
Estaria, portanto morto Descartes.
A morte do
cartesianismo e do espírito científico implica também em matar a leitura de sua filosofia.
Para que ler e meditar um texto cuja doutrina “ruiu por terra”? A proposta de uma nova gnosiologia se torna
risível ou ridícula, se baseada nos postulados de Newton, se tiver ele morrido
sob o peso da nova relatividade. E se depender dos axiomas de Euclides, também
morto sob os escombros das novas geometrias não-euclidianas. Estaria morto
Newton e morto Euclides.
A crítica,
se válida, parece levar ao “retorno a Platão”, para seus universais, suas
essências, sua caverna. Com que
deveríamos esquecer Aristóteles, seu laboratório experimental e sua filosofia
enciclopédica. Agora teríamos toda a liberdade,
--- melhor --- todo o arbítrio do pensar metafísico. Por isso Paolo Rossi, da Universidade de
Florença, observa que, segundo Heidegger, “nasce
a ciência, desaparece o pensamento”.[49]
É como um
novo processo inquisitório contra Galileu, diz Rossi, sob acusações muito mais
pesadas do que as dos juizes da Santa Inquisição, os textos mais fortes durante
esse processo tendo vindo à luz nos anos do fascismo e da guerra, entre 1935 e
1942, e estão na Krisis de Husserl e
na Dialektik der Aufklärung de Horkheimer e Adorno. (Rossi,
1992,p.13)
E essa nova
forma crítica feita pela rutura do saber, pela descontinuidade, tornaria a
filosofia das ciências e o positivismo completamente ultrapassados, como peças
enferrujadas de museu, da mesma forma que Comte pretendeu fazer na superação do
teísmo e da ontologia metafísica.[50]
O debate
filosófico, compreenderá, assim, a discussão da morte geral das ciências, especialmente das ciências humanas.[51]
Augusto
Comte sustentara, no entanto, que nossa ignorância das leis da ciência
política acarretariam revoluções sangrentas que o saber poderia ter
evitado. Tal como se viu neste século,
com 20 a 40 milhões de mortos na revolução chinesa, de 15 a 20 milhões na
revolução russa, mais de 11 milhões pelo nazismo e em muitos outros massacres e
genocídios injustificáveis. (Política, IV, apêndice,p.96)
O
questionamento anti-científico assim fundado em caminhos de uma mística de
vida, sob aparência de pensadores revolucionários, inibirá ou pelo menos desestimulará a leitura
da filosofia da ciência.[52]
Essa
criptografia, se assim for, não seria de responsabilidade comtiana. É uma forma de dogmatismo filosófico, em que toda tese de positivismo, não só na
forma comtiana, mas também no Iluminismo e toda a positivação do
conhecimento, teórico ou prático. passa a ser uma burla, não merecendo ter a
sua leitura analisada. já que aquela ciência anterior, em crise agonizante,
estaria ultrapassada e jogada por terra, por descobertas mais recentes, pela própria ciência, agora
sob nova forma ontológica.[53]
Se houver
mesmo o holocausto dos cientistas todos, e, portanto, da ciência, a gnosiologia
inteira de Augusto Comte poderia ser esquecida, escondida, enterrada. Essa seria uma das dificuldades de leitura e
do ensino da obra comtiana. Seria a criptografia pelo holocausto da ciência.
Aí está um
fascinante desafio.
Analisa
Augusto Comte em pormenor os aspectos importantes e os benefícios, à época, do
apogeu do catolicismo e do seu regime político, sem mostrar rancor
revolucionário contra a religião.. Essa
falha odiosa é que o filósofo nota e condena no estudo de Condorcet sobre os
progressos humanos. Em especial, porque
um período de evolução não poderá resultar do vazio ou da retrogradação de seus predecessores
imediatos. Nesse caso, também, nada se
cria, nada se perde.[54]
Comte
pretende usar uma indispensável acuidade para inteligir na história, nos
próprios fatos particulares, as tendências
da evolução, para dessa verificação histórica direta concluir princípios abstratos
correspondentes. Em outras palavras, sua
metodologia consiste em diferenciar fatos
singulares e pessoas de conceitos
abstratos em sociologia, como “posição da mulher na sociedade”, “estrutura
familiar”, “poder espiritual” ou “poder material”. E o método
por excelência em sociologia
seria, para Comte, a “filiação
histórica”, que corresponde a
pesquisar, ao longo da evolução conhecida, as alterações de cada uma dessas noções abstratas, em cada civilização
histórica. Isso será, de fato, muito
diferente de pesquisar apenas as ruturas em alguns poucos períodos
anormais do grupamento social. Mas os
conflitos não deverão, decerto, ser ignorados, mas considerados, especialmente
nas fases de nascimento, crescimento e declínio de cada período
civilizatório. Essa análise não seria,
para Comte, apenas de um “positivismo”
ingênuo de acumulação passiva de registros factuais. Nem a original e complexa filosofia da história que o filósofo
pretenderia extrair dessa pesquisa seria apenas um relato linear, incompleto, romântico, sem lutas e sem conflito.
A teoria da
história assim construída deverá ser testada
em sua validade em várias partes do trajeto evolutivo. Os princípios não devem resultar de um
simples wishfull thinking: o pensamento rico de inspiração
espontânea a priori não pode
ser, só ele, a base de uma doutrina histórica, confiável, firme, preditiva,
verificável. Pelo contrário, o filósofo
mostra testes de validação de sua teoria histórica. (Politique,
III, 623; Polity, III, 535)
Essa
capacidade de previsão é que parece resultar em profecias não realizadas, como
a de que o século XX veria o predomínio universal do positivismo. Mas alerta o filósofo que, ao oferecer números precisos em sociologia, ele
apenas estava tornando sua argumentação mais nítida:
“ il faut
indiquer deux avertissements: le premier
concerne les nombres que j’ai cru devoir introduire afin de rendre les notions
assez précises, quoiqu’ils ne puissent
encore être exactement déterminés.” (Politique, IV, 252,253,445; Polity,IV,
222)
O efeito de
previsões erradas atestariam, sem dúvida, a invalidação do método sociológico
comtiano. E precisamente falsearia sua
afirmação básica em possuir a certeza na previsão, característica principal da
ciência moderna. E seria, por conseqüência, a invalidação aparente e a
ocultação da gnosiologia de Augusto Comte. Mas, ao que parece, trata-se apenas
de uma engano semântico: seria a criptografia da falsa profecia.
Há uma
forma diferente de dificuldade semântica quanto à doutrina religiosa que a
leitura do texto de Comte apresenta.
Não mais se refere ao vocabulário “religioso” do autor, que, já
registramos. Esse vocabulário afeta
todos os quatro tomos do Sistema de
Política Positiva, as obras posteriores e a ação do filósofo. Relaciona-se esse outro aspecto à teoria
histórica, à filosofia da evolução doutrinária e social, base indutiva da
sociologia dinâmica, ou teoria do progresso social. Consiste na avaliação da civilização
católico-feudal, de sua implantação, de seu apogeu e de sua ruína. A defesa do catolicismo e até dos privilégios
feudais é feita pelos conservadores remanescentes dessas instituições. Resulta então um severo debate no estudo do
fenômeno da “secularização”. Essa renhida defesa e mesmo uma reação
agressiva torna-se uma dificuldade que perturba ou mesmo tenta impedir, por
vezes, a leitura da proposta gnosiológica comtiana. Constitui um efeito criptográfico decorrente
de ação exterior ao vocabulário escolhido pelo filósofo, dificultando a
compreensão básica da revolução do pensamento na modernidade. É uma criptografia diferente da criptografia
da religião, que já examinamos.
Pela
doutrina comtiana não haveria retorno ao
passado, muito menos à Idade Média.
A análise pormenorizada da derrocada da medievalidade, de seu regime
político, o feudalismo, e de suas crenças, é exatamente uma das dificuldades criptográficas
de Comte. Confessa ele sua grande
admiração pela sabedoria humana do
sacerdócio católico da idade média, capaz de tornar convergente a doutrina egoísta da salvação
individual. Mas define o catolicismo,
hoje, como uma majestosa ruína histórica, o belo resto de um monumento antigo, de
uma verdadeira organização filosófica:
“le
catholicisme, que nous avons vu si longtemps présider à l’évolution moderne,
comme devenu finalement étranger à la société actuelle, où il ne peut plus
figurer qu’à titre d’imposante ruine
historique, pour empêcher le monde
de perdre tout sentiment actif d’une véritable organisation spirituelle,
et pour en indiquer aux philosophes
les vraies conditions fondamentales.” (Cours,
VI, p.422)
E ainda
enfatiza uma importante lição para os novos filósofos. Pensadores, ao que parece, cegos para a “verdadeira organização filosófica da
sociedade”.
Não se pode
dizer, portanto, que o sistema gnosiológico comtiano seja um retorno ao
misticismo ingênuo e à teologia medieval.[55]
Comte
examina a eficiente ação exercida pela religião medieval em seu apogeu: todas
as escolas eram religiosas; todos os
hospitais; todos os cemitérios; o ensino estava completamente nas mãos do
sacerdócio católico; todos os meios de comunicação, por embrionários que
fossem, lhe eram afetos. Todos os escritos eram religiosos, sagrados,
bem como todas as bibliotecas. A música
era toda sacra, como também a pintura; o teatro se fazia dentro das
igrejas. Portanto, todo o aconselhamento estava em mãos
competentes e coerentes do sacerdócio. E
isso, a não ser após o declínio, era feito livremente, ou seja, com plena liberdade, tanto para o povo,
para os trabalhadores, como para os governos. Nessa era foram libertados os
servos da gleba, sem revolução, com o desenvolvimento das cidades modernas e da
sociedade civil. Os papas, então com
grande poder moral, e apenas pelo consenso, coordenavam as relações políticas
entre os países autônomos. Mas o faziam
sem violência material, mantendo a paz entre as nações. Por meio de uma bula papal, acatada pelos
dois países interessados, as novas terras descobertas na América foram
divididas pacificamente entre Portugal e Espanha.[56]
A
apreciação de Augusto Comte sobre a escolástica indica a filosofia intelectualista
de Aristóteles como ameaçadora à doutrina católica, levando a razão a
questionar a fé, conduzindo à sua destruição ou secularização, por um movimento
interior
ao próprio sacerdócio. Essa
“implosão” nunca fora vista na história
da religião. As provas da existência de Deus são desnecessárias: são
sintomas da emancipação crescente.
Portanto, para renovar a fé medieval não seria solução retornar à escolástica, o que seria
voltar à dúvida; melhor seria retornar a
Sto. Agostinho e a Platão. Por essa razão,
para Comte, Tomás de Aquino é um filósofo moderno, não um pensador
medieval. (Cours V,555; VI,294;
Martineau, II,262,350; Politique III,411)
Essa é uma
análise cujo estudo e cuja comunicação envolve preconceitos, mitos e esperanças
“religiosas”
e metafísicas muito caras, muito
preciosas. Mitos por demais confusamente
presentes em grande parte dos estudiosos, todos, já convencidos da vitória da
ciência no pensamento contemporâneo, mas encarcerados em restos de crenças do
passado, conforme a visão comtiana.
Por isso
torna-se o estudo da secularização em Comte uma dificuldade de significado, de
semântica : é o criptograma do fim do cristianismo.
O
comentário da conhecida lei dos três estados costuma ser baseado em leituras
distorcidas. Entre as mais comuns, está
afirmar erradamente que essa lei se referira a três formas de estado social da sociedade, e não de
formas de concepção de cada
ramo do saber.
Notar
bem: a lei não se refere a etapas da evolução histórica; como se toda uma
coletividade em cada época pensasse da mesma
forma, o que facilmente se reconhece
ser irreal. E a
simultaneidade de estados mentais diferentes para uma mesma pessoa, num mesmo
momento, variando conforme a complexidade do ramo de conhecimento, confunde o
pesquisador, parecendo-lhe uma contradição simples de descobrir na lei
evolutiva de Comte, o que não passa de um ingênuo engano.[57]
Assinala-se,
aqui, portanto, uma dificuldade das mais sérias, uma vez que a revolução da
gnosiologia da modernidade consiste exatamente em tornar positivada toda a
enciclopédia humana: bastaria que o
“terceiro estado”, o estado positivo do pensar, fosse falsificado, para tornar
a nova gnosiologia um mero sonho ...
Essa grande dificuldade seria a
criptografia dos três estados.
No estudo
da teoria sociológica, Théodore Abel interpreta a lei dos três estados como
referida à evolução das idéias e crenças das pessoas, numa original “análise
sociológica”. E a preocupação de Comte
seria com o “ethos do grupo” e não com
“estágios de desenvolvimento” da sociedade. Teria Comte dito que “todos os mecanismos sociais repousam sobre
as opiniões”. (ABEL, 1972, 108,109)
Segundo Abel,
a lei dos três “estágios” pode
ser vista como “uma proposição sociológica que afirma a correlação existente entre
o ethos do grupo, por um lado, e os tipos de
instituições junto com a localização do status e
do poder numa sociedade, pelo outro. O caráter sociológico da lei só pode ser
reconhecido se a terminologia filosófica que descreve os “estágios de desenvolvimento
intelectual” for posta de lado. Quando Comte fala a respeito de “teologia”,
“metafísica” e “positivismo”, deles não trata como sistemas filosóficos. Está interessado não no significado filosófico dessas idéias, mas no papel que desempenham na vida social e
em sua influência sobre a conduta humana.
Abel com
essa recomendação afasta o preconceito “filosófico” que impede a leitura de
Comte, para enfatizar o juízo “sociológico”, único que a Abel interessa e que poderia ou
desejaria ler. É comum que filosófico aí
implique numa conotação de confuso, metafísico, não científico.
Mas muito
bem reconheceu a dificuldade de ler essa
mensagem comtiana em razão de sua implicação ideológica. Ou, em outras palavras
mais simples, somente afastado o ataque ao teísmo e à metafísica, então, e só então, pode-se decifrar o texto
do filósofo.
Importava a
Comte, segundo Abel, colocar na lei apresentada que o comportamento social dos humanos em cada civilização depende da doutrina
que o grupamento adota, de suas crenças, de seu “ethos”, de seus
costumes em todos os seus aspectos, afetivos, intelectuais e práticos.
Comte
teria, então, concluído que o fetichismo conduz à exterminação dos cativos,
enquanto que o monoteísmo leva à emancipação dos escravos da antiguidade. O politeísmo é a única etapa apropriada à
escravidão.[58]
Theodore
Abel assinala, assim, a dificuldade da
leitura da terminologia comtiana,
que ocultaria a comunicação da nova gnosiologia, que enfatiza o poder social
das crenças, do consenso, da filosofia.
E as coloca a serviço da sociedade.
Ocultar
essa comunicação seria realizar a criptografia
do ethos social.
Com a lei
dos três estados está implicado o conceito da variação da complexidade de cada ramo do conhecimento, já que a velocidade de evolução da lei seria
tanto maior quanto mais simples o fenômeno estudado. Ou seja, nos
acontecimentos mais comuns, mais gerais e mais simples, como os da matemática,
a positivação se dá antes do que nos fenômenos mais complexos, como os
biológicos, sociológicos e psicológicos.
Por isso,
numa mesma cabeça, pode haver estados diversos de conhecimento, conforme se
trate de “passes espirituais” em psicologia ou de cálculo em aritmética
elementar. E isso está explicitamente
posto no texto original do filósofo. (Cours, v. I, p.18)
Eis outro
tema de debate filosófico ligado às propostas de Augusto Comte, para a
alteração radical do ethos social
Aparentemente
Augusto Comte teria abandonado o método
analítico “positivo”, ao enfatizar o método
sintético, oposto, tido como “dogmático”.
E essa contradição ter-se-ia dado tardiamente, conforme a crítica feita
por Brunschvicg, provocando uma ambigüidade entre o “positivismo da razão” em relação ao
“positivismo da Igreja”. Aquele da razão seria iluminista, seria a favor da liberdade, do progresso. O outro, o positivismo da Igreja, seria contra o progresso, a favor da ordem, que, “como toda religião, impõe a necessidade de
um princípio de autoridade”. A ilação levaria a supor a doutrina comtiana como sofrendo de
profunda incoerência, tornando-se favorável a uma ordem despótica, autoritária.[59]
Nos Opúsculos, escritos na juventude,
elaborados antes do Cours de Philosophie,
em 1822, diz Comte, a respeito do método de pesquisa:
“A pesquisa das leis que regem os fenômenos naturais
apresenta, sob o ponto de vista que nos ocupa, importante diferença,
conforme estuda a física dos corpos
brutos, ou a dos organizados. Na primeira, reconhecendo o homem que
constitui parte imperceptível de uma série imensa de fenômenos, dos quais não
lhe é dado esperar, sem louca presunção, perceber jamais o conjunto, vê-se
obrigado, logo que começa a estudá-los com espírito positivo, a considerar
primeiro os fatos mais particulares, a fim de elevar-se gradualmente, em
seguida, à descoberta de algumas leis gerais, que se tornam mais tarde o ponto
de partida de suas pesquisas.
“Na física dos
corpos organizados, ao contrário, sendo o próprio homem o tipo mais
completo do conjunto dos fenômenos, suas descobertas positivas começam
necessariamente pelos fatos mais gerais, que lhe fornecem depois um luz indispensável
para esclarecer o estudo de um gênero de particularidades, cujo conhecimento
preciso, por sua natureza lhe é para sempre interdito. Em uma palavra, em ambos os casos, o espírito humano procede do conhecido para o desconhecido;mas,
no primeiro, eleva-se a princípio do
particular para o geral, porque o
conhecimento das particularidades lhe é mais imediato do que o do conjunto,
enquanto, no segundo, começa a descer do geral ao
particular, porque conhece mais
diretamente o todo do que as partes.”(COMTE, 1972, p.132,133; IV,p.133)
Mais tarde,
o autor passou a chamar sistematicamente o método analítico de “método
objetivo”, comparado com método sintético,
a que deu o apelido de “método subjetivo”,
que supunha serem não conflitantes, mas, ao contrário, que seriam, ambos, de
valor, completando-se, dependendo do tema em estudo. (Politique,
I,444 e seguintes)
O método
subjetivo poderia ser denominado de funcional,
por considerar primeiro a função a ser estudada, para então pesquisar o órgão
correspondente. No ser orgânico o
estudo estrutural, analítico, do órgão, por sua dissecção destrói a fisiologia,
impedindo a observação. Um exemplo foi
a dificuldade em descobrir a circulação do sangue, onde as artérias ficavam
vazias no cadáver, parecendo que cada artéria apenas “ar-teria”.[60]
O conflito
comtiano consiste, então, para Brusnchvicg, em hesitar na escolha para base de
sua sociologia entre a análise
positiva para explicar as
instituições da sociedade por sua história
ou ... entre empregar uma síntese “dogmática” na qual a
sociedade é tomada como substrato ontológico e as
instituições seriam apenas produtos desse substrato.[61]
Fica
identificada, dessa forma, a dificuldade de compreender como o método sintético
ou “subjetivo”, depois de elaborar a
biologia, é empregado por Comte para instituir a sociologia e a
psicologia, as novas ciências basilares da proposta gnosiológica revolucionária
do filósofo para a reconstrução da harmonia mental e política da
modernidade. Mas como será possível
edificar duas ciências positivas sobre sonhos de substratos ontológicos ? E dessa exótica metafísica enlouquecida
ainda acreditar em Novo Deus para a fé numa nova religião ? Estamos, assim, em franco e forte debate
filosófico, deveras salutar para o pensar.
Eis a
dificuldade semântica comtiana do “método sintético”, ou a criptografia do método subjetivo.
2.6 ABSTRAÇÃO E
REVOLUÇÃO FILOSÓFICA
Haverá, de
fato, uma revolução filosófica em andamento em nossos dias? Se permitido o debate democrático, em que
posição cada um de nós se colocará?
Há pelo
menos três posições a tomar, a quem reconhecer o declínio e ocaso da
civilização medieval, por seu regime político e por sua filosofia : primeiro, voltar atrás, retornando a um modo
revitalizado de pensar da Idade Média, conservadoramente; depois, tentar apenas
destruir todo o conhecimento do passado, acusando-o, por exemplo, de ser uma
simples ideologia para a exploração dos oprimidos pelos poderosos; ou, como terceira opção, construir uma nova
doutrina filosófica confiável.
Revendo o
que foi estudado neste capítulo, notamos que Augusto Comte adotou a posição
construtiva. Iria tentar a elaboração de uma revolução apenas filosófica, de
consenso, pacífica. E propõe uma nova
causalidade final. Teria ele
descoberto a causa final, que residiria e teria
sempre residido ao longo de toda a história no social, na sociedade dos
humanos, como causa ligada ao próprio sujeito, relativa, verificável, a ser
explicada por meio de uma doutrina gnosiológica de liberdade. Essa proposta
revolucionária, mas não violenta, de Comte, está, portanto, em pauta para
debate, para crítica, para verificação.
Será ela a
verdade para o nosso tempo?
E teremos
visto que podemos ter encontrado uma “chave
inglesa”, para ajudar na abertura e na explicitação do rico e pesado texto
comtiano para torná-lo accessivel à leitura da pessoa comum, do trabalhador e
do pesquisador em geral. Sabe-se que os
mecânicos usam uma chave de boca, de abertura regulável, para apertar
parafusos, chamada de chave-inglesa.
Essa “chave”, em nosso caso, seria a tradução da obra comtiana para o
inglês. Seria, portanto, uma ...“chave” ...“inglesa”. Mas, aqui, em teoria,
seria uma chave imaterial, seria uma chave semântica.
Algumas das
formas mais comuns de dificuldade semântica foram encontradas na obra
abstrata de Comte, algumas inerentes ao próprio texto do filósofo. Outras dificuldades não estão no texto original,
e sim em razões como no medo da morte, no
possível plágio de Saint-Simon,
ou no discutível assassinato das ciências ... pela própria ciência. Ciência que, afinal, pode-se refletir, assim
mesmo, sobreviveria.
Com esta
dissertação, teremos apenas tentado trazer ao debate filosófico acadêmico, com
mais clareza, se possível, as proposições de renovação do enciclopédico
filósofo francês.
O pensador
que pretendeu ser, ou o foi, o criador da filosofia positiva, o fundador
da sociologia, seu batizador e primeiro dos sociólogos. Além disso, teria sido o fundador da psicologia
científica, o primeiro dos psicólogos e, principalmente, ainda por cima, o
criador de um novo sistema gnosiológico enciclopédico --- para não dizer o fundador de uma nova fé
religiosa. E tudo isso sem levar em
conta sua muito importante Ciência Política, considerando apenas a obra
abstrata, no pensamento “puro”. Como
será possível deixar de examinar criticamente essa obra? Quais serão seus limites e
possibilidades?
Neste capítulo
acabamos de ver algumas das
dificuldades conceituais de comunicação dessa enorme obra, em sua parte
abstrata. Obra já chamada de uma monumental, filosófica “catedral
de idéias”.
Assim o
estilo do pensador Augusto Comte, considerado o filósofo indispensável, que é
pesquisado, discutido, mas não lido, talvez por ser ilegível --- ou de leitura
quase impossível.
Permaneceria
em discussão, portanto, o texto e o título de Comte, tanto como o grande Mestre
da filosofia da modernidade, quanto como o único filósofo-mito jamais conhecido.
3.
TERCEIRO CAPÍTULO
A Práxis: Liberdade e
Ciência Política
Seguiremos
com o estudo de algumas das criptografias mais importantes, encontradas na aplicação à práxis política
das conclusões abstratas elaboradas pela teoria comtiana pura,
preparatória. Serão dificuldades
semânticas na formulação de sua forma democrática de regime político, na ordem que
propõe, em seu raciocínio cientificista a se aliar a seu possível fanatismo
pela liberdade, em seu aparente romantismo místico, em mistura com um enganoso empirismo autoritário. A qualificação da filosofia política de
Comte de democrática, liberal, romântica, ou ditatorial, autoritária,
irrealizável, aqui é indicada para ser colocada em debate. Será que a leitura competente, honesta, dos
textos originais do filósofo, depois de aclaradas as criptografias encontradas,
poderá decidir essa dúvida?
3.1 DEMOCRATA, MAS
A CONTRAGOSTO
Em razão da
influência da ciência política de
Augusto Comte na propaganda e na realização tanto da abolição da escravidão
negra e do índio, bem como da fundação da república no Brasil, muitos
estudiosos têm consultado, para suas pesquisas, as publicações do Apostolado
Positivista no Rio de Janeiro. Elas são
muito mais acessíveis do que o texto do pensador, por estarem traduzidas para o
português. Essa fonte, no entanto, mantém a nomenclatura original do
filósofo, como seria de esperar da fidelidade filial rigorosamente
ortodoxa. Grandes enganos cometem,
porém, comentadores superficiais a partir ingenuamente dessas informações, em
publicações de forma geral perfeitamente fieis
literalmente à palavra e
ao texto de Comte, e, também, fieis a seu pensamento.[62]
A nomenclatura original do filósofo
foi evitada, no entanto, na aplicação da
ciência política de Comte feita no
Rio Grande do Sul por Júlio de Castilhos em sua demorada e bem sucedida ação
política. Ele obteve apoio
democrático do Partido Republicano Riograndense, para instituir,
sob sufrágio popular, o presidencialismo de plenas liberdades recomendado por
Comte, isento de parlamentarismo.
Castilhos jamais usou o nefando apelido de
“ditadura republicana”. Mas
esse nome, perverso em nossos dias, foi, eficazmente referido e lembrado,
sempre pejorativamente por seus ferrenhos adversários, e apenas por adversários...
Paulo
Carneiro afirma mesmo que foi
por motivos
semânticos em grande
parte
que a Assembléia
Constituinte de 1891 não deu ao projeto constitucional de Miguel Lemos a
acolhida que merecia. E isso, segundo
Paulo Carneiro, pela importante e
enganadora razão semântica do projeto apresentar-se com o nome de “uma
constituição ditatorial” para o Brasil.[63]
Se assim
teria sido, esse é um caso que demonstra exemplarmente como o emprego de um
termo geralmente rejeitado pela coletividade pode ser desastroso. É um caso de criptografia, de dificuldade de
comunicação, de semântica alterada. É a
criptografia de resultado contraproducente, quando a palavra tem, de fato, o
significado alterado ou oposto ao desejado.
Demonstra a
grande, a enorme importância do que chamaremos, para dramatizar seu resultado
adverso, de --- criptografia política.
Mostrava o
gaúcho Júlio de Castilhos, como jurista e estadista, ter sentido essas
dificuldades semânticas de forma ampla na discussão de temas políticos:
“tudo
faremos por adaptar à
compreensão popular a fraseologia
peculiar ao assunto em debate”. (CARNEIRO, 1982,
p.109)
Decerto
pode admitir-se que a lógica firme com que Augusto Comte justifica a cuidadosa
escolha de suas palavras e de sua significação, venceu facilmente a percepção das inconveniências de seu
emprego.
Além disso,
estando Comte e seu positivismo com grande prestígio na França e na Europa em geral, essa influência
intelectual poderá ter inibido a verificação da nocividade semântica de um
vocabulário assim modificado.[64]
E
democracia, no vocabulário de Augusto Comte, significava, de forma distinta, a
sucessão do poder sob o regime eleitoral, mas tomada a eleição como solução universal infalível, dotada da
infalibilidade que não mais é creditada ao Papa, mas creditada ao Povo. Ao passo que hoje, democracia não pode mais
ser caracterizada apenas pelo processo
eleitoral, mas é sinônimo de liberdade, igualdade e justiça, sob variadas
formas de representatividade
social.
O filósofo,
no entanto, sempre imaginou que o seu regime presidencial, de liberdades mais
do que democráticas, devesse representar
as necessidades populares, sob a condição de uma opinião pública livre,
mantendo o poder executivo sob o controle de uma assembléia orçamentária e
fiscalizadora independente e eleita. E isso hoje nada mais seria do que democracia. Mesmo reconhecendo Comte a dificuldade
lógica provocada pela inversão de
valores do processo eleitoral, que pretende escolher os superiores pelo voto
dos inferiores, num universo
heterogêneo de eleitores. Portanto, não
será uma verdade completa afirmar que Comte considera, junto com Rousseau, a
democracia como inviável. O que Comte
condena é o emprego ingênuo das eleições como solução tida
como panacéia absoluta, dotada de moderna infalibilidade do povo destinada a substituir a
desacreditada infalibilidade papal.[65]
Pesquisas
de Condorcet, em seu conhecido paradoxo eleitoral, e, recentemente, no estudo e
no teorema de K.Arrow provam que o processo eleitoral não é confiável para sua utilização na social
choice, na decisão social.[66]
Em razão
disso, os pesquisadores concluíram que a democracia pode caracterizar-se menos pelo processo eleitoral do que pela liberdade dos cidadãos, pela
justiça, ausência de corrupção e pela igualdade de oportunidades. (HEAP,
1992, p.227)
Aí está o
debate aberto: quais serão as limitações do processo eleitoral?
E aí
estaria mais uma dificuldade semântica do vocabulário do filósofo. É o caso de confundir eleições
com democracia. Um criptograma político no texto de
Comte : o criptograma eleitoral.
Mas é muito curioso notar que o pensador dizia de
si próprio ... não ser nem aristocrata nem democrata. No entanto, o filósofo teria sido de fato um
liberal e um democrata!
Somente, no
caso, com o emprego de um vocabulário menos preciso de nossos dias, único
a ser compreendido pela generalidade dos leitores. Afirmação feita a salvo de nossos erros e
omissões, posta na mesa de debate, se o debate será livre e democrático.
3.2 ORDEM E
PROGRESSO
A noção de
sincronia e de diacronia, definida por Saussure em lingüística, é uma aplicação
da conceituação de estático e dinâmico
feita muito antes por Comte, cujo texto decerto Saussure desconhecia.[67]
O estudo
estático fornece, de forma geral, a estrutura ou composição do objeto em
equilíbrio, cujo movimento ou mutação caracteriza a condição dinâmica. As leis estáticas seriam de semelhança,
as leis dinâmicas seriam de sucessão. Em ambos os casos, as leis sociológicas são,
para Comte, relações normativas infalíveis, verificáveis, preditivas
no âmbito abstrato e não apenas indicações meramente descritivas e estéreis
para guiar a ação. Serão as descrições
da concretude, porém, imprescindíveis e de alto proveito como bases auxiliares
e preparatórias para o saber abstrato fenomênico.
Outra
conceituação polêmica importante feita pelo filósofo, nesse caso, consiste em
notar que
o desenvolvimento nada
cria, nada perde
ou, em outra forma, a
estrutura, o arcabouço contém, de partida, tudo que depois se desenvolve:
--- há validade aí da lei da conservação
da matéria e da energia, em sociologia tanto como em psicologia, em toda a
série fenomênica. (Politique, I,106)
Essa
conceituação básica nem sempre
fica muito clara no texto comtiano. Ela
é referida de forma por demais sucinta
como “o progresso depende da ordem” ou “o
progresso deve ser considerado sob as condições da ordem” ou
ainda “atendendo às condições da ordem
e do progresso”. (Politique, II,
41).
Ficaria
assim, segundo Comte, identificada a ilusão revolucionária de que destruindo
o status, derrubando as instituições, a rutura criaria
do nada ou dos escombros uma sociedade melhor.
Daí o lema político --- “ordem e progresso”, --- significando
que devemos manter a estrutura, dando-lhe condições de aperfeiçoamento, ou
seja, de liberdade, com que devemos ter tanto a ordem “democrática”
tanto quanto o progresso.
Seria a
demonstração do engano cometido no simplismo das soluções imediatistas de
destruição: --- a moeda está mal, suprima-se a moeda; a família tem problemas, suprima-se a
família. O capital é explorador,
suprima-se o capital; se a propriedade
apresenta um uso anti-social, acabe-se
com a propriedade.
Mas essa ordem, na filosofia política de Comte,
jamais foi empregada para propor o regime tirânico, em nossos dias implicado de forma bem definida, gritante e
irremovível no significado da
palavra ditadura. Esse termo, em
razão de trágicas experiências mais recentes, tornou-se o abominável sinônimo
de despotismo liberticida, de tirania cruel, capaz do mais desumano
genocídio. Ao mesmo tempo, carreou-se
para o qualificativo de “democrático” a acepção
indiscutível, por definição, de “governo bom”, dentro das
normas de direito, com liberdade, isento de corrupção, sob uma certa correlação
com o processo eleitoral, sempre fora da sucessão hereditária familiar.
Registra o
filósofo duas significações da
palavra ordem. Nos tempos antigos de
atividade militar, corresponde à ser a ordem
de comando. Na nova civilização
pacífico-industrial da modernidade, ordem passaria a significar a ação de arrumar, organizar ou fazer órgãos, delegar funções em plena
liberdade. (Politique, II, 469)
Mas a
Ciência Política de Comte é vista pelos revolucionários como radicalmente
conservadora, e pelos retrógrados como perigosa e destruidora, ao eliminar mitos e privilégios, propondo uma
liberdade leiga e exagerada.
Vê-se,
portanto, a correlação entre os conceitos de estático e de dinâmico com a
divisa da ordem e progresso.
Implicando, também, esse lema político,
como já registramos, a premissa da plena liberdade.[68]
Eis aqui,
então, a criptografia
da ordem e do progresso.
3.3 COMTE, LIBERAL, ---
MAS LIBERAL FANÁTICO
Continuamos
a analisar alguns criptogramas ligados à doutrina política de Augusto Comte.
Cabe-nos
aqui pesquisar se, em torno da figura de Augusto Comte, terá sido criada uma falsa
imagem de pensador autoritário, como se
fora ele o próprio precursor do totalitarismo, tanto de direita, como de
esquerda. Conceito que continuamente é
mantido e ampliado sucessivamente pelos comentadores da leitura de segunda
mão. E consagrado pelo ensino de
comentaristas de repetição copiadora, baseado na mesma bibliografia secundária. Em concerto unânime, comentadores
superficiais, sem ler o texto original, ensinam ser a doutrina de Comte um
empirismo tosco e autoritário e até uma
Ciência Política ditatorial.
Será de
justiça pesquisar como nasceu essa apreciação de Comte como teórico do
autoritarismo radical. Como terá
ocorrido essa alteração de significado
da obra do pensador?
A resposta
estará na pesquisa da dificuldade semântica do texto do filósofo: --- estará no estudo na criptografia
comtiana.
O livre exame, como preceito da Reforma
protestante para leitura bíblica, é analisado por Comte como um sintoma grave
do estado de decadência do papado, ou seja, como a verificação da crise da
modernidade, tomada como lamentável a rutura. Essa é a chamada “liberdade de consciência”, considerada por
Augusto Comte como a base do necessário progresso da modernidade. Essa liberdade foi, sim, inutilmente
combatida pelos papas, tentando evitar a derrocada de suas crenças pelo estudo
direto individualizado da multiplicidade das teses da bíblia, ameaçador da
autoridade hierárquica da fé. Contra
essa liberdade usaram os papas a
força de sua autoridade moral, e, mais tarde, em sua falta, até a força da
violência, quando o sacerdócio aliou-se
ao poder temporal da realeza, provocando a cruenta Santa Inquisição. (Politique,
IV, appendice,18)
Essa
análise condenando a liberdade de
consciência usada contra o catolicismo é um verdadeiro texto
criptografado, muito repetido por críticos apressados, de conseqüências
interpretativas enganosas. Logo
implicando erroneamente em que, para Comte, a liberdade de consciência seria um
terrível erro a ser sempre
combatido...
Pelo
contrário, por sua doutrina demonstrável, afirma Augusto Comte apresentar ele
a única
defesa permanente da
liberdade. E, ainda, afirma ser
ele o único pensador que
elabora uma doutrina em forma de
sistema na defesa da liberdade de opinião, de consciência e de livre exame. (Politique, I, 122)
Se assim
acontecer, será enorme engano pensar que Comte seria de fato o maior inimigo
das liberdades, o totalitário do século XIX, prócer eminente do nazismo.[69]
Será
necessário pesquisar com cuidado o texto comtiano para não cair nessa armadilha
e dela tirar conclusões enganadas. E, se
não houver grave erro ou omissão de nossa parte, muitos estudiosos de renome já
teriam chegado a produzir, dessa forma, análises de má qualidade, ao cair nesse
lamentável e indesculpável engano semântico, nessa criptografia
da liberdade de consciência.
Note-se que
o outro nome da plena liberdade de pensar no texto de Augusto Comte chama-se
“separar os
dois poderes”
tanto no
estudo abstrato da sociologia de Augusto Comte como na aplicação de sua ciência
política.
Significa
claramente retirar do governo material o governo das opiniões e do governo espiritual o poder de
comando filosófico pela violência ou pela riqueza. Decerto uma ciência política que considerasse
as opiniões e a religião como o ópio do povo, resultaria sem remédio numa
tirania liberticida. E do mesmo modo
pode-se questionar se conduzirá à tirania toda ciência política incapaz de identificar claramente esses poderes
nem se proponha a separá-los.
A “separação dos poderes” em Montesquieu
não corresponde a essa libertação comtiana do pensamento filosófico em
política. A divisão de poderes nesse
caso pretende o controle democrático do poder pelo fracionamento
do poder. Não se refere à libertação da
opinião, ao livramento da filosofia. E
Comte perguntaria, desconfiando da
fórmula expressa por Lincoln de “governo
do povo, pelo povo, para o povo”, será
que poderemos ter o controle democrático do poder, para obter e manter
as mais amplas liberdades por meio de outra forma de governo?
Ao estudar
como se dá a convergência dentro da sociedade, o filósofo enfatiza a
maior dificuldade da associação humana:
conciliar o concurso e a independência.
Em outras palavras, tentaria Comte compreender como os humanos em liberdade vivem em convergência
em sociedade, sendo independentes, não coagidos pela violência.
O problema
fundamental da sociedade, de acordo com Comte,
estaria em manter o concurso assegurando a liberdade, estando a solução desse problema num corpo de
doutrinas, de pensamento, num ethos que desenvolva primeiro o sentimento social,
o altruísmo, e depois a confiança, a fé.
Lê-se no texto
original do filósofo, com sua terminologia específica:
“Une conciliation permanente entre le concours et
l’indépendence constitue le noeud fondamentale de la sociabilité, dont la religion
peut seule instituer le dénouement. (Politique, IV, 34)
Explicitamente:
só a religião pode desfazer esse nó
fundamental em sociologia!
É a
expressão decisiva de que a solução única do problema fundamental da sociedade, a harmonia entre a
convergência e a liberdade só poderá ser
instituída pela filosofia, pela gnosiologia.
E essa solução filosófica implicaria
na mais ampla
liberdade!
Não está
impressa a palavra “liberdade”. Mas
lê-se liberdade na independência, como sinônimo perfeito. Não se trata aqui de obter o concurso pela
força ou pela ameaça, mas pelo amor e pela fé.
Volte-se, e leia-se de novo:
pelo amor
e pela fé!
Outra vez o compilador não poderá ler nem anotar a palavra liberdade no texto comtiano, embora o conceito de liberdade
claramente esteja contido no contexto,
no próprio espírito da comunicação.
A explicação das condições de afeto e de razão na unidade humana, em sua
coerência, estão na teoria da unidade, nas primeiras linhas do segundo volume
do Système de Politique, como já
vimos.
O biógrafo
de Comte, Henri Gouhier, pareceria ter razão ao dizer que
“Comte é um liberal fanático,
adversário impiedoso de Marat e
de Robespierre, de
Bonaparte e de
Luiz XVIII. Para
Comte a liberdade é um absoluto.”[70]
Fica claro,
na letra do Système de Politique,
que, para o pensador, a doutrina
abstrata, bem como sua aplicação política tem embasamento na disciplina
consentida da doutrina filosófica, jamais imposta, mas amplamente
elaborada em todos os aspectos da vida humana, nas afeições, na razão, na práxis política e técnica, no
formato de uma gnosiologia liberal, para regular a modernidade em nova civilização pacífica e industrial.
A proposta
do pensador, acertada ou não, coloca o
desafio maior ao filósofo de nossos dias:
dirigir a sociedade somente por suas opiniões, sem violência,
sem a tutela quer do Estado, quer da violência
ou da riqueza, mas somente pela competência e prestígio, moral e
intelectual do filósofo.
Em outras palavras, por meio da mais pura, da mais desinteressada
filosofia!
Nesse
aspecto básico, o sistema comtiano fica parecendo aos revolucionários do
progresso pela violência política apenas uma proposta “romântica”, irrealizável,
uma vez que só conhecem a solução tirânica por meio da força militar fardada de
um governo totalitário.[71]
Esse debate
está e continua na ordem do dia: escolher entre a tirania e
a filosofia da liberdade.
E
descobre-se então a dificuldade semântica
da complexa pregação em favor do poder da opinião, do poder do
consenso. Essa é a doutrina de Augusto
Comte, no estudo abstrato do fenômeno da coesão social. Sistema de pensamento que conclui pela necessidade da liberdade, isto é, por
ser inevitável e indispensável a disciplina livre, consentida, tida pelos
totalitários como uma “política ...apenas romântica”.
Será mesmo
que estamos presenciando uma grande dificuldade na leitura do texto original
comtiano? E exatamente na
importantíssima, democrática e original teoria da liberdade, com validade para os nossos dias e para todos
os tempos. Esse escolho semântico
alterado constituiria a criptografia romântica.
Portanto,
no texto de Comte parece permear a preocupação em manter as maiores liberdades
públicas, ao mesmo tempo em que pesquisa uma
forma de realizar a harmonia
filosófica pela afetividade e
pela razão, que livremente regule a vida humana em sociedade pelos mesmos
meios liberais historicamente registrados em cada civilização anterior pela
religião. .
A pretensão
se torna regenerar a sociedade pelo estabelecimento de uma comunidade de filósofos, gnosiólogos, sem poder nem riqueza,
de caráter teórico, por meio do ensino de princípios de ampla aceitação. Seria realizar o governo das opiniões em
forma de consenso, em plena liberdade, para regular a ação da política
material.
Supondo que
o problema da crise da modernidade tenha sido criado pela derrocada do sistema
de gnosiologia da medievalidade, pretendia
Comte que o problema sendo filosófico, sua
solução deveria ser filosófica. Ou seja, primeiro o pensador identifica
a crise de nossos dias como sendo de caráter filosófico. Em seguida pretende que seja essa crise
resolvida nos mesmos termos, filosóficos, isto é, no âmbito de uma solução doutrinária, ou seja não apenas
política, não violenta.
A solução,
portanto, do problema da modernidade, não
estaria somente no âmbito do governo temporal : principalmente a solução da crise estaria
implicada na esfera filosófica.
Por essa
razão propõe o autor a instituição de um culto ou adoração de caráter
socialista ou social, sem a tutela ou incentivo do poder material. O culto deveria ser livre, tanto para o
indivíduo, para a família, a pátria e para a comunhão internacional.
Não se
haveria de confundir esse culto religioso sincero e em liberdade com programas
políticos despóticos destinados à propaganda de regimes de força.
Essa forma
de controle social livre pretenderia o filósofo ter visto sempre nos sistemas
de gnosiologia de todo o passado, onde os filósofos ou sacerdotes obtinham, com
formas de pensar diferentes, a cada época e lugar, a mesma coesão social. Escreve então sobre a consagração religiosa
que
“pendant le déclin du catholicisme ce privilège (du sacerdoce) fut de plus en plus regardé comme une
usurpation envers l’autorité civique, qui, finalement, domina partout
l’influence ecclésiatique, pour les trois phases principales de la vie
privée, la naissance, le mariage, et la
mort.” (Politique,
IV,122)
Essa
verificação feita no texto original de Comte indica a extensão de suas
especulações na esfera da religião, que
resulta numa das maiores dificuldades semânticas na sua linguagem, que assim
parece completamente cifrada, em meio a sua aparência teista.
Entraria em
debate, portanto, a esfera do sentimento,
da afeição, na solução do problema político e filosófico.
A complexa
doutrina de Comte apresenta então um aparente misticismo e espiritualismo: Fala o autor na “espiritualidade” de sua
proposta da “santidade” da
ciência :
“Il faut
donc que d’abord le coeur règle l’esprit, afin que leur harmonie discipline
ensuite l’opinion public,
d’où résulte une force morale
destiné à perfectionner les impulsions individuelles. Ce complément
général de la spiritualité
positive suppose, avant tout, des sentiments convenables, qui prévalent
aisément, chez les âmes les plus imparfaites, envers la conduite d’autrui. Mais son nom usuel doit suffisamment rappeler
que cette force exige aussi des pensées communes,d’après lesquelles on
puisse juger chaque cas.”
“Ainsi conçue, la science acquiert une sainteté jusqu’allors impossible, en consolidant à la fois la
liberté et vraie moralité” (Politique, IV, 167)
Refere-se
aqui o autor à subordinação da inteligência, da razão, aos sentimentos e às necessidades práticas da
sociedade, quando a luz dada pela ciência se tornaria “santificada” por sua destinação ao bem comum. O que teria ocorrido sempre no passado,
dentro de cada civilização.
Esses
criptogramas é que conduzem a enganosas interpretações de considerar Comte como
“retornando ao misticismo” de sua infância, ou até numa visível prova de demência
“senil” antes dos cinqüenta anos
de idade.
Além da
criptografia pode notar-se a preocupação do autor em sua doutrinação com a liberdade. E também com a semântica do nome de “opinião pública” livre.
Assim nasce
no texto comtiano o criptograma do
misticismo.
3.4
A CIÊNCIA POLÍTICA,
A FILHA DA LIBERDADE
O problema
fundamental em política, do recrutamento, seleção e treinamento dos
governantes, é posto na ciência política de Augusto Comte como e estudo da transmissão do poder e da
propriedade. Além das dificuldades
semânticas nesse assunto, outros temas deveremos abordar, como a tirania, a
interpretação da liberdade em Hobbes, o empirismo anti-filosófico e a origem da
crise política.
O colégio
filosófico libertado, imaginado por Comte para a orientação espiritual das
mentes humanas, deveria ficar, por sua recomendação expressa, sempre isento
da opressão temporal. (Politique
IV, 259)
Para a
solução do importante problema da transmissão das funções e do capital nas
classes ricas, no patriciado, também será à liberdade que recorrerá o
autor; recomendando para tanto a liberdade de testar e a liberdade
de adoção com a livre indicação do próprio sucessor:
“Quant à hérédité sociocratique des offices et des capitaux, il suffit
ici de compléter la loi fondamentale, établie dans mon volume statique, sur le libre choix du successeur, sous la sanction du supérieur.” (Politique, IV,333)
O seu
“volume estático” refere-se ao segundo volume da Política Positiva, onde apresenta o estudo da estrutura da
sociedade. Na instituição da teoria da
família, escreve o autor:
“D’antiques exemples de monstrueuse inimitié manifestent combien la
fraternité fut altérée par la transmission héréditaire des fonctions
sociales. Il en est de même, à un
moindre degré, quand l’hérédité se borne à la richesse. Mais, en rapportant toujours la famille à la
société, le régime final dégagera l’autorité paternelle de toute entrave
inspirée par l’égoïsme domestique.
Pleinement libres de tester
sous une juste responsabilité morale, les pères pourront alors transmettre hors de
la famille les
capitaux acquis ou conservés, même indépendamment de l’adoption.” (Politique,
II,199, 200)
Chama o
autor de sociocrática a transmissão
do poder e da propriedade em vista do bem da sociedade, e não dentro do
critério familiar, em favor dos
descendentes, o que tem origem no regime de castas na teocracia antiga. Mas usou o termo hereditariedade, que, para
nós, é unicamente usado com o significado teocrático. Sobre o tema retorna o filósofo no mesmo
segundo volume, na p.406, no estudo das classes produtoras.
A expressão
“regime final” não tem o sentido de colocar um limite para o progresso, mas
chama assim o autor o regime proposto como o fim de uma série evolutiva, sendo
o começo de outra civilização, cuja característica seria a atividade pacífica,
em constante aperfeiçoamento. Não se
trata do fim da história.
Essa
proposta de alteração do processo de sucessão de bens e de funções é
fundamental em política, com significativa conseqüência num regime em que o
Estado é posto como mínimo indispensável e onde haveria concentração crescente
dos meios de produção nas mãos do patriciado cada vez mais reduzido, se o
futuro confirmar a visão de Comte.
Na ciência
política comtiana se faria a socialização
do empresário e não a socialização dos meios
de produção. Deve-se notar que o
filósofo usa sempre o nome de patrício para designar o chefe prático, detentor
da riqueza, considerado nos três setores da economia, da indústria agrícola,
extrativa e manufatureira, do comércio e
do banco.
Mas a
palavra liberdade, de forma
explícita, pode aparecer na escrita de Comte:
“Une pleine liberté d’exposition, et même de discussion, est d’abord indispensable comme garantie
permanente contre la dégénération, toujours imminente, d’une dictature
empirique en une tyranie rétrograde.”(Politique,IV,379)
Se assim
foi, a ditadura, como definida por Comte, em sua semântica alterada, não seria,
em nossos dias, a ditadura. Logo,
ditadura não seria
ditadura!
Não seria uma
ditadura como todos entendemos hoje, com supressão das liberdades, numa
verdadeira tirania. Trata-se, sim, do
presidencialismo democrático, e, até mesmo eleitoral!
O autor
compara a proposta política de Hobbes, de disciplina puramente material e amplas liberdades civis, com o
regime por Comte proposto. E refere-se
a Frederico II da Prússia, como um
exemplo, por todos conhecido, de governo com liberdade, embora mesmo sob um
regime absoluto, tal como um imperador “democrata”.
Será
curioso pesquisar se, na doutrina de Hobbes, por sua posição
anti-espiritualista, terá sido apresentado também falsamente como
adversário da liberdade, numa distorção da leitura de seus textos, numa deformação semântica hobbesiana. E se, paradoxalmente, essa distorção terá
origem exatamente vinda de grandes inimigos da liberdade, de adeptos de alguma
forma pouco caridosa de doutrina fechada de espiritualismo. No entanto, é Hobbes reconhecido, apesar de
sua falta de piedade teísta, com muita razão, como precursor do liberalismo ...
Não só
Comte, portanto, teria sofrido com a maldição
criptográfica. O viés
interpretativo também afetaria a leitura do materialista Hobbes na visão da bibliografia
dominada pelo espiritualismo conservador, por muito tempo aliado ao
despotismo político desde a retrogradação de Napoleão.[72]
Com essas
circunstâncias, gera-se a grande dificuldade semântica que chamaremos de criptografia
do autoritarismo.
Ao concluir
sua obra principal, o Système de
Politique, escreve Comte:
“En aspirant
à la réorganisation matérielle isolément de la reconstruction
spirituelle, l’empirisme pratique devient plus vain et
plus perturbateur que l’empirisme théorique qui s’efforce d’instituer la
science indépendamment de la philosophie, ou celle-ci sans la religion.” (Politique,IV,532)
Para
entender essa crítica ao “empirismo” de
ordem prática e ao “empirismo” de ordem
teórica, torna-se necessário saber o que significa para o autor a palavra “empírico”. O conceito de empírico para Comte é definido
pela falta de articulação com uma doutrina mais geral. O empírico
seria o atributo oposto ao filosófico,
ao conceito encadeado a um sistema, a uma síntese, sendo, portanto incapaz de
perceber o conjunto. O saber empírico
seria exemplificado pelo conhecimento de que um balão de ar quente sobe no ar e
não saber que se trata da mesma relação dada pelo princípio de Arquimedes, de
flutuação de um corpo num líquido.
O empirismo prático consistiria então
pretender reorganizar a sociedade sem conhecer a teoria sociológica da
liberdade espiritual, o que é comum ocorrer com os políticos. Certos teóricos políticos até negam existir
uma filosofia política, afirmando que toda doutrina política seja uma falsa
ideologia, já que sua própria proposta é a única válida.
O empirismo teórico é referido como a
tentativa de fazer ciência sem filosofia e fazer filosofia sem religião.
A solução
comtiana, portanto, seria genuinamente filosófica,
e, por conseqüência, completamente liberal. Por não pregar o uso da coerção.
Eis ai a criptografia do empirismo.
A opressão
pelo governo temporal, como característica nefasta, como doença da modernidade,
é visto por Comte, como a decorrência do desmoronamento do feudalismo e da
doutrina religiosa correspondente:
“Je le répète, tout ce qui est arrivé a du arriver, et
je suis certainement aussi éloigné
que personne de tout regret
stérile sur le passé. Mais qu’il me
soit permis d’observer, avec le grand Leibnitz,
le fait de l’importante lacune
laissée dans l’organisation européenne par la dissolution inévitable de
l’ancien pouvoir spirituel, et d’en conclure que, sous ce premier rapport,
l’établissement d’un nouveau gouvernement moral est impérieusement
réclamé par l’état présent des nations civilisées.
La décadence de la philosophie théologique et du
pouvoir spirituel correspondant a laissé la societé sans aucune discipline
morale. De là cette série de
conséquences que je marque dans l’ordre où elles s’enchaînent mutuellement.
1. La divagation la plus complète des
intelligences.
2. L’absence presque totale de
morale publique.
3. La prépondérance sociale accordée de plus en
plus, depuis trois siècles, au point de vue purement matériel, est encore une
conséquence évidente de la désorganisation spirituelle des peuples modernes.
4. Je dois indiquer enfin comme dernière
conséquence générale de la dissolution du
pouvoir spirituel,
l’établissement de cette sorte d’autocratie
moderne qui n’a point d’analogie exacte dans l’histoire, et qu’on eut
désigner, à défaut d’une expression plus juste, sous le nom de ministérialisme ou de despotisme administratif. Son
caractère organique propre est la centralisation du pouvoir poussée de plus en
plus au delà de toutes les bornes raisonnables, et son moyen général d’action
est la corruption systématisée. L’une et l’autre résultent inévitablement de la
désorganisation morale de la société. (Politique, v.IV,
Appendice,184 e seg.)
Essa análise
severa da autocracia moderna, indica, como já vimos antes, a
origem filosófica, para Comte, desse mal. Confirma, também, o ânimo grandemente liberal
do filósofo. O que leva a pensar que a
acusá-lo de autoritarismo não passe, de fato, de um engano semântico, de uma leitura criptográfica.
Notar aqui,
como o autor faz o crédito de idéias que emprega, citando Leibniz, o que mostra o seu hábito de
honestidade intelectual, que, por outro lado, torna o texto mais sobrecarregado
com tais indicações.[73]
Comte mostra,
já nesse escrito de juventude, em 1826, aos 28 anos, como relacionava o
problema filosófico ao governo
político, que até mesmo no caso, é o governo da sociedade
pela religião, por meio do consenso, no âmbito intelectual e afetivo, sempre
longe da opressão.
Temos,
portanto, neste terceiro capítulo, examinado alguns dos mais importantes
obstáculos postos na leitura do texto de Augusto Comte, na aplicação de uma
construção filosófica extensa e demorada na elaboração de uma nova
Ciência Política.
Corresponde,
esse estudo, a um convite para a leitura e a crítica da obra original do
filósofo, para confirmar ou não seu caráter liberal. Será de fato, a ciência política de Comte
autoritária ? Como explicar as lutas dos
positivistas brasileiros pela libertação dos negros e dos índios ? Como explicar as numerosíssimas intervenções
do Apostolado Positivista em favor das diferentes formas de liberdade, até mesmo ao defender a própria Igreja Católica,
ameaçada de perder a propriedade de suas igrejas e de seu patrimônio predial ?
Augusto
Comte será, de fato, um fanático pela liberdade? A semântica de sua ditadura que não é
ditadura, é, mesmo, uma dificuldade criptográfica. Como o fato de ser democrata a contragosto,
não desejando ter o título em sua época um nome hoje tão cobiçado como de
democrata. Como pode ser autoritário o
filósofo tido como fanático pela liberdade ?
Será
difícil julgar se o debate filosófico, o choque de doutrinas, seria a única
razão desse desvio semântico, ou mesmo se o preconceito metafísico participaria
predominantemente na realização dessa distorção da imagem do filósofo e de sua
doutrina. Mas, em todo o caso, o
vocabulário de Comte e a complexidade de seu pensamento merecem um estudo mais
cuidadoso.
Deve-se
sempre ter em mente que as considerações até aqui feitas sobre o texto comtiano
não pretendem ser completas e capazes de exaurir todas as dúvidas possíveis que
uma elaboração enciclopédica e complexa como essa possa apresentar.
CONCLUSÃO
A Criptografia de Augusto
Comte
O percurso
de nossa pesquisa permite concluir que a dificuldade em ler o texto do filósofo
decorre principalmente de seu estilo próprio. Mas não só de seu estilo
sintético e ao mesmo tempo inchado de referências e de idéias em geral
originais, complexas e contundentes.
Certas ou erradas, a serem aceitas ou contestadas. A dificuldade decorre também do ataque de sua
doutrina a preciosos e importantes
preconceitos seguramente arraigados desde a mais remota antigüidade.
A pesquisa
permitiu encontrar várias formas criptográficas bem definidas no texto de
Comte. Além de revelar essa suspeitada,
mas inesperada criptografia, foi possível tentar descobrir algumas de suas
causas e de suas variadas formas.
A surpresa
decorre do fato bem conhecido de ser o autor um filósofo dono de uma obra
séria, feita com cuidado, até ao excesso, no rigor das menores singularidades
ou das mais amplas generalizações.
Não foi
possível encontrar um deliberado propósito claro e distinto do autor em
elaborar uma linguagem secreta. Augusto
Comte, tal como Descartes, procurava escrever com nitidez para atingir a
opinião popular. Em especial procurava
apoio na opinião dos trabalhadores e das
mulheres, não deformados em sua formação por preconceitos escolásticos e
acadêmicos. Eram os únicos em quem
confiava para desenvolver a revolução filosófica “romântica”, sem violência, que pretenderia
implantar na doutrina e na práxis
de modo afetivo e intelectual, sem
coerção.
Mas
verdadeiros enigmas foram mostrados no seu texto. Embora colocados sem a menor intenção
criptográfica, sua decifração quase sempre foi impossível a muitos de seus
leitores.
Alguns
criptogramas são apenas expressões mais difíceis, referências implícitas,
conceitos complexos, novos. Foram aí
postos pelo próprio autor, sem o propósito de esconder seu pensamento. Pelo contrário, o autor buscava expressá-lo
claramente, mas de forma sucinta, confessadamente feita às pressas.
Verdadeiros
enigmas são os que resultam da deformação de sentido dada a palavras comuns
usadas em significação diversa da convencionada. Essa alteração semântica,
embora sempre justificada, torna o texto enganoso, criptográfico, no sentido
aqui nós estabelecido.
Outros
enigmas, no entanto, são postos no texto comtiano, ao correr de leituras
descuidadas, em falta de atenção, em pesquisas incompletas ou até tendenciosas,
a deformar o pensamento original do filósofo.
Essa prática intelectual acarreta, por vezes, a qualidade inferior de
muitas pesquisas e de muitas interpretações.
A leitura
do texto original dos filósofos
merece, portanto, ser em geral incentivada. Um dos critérios de qualidade nos
estudos filosóficos deve ser a indicação distinta e confirmada do número da
página no original e não só o debate
erudito, por vezes elegante, mas estéril, vazio, baseado numa hermenêutica
artificial, a partir do texto nem sempre fiel de comentadores fantasiosos, eles
também, por vezes exegetas de literatura de segunda mão.
A evolução
do próprio pensamento do autor e de sua semântica contribui, no caso de Comte,
ainda mais para o corte da comunicação.
E os criptogramas indicados na pesquisa quase sempre resultam da criação
de conceitos novos, complexos, estranhos
ou exóticos, de significação em viés, ainda mais deformados pela alteração
natural, imprevisível do léxico.
Pelos
textos originais estudados e pelas enormes distorções feitas por seus
comentadores fica bem clara e distinta a necessidade patente, para a leitura da
obra de Augusto Comte, da explicitação sistemática de sua terminologia.
O
procedimento do pensador em nada reprovável ao evitar neologismos, deu lugar a
um curioso dialeto incompreensível,
constituído de palavras comuns
consideradas em conceituação diversa.
Seria um dialeto criptográfico particular em filosofia.
Formou-se
uma linguagem que jamais alerta o leitor com palavras estranhas. Seus termos são todos bem conhecidos. Mas ditadura não é ditadura; religião não é
religião; rezar não é misticismo, o não democrata é democrata.
Essa
dificuldade ficou bem caracterizada quando o estilo do autor foi
considerado “anfibológico”. E, com mais
precisão, quando se percebe uma criptografia capaz de iludir a todos os
leitores, sem distinção.
É o
fechamento, não exatamente da doutrina, mas é o fechamento, pelo menos parcial,
da comunicação.
A
criptografia, no entanto, não é expressamente voluntária. O autor reconhece essa dificuldade e se
penitencia da falha, justificada por sua pressa em criar o ambicioso sistema
planejado. Uma vez conhecidas, as suas palavras
apresentam uma certa elegância pedante,
como afirma Littré. Seria pedante
em sua dificuldade superior, agravada por uma complexidade sucinta. Mas elegante por sua ameaçadora e esbelta
graça. Embora por vezes ilegível.[74]
Talvez tão importante
como a identificação e a ênfase na criptografia de Augusto Comte nesta
dissertação terá sido a explicitação aqui realizada da grande teoria da liberdade humana, desenvolvida por Comte em forma
de sistema filosófico, de filosofia
da liberdade, pelo método cartesiano, demonstrável.
Essa
original, mas pouco reconhecida e nunca mencionada teoria
da liberdade resulta, como
vimos, na sociologia de Comte, da constatação histórica, na política do
ocidente medieval e moderno, da caracterização clara e distinta dos poderes
sociais, com a rigorosa recomendação pelo pensador da separação do poder teórico do filósofo em relação ao poder material do goveno político. E de sua proposta liberal para resolver a
grande e permanente dificuldade de compatibilização no grupo social da independência
com o concurso. Ou seja, mantida
a inarredável liberdade, mostrada com o caráter filosófico de necessidade, como poder-se-á
obter continuamente o concurso, a convergência
social.
O sistema
proposto por Comte sofreu, no entanto, a ação de confrontos de grande
monta. A história da filosofia no século
XIX mostraria o despotismo napoleônico impondo um espiritualismo oportunista
que assumiria o controle despótico do
ensino e da pesquisa na universidade por mais de um século, resultando na
padronização dos estudos sob a tutela ontológico-metafísica do Estado, que
chega quase até nossos dias.[75]
Se
verdadeiro, esse fechamento teria sido, nessa visão, efetivado pela imposição
pelo Estado de uma erudição intelectual espiritualista estéril aliada a uma
política conservadora, resultando no expurgo imposto por Napoleão aos filósofos
renovadores do pensamento e do ensino.
Seria a vez do oportunismo político, aliado ao poder, quando Victor Cousin
com seu ecletismo afasta o debate ao afirmar que a filosofia já está feita, não deve mudar.[76]
O ensino na
França, portanto, em grande parte, teria, desde então, passado a dar ênfase à
interpretação metafísica do pensar, única permitida pelo poder político, de
maneira clara ou disfarçada. Prevaleceria
uma visão adequadamente hostil ao do iluminismo, aos enciclopedistas. E seria mesmo infensa à ciência e à técnica,
à moderna filosofia da ciência e naturalmente à obra de Augusto Comte, tanto
quanto à de outros renovadores. Por meio
da liderança francesa, essa tendência teria passado a todo o ocidente, a todo
mundo civilizado.
Se tal
ocorreu, a universidade teria sido então empolgada por uma versão oficial do
que se denomina contemporaneamente de “pós-modernismo”, em versões por vezes
lembrando um retorno ao obscurantismo antigo, com vestes revolucionárias de
nossos dias, como diz Paolo Rossi.
Não coube
aqui escolher entre o moderno e o pós moderno, entre o espiritualismo e o
materialismo, ou ficar ecleticamente a meio caminho. Em todo o caso esperamos, felizmente, aqui, festejar
a liberdade acadêmica agora
desfrutada, para incentivar o debate civilizado e aberto em busca da verdade.
Não é
possível impedir mais, com doutrinas impostas direta ou indiretamente pelo
poder do Estado, o saudável embate ideológico em liberdade na filosofia, na
ciência, no saber em geral. A verdade de
nossos dias não está pronta: --- ela
deverá ser pensada, discutida. A verdade
está para ser elaborada.
Será
oportuno, agora, ter uma visão do que pesquisamos neste trabalho que teria a
pretensão de salvar a verdade e restaurar a justiça na leitura da obra de
Augusto Comte. A obra de sua vida,
pretendendo fazer das ciências uma filosofia, elaborando a sociologia,
postulando a psicologia científica abstrata e aplicando essa investigação
polimorfa à prática política, para reestruturar o governo da sociedade
humana. Desse labor resulta, afinal,
uma teoria geral do saber humano: --- uma gnosiologia, uma enciclopédia.
Como terá
sido pesquisada a criptografia de Comte?
Como sua filosofia tornou-se sujeita à criptografia? Antes de tudo teria sido indispensável
conhecer a doutrina comtiana. Em seguida
dever-se-ia conhecer como sua leitura foi feita, e quais as distorções
havidas. Então seria a hora de ter uma
noção dos erros mais comuns, e notar, entre eles, quais seriam os mais
freqüentes e mais importantes.
Inicialmente
procurou-se identificar o que fosse a criptografia comtiana, conhecendo-se seus
exemplos A seguir buscamos registrar as
mais importantes dificuldades semânticas no texto abstrato do filósofo. E
vimo-las em sua desconhecida e importante teoria da liberdade, na religião que
não é religião, nas suas definições e nas suas ambigüidades, no infeliz mas bem
mascarado plágio de Saint-Simon, no afastamento do absoluto pelo relativo, no after-death,
na grande gnosiologia. Mas espanto
mesmo foi na constituição de uma nova causa final, uma nova teleologia!
Só um filósofo-mito poderia propor tão ambiciosa construção.
As
dificuldades no texto aplicativo de Augusto Comte foram achadas na ditadura que
não é ditadura, no autoritarismo inexistente do pensador que é um liberal
fanático, na sua criptografada ciência política da liberdade, na democracia que
não é democracia.
Esse foi o
esforço realizado para ajudar na difícil compreensão da filosofia de
Comte. Um esforço para colaborar na
decifração de suas dificuldades redacionais e para vencer os obstáculos aí
colocados pelas interpretações falsificadoras dos comentadores de segunda mão. Mas, por vezes, a forte complexidade do tema
e sua extensão desmesurada parecia colocar-nos mal equilibrados no alto de uma
esfinge, em risco de cair da imensa altura do pensar de Comte. O consolo só viria ao ver que estávamos
sobre fortes e elevados ombros.
Estávamos seguros, de pé sobre os ombros do grande pensador.
Decerto a
extensa obra de Augusto Comte, mesmo
marginalizada pela criptografia própria ou adquirida, terá saliente lugar no
grande debate filosófico da atualidade, seja ela uma doutrina de liberdade e de
altruísmo, seja de repressão e de ditadura.
Mas, para facilitar sua compreensão, a explicitação dessa grande
dificuldade semântica torna-se imprescindível.
A chave
para decifração desse monumental trabalho intelectual estaria no glossário
filosófico da doutrina de Comte para nossos dias, aqui tentativamente proposto
e que segue em anexo a esta pesquisa.
Sua
necessidade mesma comprova a criptografia que queríamos pesquisar.
Q.E.D. Quod erat demonstrandum
Que era a demonstrar
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[1]Assim,
finalmente, terminou uma liberdade
particular e iníqua, em proveito
próprio e exclusivo de uma das seitas, a católica, ao impor pela coerção
suas idéias, seu culto e suas práticas a todo o povo brasileiro. Era então oficialmente vedado, na monarquia,
o culto de todas as outras demais seitas tanto das mais antigas como das
resultantes da fragmentação religiosa com que a doutrina sobrenatural divide os
humanos, dentro da perigosa crise da modernidade, numa perversão da eterna missão aglutinadora da religião.
[2]A
França passou a ser o centro do ocidente a partir sobretudo de Carlos Magno, na
visão de Comte. (Politique, I,p.82) T.N.Clark, in Prophets and Patrons, p. 237,
diz que o brilho de Paris faz qualquer uma das universidades
estrangeiras empalidecer, na comparação.
Portanto, Paris ainda poderia, talvez, ser tida como a capital do
pensamento humano, como afirmou Comte.
[3]GOBLOT, Edmond, in UTA, Michel, 1928, La théorie du savoir dans la philosophie d’Auguste Comte,
préface, p. XVI.
[4]STUART MILL,1890, Auguste Comte et le Positivisme, p. 200.
[5]ARBOUSSE-BASTIDE,
Paul, Ante una Tumba Abierta,
in Revista mexicana de sociologia,
Universidade Autonoma de Mexico, 19:3, set-dez 1957;p, 690. Ver A.W.GOULDNER,
For Sociology, N.York,Basic Books,
1973, sobre a polêmica de Durkheim contra Augusto Comte..
[6]Conforme
pesquisas da escola psiquiátrica do Prof. ANÍBAL DA SILVEIRA, da USP, em
S.Paulo. Ver COELHO, Lúcia, 1980, Epilepsia
e Personalidade.
[7]ALCEU
AMOROSO LIMA, 1956, in Política, p. 115, considera que a
liberdade religiosa promovida pelas doutrinas de Comte foi benéfica para a
Igreja Católica, com a separação em relação ao Estado.
[8]LITTRÉ, in Auguste Comte, p.257;
LOMCHAMPT, in Revue Occidentale,
juillet 1889, p.24; ambos apud GRUBER, in
Auguste Comte, Sa Vie, sa
doctrine, p.79, 80. Para a
referência diabólica, ver p. 331.
[9]A
identificação clara da necessidade de um estudo das deformações existentes na
interpretação dos textos de Comte, recebeu
incentivo importante do ilustre prof. David Carneiro Júnior, da Universidade
Federal do Paraná e do Centro Positivista em Curitiba, a quem devo expressar
meus agradecimentos.
[10]COMTE,
1972, Opúsculos : os tradutores indicam ter usado a tradução de
Henry Dix-Hutton para esclarecer dúvidas de diversas passagens obscuras do
original na p. XIII.
[11]Existe
uma tradução dessas Lettres em
português, por Egydio RUSSO,1990
[12]A
expressão anfibologia foi usada por Kant na Crítica da Razão Pura, na seção 3a. da doutrina transcendental da
capacidade de julgar, em apêndice.
[13]Ver
in PEREIRA, Eduardo Carlos, Gramática Expositiva, Curso
Superior, 101ed.., S.Paulo:
Cia.Ed.Nacional,1957, p.271 e 275. A
anfibologia é identificada na Sintaxe como um vício de linguagem, entre
o barbarismo, o solecismo, a cacofonia, o eco, o arcaísmo, o neologismo.
[14]Ver
LINS,1963,p.361, e a Politique, v. I
p.7 do prefácio; ver COMTE, 1900, Síntese Subjetiva, p.755,seg.
[15]A
numeração arábica do volume I da
POLITIQUE inicia-se após o prefácio até a p. 24. Depois da numeração em algarismos romanos da
“Dédicace”, reinicia-se nova
numeração arábica.
[16]A
interdição do positivismo por M.Fichant, apud M. BRITTO, in Seminário Nacional sobre a
Interdisciplinaridade,1993/94, p.64,
atesta o êxito de Comte ao fazer com as incipientes ciências de seu
tempo a filosofia da ciência, alvo de atenção e de debate.
[17]HABERMAS,
1982, refere-se com frequência ao êxito de Comte na metodologia das
ciências:p.16,27,78,92,93.
[18]Os Opúsculos de filosofia social estão
traduzidos para o português. Ver COMTE,1972
[19]CAIO
PRADO Jr.,1986,p.104.
[20]JAPIASSU,MARCONDES,1989,p.99
[21]MORENTE,1966,p.31.
[22]Aforismo
formulado em 1817, aos 19 anos de idade.
(Política,
v.IV,apêndice,p.II)
[23]
MARITAIN, 1977,Problemas da filosofia
moral,p.40
[24]Sílvio
Romero percebeu o emprego do método de pensar positivo em Tobias Barreto,
classificando-o de “positivista a
contra-gosto” ao usar contra Comte os meios comtianos de pensar.
[25]ASSIS
BRASIL, 1927, refere-se à “democracia
exagerada, que se confunde com a demagogia”.
[26]LITTRÉ
1864, p.259, refere-se à força, à novidade e à grandeza da expressão no estilo
de Comte.
[27]Seria
ele o “último idólatra da razão”. Ver, no prefácio, HÜHNE,1995,p.7
[28]A
referência é feita
na Politique Positive, III,559,
sendo ele o rei Francisco I de
França (1494-1549), na batalha de Pávia, em 1525, onde foi feito
prisioneiro. Reinou de 1515 a 1547.
[29]Vejam-se
os textos, por exemplo: Na Philosophie,
v. IV, p 33,53,60; v.V, p 331; v. VI, p 38.
Na Politique, v. I, p 196; v. III, p 529,529,580,596; v.
IV, p 333,334,381 a 384, 468, appendice 188,205.
[30]Ver
in KANT, Crítica da Razão Pura, trad. de V.ROHDEN e
U.MOOSBURGER, S.Paulo, Abril, 1980
[31]Em
HABERMAS, 1982,p.94, por exemplo, lê-se que a hierarquia fenomênica comtiana
seria de seis ciências,da matemática
até a sociologia, e não de sete degraus,
com a psicologia ou moral teórica por último..
[32]Citação
encontrada em LAUBIER, 1957, p.47, aqui mostrada com a
paginação verificada e corrigida.
[33]O
abandono de orações adversativas de sequência no texto de Comte é a causa de
enganos, como o cometido por Poppper, como ensina OLIVA, Alberto, p.204, in ÉVORA ,Século XIX, 1992
[34]Ver AZZI,R.,1980,192.O autor cita os
positivistas idealizando a Idade Média
como a época áurea da história do Ocidente.
[35]Ver AZZI, R.,1980, p.253 e seg., que
afirma que Comte enaltece a idade média, com a concepção autoritária do Estado.
[36]Henri
Gouhier apresenta St-Simon como usuário de
ghost writers, ou jovens que para ele escreviam, cujos
textos eram assinados sem ser de sua autoria e conhecimento, por vezes em teses
contraditórias. Ver H. GOUHIER,1931,p.25 e 242.
Para esse biógrafo de Comte, que lhe estudou a vida detidamente,
Saint-Simon teria uma ambição tão
universal e variada quanto a sua incompetência.
[37]HABERMAS,
1982, p.93,94: mesmo sem citar a obra principal de Comte, a Politique, afirma que o estilo estranho
do filósofo se deve a ser ele apenas um plagiador, e a criptografia seria
resultante do mau ajustamento das múltiplas compilações feitas. O caráter
fastidioso do texto de Comte resultaria da combinação eclética de elementos já
conhecidos. Por isso corajosamente afirma Habermas ter ele plagiado tanto a lei dos 3 estados
como a hierarquia das ciências. Mas para Habermas seria original em Comte uma
metodologia que coloca o progresso técnico-científico no lugar do sujeito numa filosofia científica da
história. Um objetivismo que teria permanecido até nossos dias como signo de
uma teoria da ciência imposta pelo
positivismo de Comte.
[38]
Paulo FRANCIS em sua página de jornal no O
Globo de 11-06-1995 conta que o filme
“Baby doll”, de 1957, condenado pelo cardeal Spellman, tornou-se,
por isso, um sucesso de bilheteria, embora fosse um filme insípido. Ivan LINS,1958,p.373, indica o desuso das
excomunhões e do Index. A inclusão em
uma ou em outra se constituem em propaganda e fama para os prestigiados por tais
antigas penalidades religiosas.
[39]Tem
razão HABERMAS quando afirma não constituir o Cours de Philosophie uma síntese, in “Conhecimento e Interesse, 1982, p.90,94. Mas não conheceu ele uma “intricada explicação” de Comte para referir as concepções por ele
propostas a um centro comum, não
absoluto, portanto demonstrável, que se lê no Système de Politique, v. I, p. 580.
Habermas busca a realização de uma síntese em torno da ontologia, por
uma gnosiologia metafísica. E não cita o
Système de Politique, que parece
desconhecer ou desconsiderar.
[40]DURKHEIM, The Division of Labor in Society, trad. G. Simpson, Free Press,
1947,p.358, apud ALVIN W. GOULDNER, in For
Sociology. N.York: Basic Books, 1973, p. 372
[41]Ver
CAVALCANTI,, Iniciação filosófica,
1914, p.210, dedicado ao Padre José Maria da Maia Mello.
[43]Ver
CARNEIRO Jr. Davi,1990, Positivismo e Humanismo, p.93. Ver PERNETTA, 1957, Filosofia
Primeira, p.24.
[44]
OLIVA, Alberto, 1992, explica bem essa deformação
semântica posta indevidamente na epistemologia de Augusto Comte.
[45]A
verdade é um fato social, o saber tem caráter coletivo. Essas teses de Comte
são suficientes para colocá-lo ao nível dos maiores mestres do pensamento
humano, diz GOBLOT in UTA, 1928, p.XVI.
[46]
Ver in COELHO, Lúcia, 1980 o estudo das
funções psíquicas segundo Comte, p.73
[47]CRUZ-COSTA,1959,
p.73: a sua Moral está esparsa em
toda a obra de Comte, sem contornos,
pouco definida em seu método ou nos seus princípios.
[48]PIAGET,1950,
v. II, p.300, declara a sociologia de
Comte insuficiente , com preconceitos anti-psicológicos. CLARK,1973,na p.169,170, afirma que Augusto Comte errou ao deixar de
incluir a psicologia em sua lista de ciências.
[49]Refere-se
esse autor às teses heideggerianas sobre a
técnica como violência exercida sobre o Ser,
que ‘provoca para produzir’, foram retomadas pela escola de Frankfurt e
difundiram-se através dos textos de Adorno, Horkheimer e Marcuse. A escravidão, a opressão, passaram a depender
do “caráter diabólico da conquista e sujeição do mundo material.” ROSSI,1989,
(p.12 e 13)
[50]A
proposta de uma nova epistemologia encontra-se em BACHELARD, 1968. Ver sua
crítica em CUPANI, 1985, p.41 a 56 e p.
100 a 104
[51]Ver
JAPIASSU, 1978,p.245
[52]Fala
Paolo ROSSI, 1989,p.12 “do marxismo
mal digerido e os resultados do irracionalismo de Heidegger. Seriam formas de um obscurantismo
anticientífico e seguidores da mística da vida disfarçados de pensadores
revolucionários”
[53]V.
J.Camilo TORRES,1943 e seu prefaciador E. CANNABRAVA apresentam a crítica mais
severa, na postura metafísica e monarquista contra o positivismo comtiano,
embora sem citar o texto original de
Comte, exemplificando bem o enganoso embrulho feito em leituras de segunda mão.
Mesmo em segundas mãos ortodoxas e
apostólicas. E foi o maior conjunto de erros num só livro. Camilo, assim, colaborou, em muito, por
sua colossal reunião de erros, como grande auxiliar em nossa pesquisa.
[54]HABERMAS,
1982, p.93, afirma ter Comte plagiado Condorcet, Saint-Simon e outros.
[55]R.
AZZI, 1980, ao estudar a doutrina de Comte por meio das publicações dos
apóstolos brasileiros, conclui ser ela um autoritarismo de Estado, contra o ideal liberal, tendo em mente o
modelo da ditadura medieval.
(p.258). A criptografia apostólica
parece ter sido tanto ou mais enganosa do que a da bibliografia de Comte, que
não é citada.
[56]Para
Toynbee, o regime católico da Idade Média é o Reich de mil e trezentos anos, um
totalitarismo católico: ver
TOYNBEE,1975,p.61.
[57]Ver
padre Leonel FRANCA,1955, p.191. O
autor argumenta como se a lei fosse o princípio
regulador do pensamento humano por seus filósofos, quando ela refere-se
apenas a cada ramo do saber; e como se
a lei impedisse a simultaneidade dos 3
estados na mente individual, o que é bem mostrado por Comte como possível e
freqüente. Notar que Franca não cita o original, mas cita profusamente
textos de segunda mão.
[58]ABEL,1972,
cita a tradução de Miss MARTINEAU, de edição de 1896, que não foi possível
conferir.
[59]Apud
BRITTO, 1990, p.174,175.
[60]É
clássica a observação de Aristóteles de que a mão separada do corpo vivo não seria mais a mão, conforme a Política, livro I, parágrafo 9, p.15.
[61]Apud BRITTO, 1990, p.175.
[62]Ver
J.Camilo de Oliveira TORRES, in “O
positivismo no Brasil”, com o maior
repertório de enganos devidos à criptografia comtiana de segunda mão, já
que jamais cita o texto original, e
apenas as publicações do Apostolado Positivista do Brasil. Constitui o melhor exemplo do que produz a
criptografia de Comte mantida fielmente nas publicações do Apostolado, e aquela criptografia feita
ingenuamente pelo leitor desatento. No caso, também sob interpretação adversa,
de viés clerical e monárquico.O
mesmo erro grave aconteceu ao brazilianist BOEHRER, G.
in Da Monarquia à República, p.230, Nota 47, que, coerentemente, diz
ser a incompetente obra de Camilo Torres o melhor exame geral do positivismo no Brasil. Sim, de segunda mão.
[63]CARNEIRO,
Paulo, 1982, p.26
[64]CARNEIRO,
Paulo, 1982, p27, mostra que Comte
propõe um governo presidencial, e que a
palavra ditadura adquiriu conotações
opostas a que ele lhe atribuia.
[65]LINS,
Ivan,1965, Perspectivas de Aug.Comte,p.208
[66]ARROW,
1963, p.59,93,95
[67]Não
é o que diz Jean Piaget, afirmando que a
lingüística saussuriana teria sido a primeira
em dar um estatuto positivo à oposição relativa entre as considerações
sincrônicas e diacrônicas em ciências humanas. V. PIAGET, 1970, p.273
[68]A
conciliação
da ordem com o progresso, indicada pela preposição ADITIVA “e”
não apresentaria a dificuldade de um conflito sem solução, como indicado por
Brunschvicg, apud BRITTO, 1990,p.177.
[69]HAYEK,
1977, p. 17,158.
[70]GOUHIER,
1933, pp. 238,239.
[71]CRUZ
COSTA, 1959,p.XVII: Comte seria romântico,
ao pretender a evolução social sem a violência da revolução. Cruz Costa
pretendeu usar no comunismo a base intelectual do positivismo de Comte.
[72]Ver
VERDENAL, 1974, p.35, sobre o espiritualismo oficializado na França.
[73]Ver
HABERMAS, 1982, p.93,94: que acusa Comte de plágio. Seria então um plagiador “às claras”, uma vez
que ele sempre indica as fontes usadas.
E Habermas acha que a dificuldade do estilo no filósofo decorreria
exatamente por ser o texto, então, uma colcha de retalhos.
[74]LITTRÉ,
1864, p.259 cita como exemplo o texto onde Comte chama a seqüência de príncipes
medíocres e inferiores a sua função política de
“o vulgar dos reis”, numa oposição dos
dois termos, vulgar e rei,
de verdadeira beleza. Refere-se
ainda à força, novidade e grandeza de expressão do estilo comtiano.
[75]Ver
a apreciação de VERDENAL, in CHATELET, 1974, História da Filosofia, vol. VI,p.39
[76]VERDENAL,
in CHATELET, 1974, p.41. Em Royer-Collard a acusação é contra os fazedores de
sistemas:p.43.
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