Monday, December 29, 2014

A CHAVE DO LÉXICO DE AUGUSTO COMTE (Ângelo Torres)



DISSERTAÇÃO DE MESTRADO DE ÂNGELO TORRES – NA CADEIRA DE FILOSOFIA DA UERJ – 1990


         A CHAVE DO LÉXICO DE AUGUSTO COMTE (Ângelo Torres)..

 

INTRODUÇÃO


A extensa obra de Augusto Comte apresenta duas partes, uma abstrata e outra aplicada.  A primeira parte é preparatória, como fundamento da segunda, a Ciência Política, verdadeiro e importante objetivo final de seu plano de trabalho.   Essa segunda parte, voltada para aplicação, deveria indicar em pormenor a necessidade e as condições de um regime de governo e de uma filosofia política para a reforma da sociedade humana na modernidade, através do consenso filosófico. 
O coroamento político da filosofia enciclopédica de Comte, sob a forma de um governo presidencialista,  foi implantado no Brasil, a partir de 1891, já no regime republicano, no estado do Rio Grande do Sul, por longos 40 anos, o que constitui uma experiência política única no mundo.    Até mesmo a liberdade profissional completa foi implantada, como uma das muitas formas de libertação recomendadas pelo filósofo, livrando o estado sulino dos diplomas oficiais e de seus privilégios, considerados como um dos muitos modos da iníqua espoliação feita pelos poderosos contra a classe trabalhadora e contra a sociedade em geral. 
Foi realizada, também sob a aprovação eleitoral, dentro do princípio presidencialista, a elaboração das leis pelo executivo, sem assembléia parlamentar, pela consulta obrigatória e transparente diretamente ao povo, por longo período, nos meios de comunicação. A corrupção política imputada ao parlamentarismo foi assim afastada.  Mas essa mudança sofreu naturais protestos dos numerosos beneficiários de privilégios extintos, às vezes mesmo por violentos e sangrentos atos pouco democráticos, por meio da agressão da revolta armada, por duas vezes mal-sucedida.   No âmbito do governo federal da nova república brasileira também instituições recomendadas  por  Augusto Comte foram implantadas, entre elas  a importante liberdade religiosa completa.[1]
Tanto o regime político do Estado do Rio Grande do Sul, como as instituições do governo federal, orientados pela doutrina sociológica comtiana estão até hoje em debate, sob as mais duras críticas.   Para alguns, essa influência foi de caráter progressista, para outros, foi uma orientação maléfica, sendo que há quem discuta até se houve ou não houve a  república...   A participação nesse debate, impossível de ser feita nesta dissertação, exige, no entanto, o estudo e o conhecimento da complexa e extensa obra de Augusto Comte.  Sem esse saber, será impossível identificar quais ações teriam sido criação de políticos locais ou tenham sido aplicações práticas de  pormenorizadas  recomendações de Ciência Política, plenamente pensadas e redigidas em Paris, no bureau do filósofo do positivismo.    É um caso de ação da cultura francesa à distância, em que se veria o intenso brilho de Paris, como capital da cultura humana,  atravessando o Atlântico, até  alcançar o Brasil.[2]
Seria de interesse pesquisar como jovens brasileiros terão chegado a ler a difícil obra filosófica e política de Comte, como interpretaram-na e como chegaram a aplicá-la à praxis, no momento mesmo da grande transformação política da monarquia para a república.  
Para a glória da filosofia moderna esse fato constitui até um generoso exemplo de como a teoria filosófica universal de um puro pensador pode modificar distintamente, a longa distância, após muito tempo, pela via racional, a vida política de um país e, também, mesmo, a vida de vários deles.   E como, pelo contrário, a resistente reação conservadora e retrógrada impediu, tenazmente, na Europa, a quebra de privilégios e a derribada de mitos e superstições.
Para elaborar a base abstrata da técnica política, capaz de lhe dar a certeza científica da previsão, pretendeu Comte desenvolver uma ciência preditiva da sociedade, a sociologia.  Para começar essa pesquisa, fez o filósofo uma avaliação dos progressos científicos até sua época, procurando tirar dos primeiros e rudimentares progressos das ciências então conhecidas a metodologia científica e sociológica, de que resultou uma  filosofia, no Cours de Philosophie Positive.    Seria obter a  revolucinária  filosofia demonstrável e discutível,  a partir da ciência.  Seria, em caso de sucesso do pensador, a filosofia de caráter necessário para a vida na modernidade. 
O Cours de Philosophie seria a partida para a grande mudança na cultura humana, com a  pretensão de ser  a maior revolução filosófica  em toda a história social da humanidade.   Consistiria em procurar o saber firme, seguro, posto rigorosamente sobre a base sólida do saber de observação, por meio de uma indução cognitiva haurida no conteúdo e na evolução do método científico.  A revolução compreenderia uma  rejeição radical, rigorosa  da  “filosofia”  tradicional fundada na intuição não-sensorial, a partir do a-priori do teísmo ou da metafísica ontológica.   Porque só assim seria obtido o saber cartesiano claro e distinto, resistente à ação corrosiva da dúvida sistemática, capaz de realizar previsões certas e úteis, dentro da desejável precisão possível.
A pretensão do pensador foi, apoiado nessa pesquisa, a de elaborar uma sociologia abstrata, na busca de leis infalíveis no âmbito dos fenômenos sociais, e não das “coisas” ou do sersempre para guiar, pela previsão, a ação política.  Uma ciência que não poderia ser somente uma simples e empírica descrição sistemática dos fatos sociais em sua concretude.  Deveria ser capaz de  prever  o regime político a ser estabelecido  pelos politólogos na práxis.  O que  só poderia ser realizado pela determinação segura do saber científico.   A leitura cuidadosa do texto de Augusto Comte indica que teria ele comprovado ser condição necessária, cientificamente estabelecida, para o governo, a mais ampla liberdade dos humanos.  E teria sido por uma extensa indução histórica que Augusto Comte se tornaria candidato a  fundador da sociologia  e  primeiro dos sociólogos,  na pretensão de determinar a estrutura e o desenvolvimento da sociedade, por meio do que chamou o método da filiação histórica.  A primeira versão da sociologia comtiana ocupa o quarto, o quinto e o sexto volumes do Cours de Philosophie, sua obra “fundamental”.  Mas a sua composição “principal”, com a versão completa da sociologia abstrata seria mostrada no Système de Politique Positive, do primeiro ao terceiro volume.   Essa nova ciência constituiria a base do ambiciosamente abrangente sistema gnosiológico da original, complexa, incompreendida e enciclopédica filosofia de Augusto Comte.   Será, de fato, essa a filosofia enciclopédica da liberdade?
Notar com atenção que este trabalho de dissertação não pretende fazer a crítica e avaliação da obra do filósofo, para atestar a validade de sua filosofia ou a sinceridade de seu liberalismo, se ele existir.  Apenas cabe aqui explicitar suas intenções e auxiliar a compreensão de sua comunicação, deixando para outros mais capazes em outra ocasião essa tarefa maior.
Nos quatro volumes do Système de Politique Augusto Comte é que proporia a separação da  psicologia  da sociologia, até esse texto apresentadas em conjunto, sem identificação distinta.   A partir do segundo volume da Política, considerou ele a  PSICOLOGIA  autônoma,  como ciência abstrata independenteDenominou-a de “MORAL TEÓRICA”, para que não fosse confundida com a psicologia de seu tempo, que procurava estudar a “alma” humana, tida como uma inacessível entidade metafísica, a ser estudada por meio da introspecção.  Comte afirmou ser impossível e inexistente essa antiga psicologia.  Mas o novo apelido de  “Moral”  para a ciência do comportamento humano individual, para a psicologia, confunde a nova disciplina com uma vaga normatização ética, dificultando o seu reconhecimento como ciência, e constituindo um obstáculo invencível para identificar a moderna psicologia de Comte como ciência de previsão.  Contém essa elaboração do filósofo uma teoria científica da cognição.  Aí é elaborado o estudo pormenorizado das funções cerebrais elementares simples, que constituem os três grandes setores psicológicos das funções afetivas, da capacidade intelectual e da preparação mental da atividade.  Goblot, severo crítico, afirma ser Augusto Comte merecedor de estar entre  os grandes mestres do pensamento humano,  lamentando que sua psicologia  tenha ficado ocultada  até ser reencontrada pelos estudos contemporâneos.  Em outras palavras, alguma razão fez esconder a criação da nova psicologia :  sua leitura no Système de Politique ficou desconhecida, em contraste com a grande divulgação do Cours de Philosophie Positive.   A psicologia comtiana pretenderia, como toda ciência positiva, obter a previsão por meio das leis, no caso as leis que regessem o comportamento humano:  não deveria ser essa psicologia somente uma disciplina descritiva, obtida apenas por uma rústica e empírica pesquisa concreta.[3]
A obra de Comte, em sua elaborada formação abstrata, pretende mostrar-se, portanto, primeiro como uma filosofia, para então elaborar uma sociologia e depois, mais tardiamente, uma psicologia.  A ciência política, voltada para a  práxis,  viria a apoiar-se nessa preparação teórica.  Mas, tanto a teoria como a prática, teriam o caráter de previsibilidade.  Seria, portanto, uma nova forma de filosofia, enciclopédica, lógica, discutível, aberta, mas voltada para a ação efetiva, para resultados bem definidos e seguros de previsão.  A filosofia de Augusto Comte pretenderia ser  a filosofia da previsão científica e da ação,  consistindo, primeiro, de  uma extensa preparação abstrata, e, depois, de uma aplicação prática, para ação imediata, que vale tanto para a política, para a arte, para a educação e para a ética, para a política, para a atividade produtiva e para a técnica em todas as suas especializações.   Perguntar-se-á --- um plano tão vasto, terá sido bem sucedido  ?   Certo é que um plano como esse, terá, correspondendo à sua grandeza e complexidade, uma vastíssima dificuldade de comunicação.   Será, talvez, devido à chocante originalidade e grandiosidade dessa obra filosófica, que Stuart Mill afirma ser Augusto Comte tão grande como Descartes e Leibniz,   apenas sendo mais extravagante.[4]
Serão esses atributos extremados que farão, do filósofo, um pensador muito odiado por alguns e por outros até adorado, religiosamente adorado, posto em altares.  De uma forma ou de outra, fora do comum, seja para o bem, seja para o mal.   Será um mito, uma figura humana de características extremas, inesquecível, admirável, irremovível da memória filosófica universal.
CIÊNCIA POLÍTICA  de Comte, como aplicação prática de sua obra abstrata, está posta em pormenor no quarto volume do Système de Politique.  Mas essa elaboração,  que poderá ser considerada como um monumento erguido à realização da liberdade na práxis ou da efetivação da mais rígida ditadura tirânica, apresenta-se travestido por uma linguagem aparentemente mística, quase completamente ilegível, tanto para os revolucionários como para os conservadores.   Decerto esse  tratado de politologia  poderia ser lido e teria mais repercussão se fora editado em separado e sem a dificuldade da  forma  de seu léxico característico.  Caracteriza essa Ciência Política a pretensão de opor uma interdição rigorosa do comando das opiniões pelo poder político material, obrigando-o a manter as mais amplas liberdades, como a de imprensa, de ensino, a liberdade profissional e religiosa.   O poder político ficaria subordinado ainda ao controle, julgamento e às penalidades severas de atribuição do poder autônomo de uma  assembléia orçamentária independente e eleita  por meio do sufrágio democrático direto.  O poder político normativo do governo ficaria reduzido, então, ao Estado mínimo, de custo reduzido, apenas no controle das coisas materiais, do prosáico, livre da prepotência e do privilégio dos nobres, dos teóricos, dos religiosos oficializados e dos demais privilegiados.   E seria assim que, modernamente, esperaríamos que deve acontecer numa  república democrática.
Ao completar seu plano de trabalho, já na maturidade, o filósofo teria completado a elaboração de sua proposta de um sistema enciclopédico, tanto do conhecimento abstrato como da sua aplicação política na práxis, sistema filosófico que se poderia chamar de uma gnosiologia positiva,  uma teoria geral do conhecimento humano.  O atributo de positividade indicaria, de forma concisa, ser essa gnosiologia dotada de reprodutibilidade verificável, de previsão e de certeza.  E não uma doutrina apenas de  descrição empírica, concreta e especializada. Mas deveria ter valor de intersubjetividade, capaz de harmonizar os humanos num consenso necessário à sua liberdade e à sua felicidade.   O que levaria essa nova gnosiologia a possuir o atributo identificado por Comte de organicidade.  Esse atributo teria sido obtido sempre, em todas as civilizações anteriores, por meio de cada gnosiologia da época, ou, vale dizer, por meio de cada sistema  filosófico, ou, o que seria o mesmo, através de cada sistema “religioso”.   Assim teria sido produzida, durante toda a evolução social, e cada vez mais aprimoradamente, a coesão, pelo consenso, em liberdade, do grupo e do indivíduo em torno dos valores  tornados comuns a todos.    Esse pensador teria visto, acertadamente ou não, na história, o evolver da harmonia, da coesão, dos seres humanos em sociedade, ao contrário de outros, que ali viram o conflito, a luta, a revolta.
Comentadores contemporâneos notam, porém, que Augusto Comte não é lido.   Apesar de seus textos não serem compulsados por uma leitura atenta,  seu nome não perde uma atração permanente, como afirma Arbousse-Bastide:  essa seria uma característica do  filósofo-mito, desconhecido, ilegível, incrível,  mas inevitável.    É caso único na filosofia francesa: --- a nenhum outro pensador cabendo esse prêmio --- ou esse castigo.  Durkheim fez uma sociologia para opor-se à de Comte, mas Lévy-Bruhl, no entanto, continuou o trajeto iniciado por ele, na visão de Arbousse-Bastide.[5]
Sua proposta de psicologia chegou mais recentemente aos laboratórios avançados da Europa.   Hoje, essa proposta psicológica é estudada com seriedade, como uma teoria básica para o estudo da psique e da cognição, como teoria sistêmica, teoria ainda não plenamente desenvolvida, em nossos dias, apesar dos enormes avanços nos equipamentos da engenharia médica e da pesquisa empírica.   Grande parte de suas hipóteses sobre as funções do cérebro e de sua localização teriam sido confirmadas pelas pesquisas da neurofisiologia moderna.[6]
A  Ciência Política  desenvolvida por Augusto Comte foi aplicada por longo tempo no Brasil, e também no México, no Chile, na Argentina e em outros países.  Seus resultados, porém, só podem ser avaliados corretamente em comparação com o texto original, complexo, exuberante e de difícil leitura.   A liberdade religiosa que o filósofo recomenda e que no Brasil separou a Igreja Católica do Estado,   contra a vontade de seu clero,  trouxe benefícios de monta ao catolicismo brasileiro, como afirma Amoroso Lima, livrando-o do padroado, dos sacerdotes pagos pelos cofres públicos e subservientes ao governo político.   O altar era então sustentado e voluntariamente subordinado ao  poder político nacional, mansamente desligando-se do poder papal, como ocorreu em todos os países do ocidente, com o fim do poder filosófico e moral do papado a partir do século XIV.[7]
O conhecido dicionarista  Littré  acusa em Comte uma escrita prolixa, as frases por demais longas, o estilo pesado, as repetições, os epítetos superabundantes.  Mas curiosamente afirma que esse estilo, com sua originalidade, com seu vigor bem filosófico, apresenta um certo  charme”,  um certo encanto, apesar de seu pedantismo.   Longchampt, dileto discípulo, diz que Comte escreve como se pensasse em voz alta, sem cogitar do leitor; resultando sempre numa espécie de confissão intelectual do que de num tratado.  Suas obras, diz Longchampt, serão só acessíveis a um pequeno número de espíritos de elite.   Para o padre Gruber é necessário uma comprovada paciência para mergulhar nesse “oceano de palavras”, para abordar suas lições de filosofia que contam sempre de cem a trezentas páginas.  Gruber que qualificou tais doutrinas como falsas, comparáveis à revolta de Lúcifer, ao tentar explicar o mundo em outras bases que as fundadas  na essência mesma do ser.     Serão essas grandes virtudes ou os mortais pecados da obra de Comte, ao lado das dificuldades semânticas, que nos cabe explicitar, sempre pesquisando sua obra, mas sem ter ocasião, aqui, de avaliá-la.[8]
O trabalho de dissertação aqui proposto nasceu da verificação, tanto na bibliografia brasileira como na estrangeira, de numerosos e freqüentes casos de distorções grosseiras feitas no texto de Augusto Comte.  Esses erros são amplificados e difundidos por publicações baseadas em fontes de segunda mão e pelo próprio ensino, como se fossem verdades definitivas,  em forma  quase sempre adversa, em processo seriamente acusatório, para demérito do filósofo.  O efeito dessas distorções é deletério por transferir o debate para teses errôneas, atribuídas falsamente a Comte.   Ao mesmo tempo, evita que originais doutrinas comtianas sejam conhecidas e postas em discussão, com o mesmo efeito perverso de uma censura obscurantista, obstruindo o caminho do estudo filosófico.
O tema desta dissertação será a identificação das dificuldades de leitura da obra do filósofo e a procurar-lhe as origens.   O problema posto será o de identificar esses enganos e propor meios efetivos para evitar e para corrigir os seus efeitos nocivos.  Enganos esses que tornam renomados autores responsáveis por ridículas e indefensáveis erros, falsificações e fraudes, transformando suas pesquisas em lamentáveis obras de qualidade inferior, atestando uma leitura insuficiente e um raciocínio incompleto.[9]

A metodologia a ser empregada nessa difícil tarefa consistirá na análise dos textos originais, com sua comparação em alguns comentadores, e. em especial, com sua tradução para a língua inglesa.  Os tradutores ingleses explicitaram em muitas passagens obscuras o texto original, oferecendo ainda uma indexação temática muito conveniente para a pesquisa.  Por isso muitos dos textos de Comte a serem analisados deverão ser citados, quer no original francês, quer em sua versão em inglês e não em sua tradução em português.
O estudo será realizado sobretudo no Cours de Philosophie e no Système de Politique, e, em outras obras de Comte, relacionadas com o tema.  A pesquisa não poderá abarcar todos os textos nem todos os conceitos do autor, dando ênfase apenas aos casos mais freqüentes e mais importantes de afastamento interpretativo com viéses sérios e, por vezes, em oposição direta ao pensamento original do filósofo.
Fica impossível, além de estudar a criptografia da obra de Augusto Comte, elaborar também a sua crítica e a avaliação, o que exigiria um estudo de enorme extensão e dificuldade.  Procura-se aqui, apenas, deixar mais claro e distinto o pensamento do autor, possibilitando, então, um posterior estudo e debate.
A simples recuperação, nesta dissertação, do significado original no texto de Comte pode parecer um grande e constante elogio do filósofo.  Mas tal não se dá; a falsa impressão apologética decorrendo apenas da injusta, imensa e constante deturpação de sua obra, propalada essa distorção e a maledicência reacionária por meio do ensino e posta na bibliografia corrente, como verdade incontestável.   No caso, o ato de   fazer  justiça  ao recuperar a verdade falseada, não poderá ser qualificado como um ato de favorecimento.  É, sim, um motivo sério para lamentar o engano cometido por pesquisadores de valor, mas com base em leituras falseadas de segunda mão, incompletas, geradas na dificuldade de consulta e de compreensão do texto original.  Essa será, talvez, uma oportunidade em que poderemos colaborar com nossos modestos recursos para a salvação da verdade e da justiça. 

O trabalho será apresentado, no capítulo primeiro, pela definição de criptografia e sua identificação nos problemas semânticos do texto comtiano, mostrando apenas alguns exemplos característicos.
O segundo capítulo estudará as mais importantes formas de criptografia no texto abstrato do autor.  São extremamente numerosas e sérias as distorções registradas nesse nível em sua filosofia, em sociologia e em psicologia.
A criptografia notada na aplicação política da teoria comtiana abstrata é analisada no terceiro capítulo, em seus casos mais importantes. Aqui os desvios semânticos são ainda mais sérios, desde que a Ciência Política de Comte ameaça a posição privilegiada das classes dominantes.  Todo o corporativismo político parlamentar, junto com o que restou da nobreza, da realeza e do clero medieval percebe o perigo de uma democracia republicana presidencialista radical, com a desregulamentação geral do Estado.   Todo esse contingente de ilustres e, por vezes, poderosos privilegiados, promove, com muita razão, uma avaliação correspondentemente depreciativa de toda a obra comtiana, dificultando sua divulgação e, se possível, impedindo-a.

Em complemento ao texto, coloca-se, em anexo, um glossário resumido do léxico específico do autor, para servir como chave da decifração de sua obra.
Ao final desta dissertação espera-se ter conseguido tornar a leitura do texto de Augusto Comte mais accessível, para então, mais tarde, em outra oportunidade e por mãos mais competentes, permitir seu estudo, sua crítica e sua avaliação.



1.              PRIMEIRO CAPÍTULO

                               A  Identificação  da  Criptografia


As dificuldades semânticas do texto de Augusto Comte nem sempre podem ser facilmente identificadas, embora sejam imediatamente sentidas, desde o primeiro contato. 
Os obstáculos de significação notados em Comte serão aqui denominados de criptogramas, e seu uso, de criptografia, palavras que indicarão apenas haver um significado menos claro, escondido, no texto.  Não se pretende nesta dissertação mostrar na redação comtiana passagens feitas em código secreto especial, de difícil decifração.  O termo criptografia simplificará apenas as referências, enfatizando os problemas semânticos encontrados ou postos na leitura do filósofo.  Tanto aquelas dificuldades de origem no próprio autor, tanto pelo passar do tempo e tanto como colocados nos seus textos por leitores distraídos.
Algumas criptografias resultam do emprego de palavras usuais com significado modificado. Outras vezes são referências feitas a eventos, a conceitos e a pessoas, sem citar seu nome, apenas pelo uso de epítetos ou atributos bem conhecidos de Comte e de seus contemporâneos, na história ou na literatura.   Por vezes, terão sido já referidos anteriormente no texto do autor, mas que se tornam ininteligíveis quer em primeira abordagem, quer para leitores de outra época, de outra cultura, ou de pouca ou nenhuma base informativa.   Neste capítulo inicial, para maior clareza, será interessante reconhecer, em alguns exemplos, o que aqui denominamos de criptogramas.
O emprego do apelido de criptografia, se poderá resultar em certo exagero, serve, no entanto, com proveito, para dramatizar as reais dificuldades do texto comtiano, por vezes por demais sérias.  Poderá até ser uma forma de metáfora, na figura de estilo denominada de “hipérbole”. (CRUZ, 1959, p.97)
A vantagem será de enfatizar, de maneira indelével, a existência de significações muito alteradas de palavras simples e usuais, aparentemente sem prévia advertência, por vezes usadas como se formasse um dialeto filosófico especializado, particular, de Augusto Comte.   Na verdade, há sempre, na redação do filósofo, um grande cuidado na seleção e no emprego das palavras.   No entanto, a criteriosa definição do vocabulário nem sempre fica dentro do alcance do pesquisador episódico e muito menos do leitor apressado e superficial.

1.1    ABSTRACT CRYPTIC ALLUSIONS 


Na tradução para o inglês feita por J.H.Bridges do  Discours sur l’ensemble du positivisme, faz Frederic Harrison na Introdução considerações aqui parcialmente citadas, traduzidas para o português:

“O positivismo não é simplesmente um sistema de filosofia; nem é simplesmente uma nova forma de Religião; nem é simplesmente um esquema de regeneração social.  Ele é tudo isso, e professa harmonizar tudo sob uma concepção dominante que é igualmente filosófica e social.
Imediatamente ficou claro que um sistema tão abrangente nunca foi jamais oferecido ao mundo.  Nem o Evangelho nem qualquer forma conhecida de religião tomou a tarefa de formar uma reunião sintética das Ciências.  Nenhum esquema sintético de filosofia jamais tentou correlacionar  religião, política, arte e indústria.  Nenhum sistema de Socialismo, antigo ou moderno, partiu da matemática e subiu até um ideal de uma devoção humana ao dever, com um ritual de culto religioso, público e privado.
Então o famoso  Sistema de Política Positiva  propôs-se a essa tarefa gigantesca.    E a novidade e a  extensão de tal trabalho explica e  justifica  a extrema dificuldade encontrada por seus leitores no seu original em francês, e também pela fascinação que se mantém após mais de cinqüenta anos após a morte de seu autor.  Foi ele comentado, criticado, e até mesmo ridicularizado, na ignorância de seu verdadeiro caráter, o que  SÓ PODE SER DESCULPADO  em razão da   forma severa e abstrata  em que Comte pensou por bem condensar seus pensamentos.
A tradução para o inglês é, ela mesma, uma obra-prima literária.  Ela transforma um tipo de dogmatismo filosófico francês extremamente abstrato e complexo num texto fácil e simples em inglês, enquanto ao mesmo tempo preserva e mesmo elucida as alusões e nuanças de alguma forma criptográficas no texto original.  O pensamento em francês é cheio, prenhe e sugestivo, sendo ao mesmo tempo sutil e abstrato, e rico, com palavras de uma nova cunhagem -- como  altruísmo,  sociologia,  dinâmica (i.e. história)  ---  e antigas palavras, mas usadas em sentido especial”.  (HARRISON, Introduction, in Bridges, 1908, p.VIII a XI)

No original do texto parcial de Harrison:

“Positivism is not simply a system of Philosophy; nor is it simply a new form of Religion; nor is it simply a scheme of social regeneration.  It partakes of all of these, and professes to harmonize them under one dominant conception that is equally philosophical and social.
Now it is clear that  no such comprehensive system was ever before offered to the world.  Neither the Gospel nor any known type of religion undertook to give a synthetic grouping of  the Sciences.  No synthetic scheme of philosophy ever attempted to correlate religion, politics, art, and industry.  No system of Socialism, ancient or modern, started with mathematics and led up to an ideal of a human devotion to duty, with a ritual of worship, both public and private.
Now Comte’s famous   Positive Polity   did attempt this gigantic task. And the novelty and extent of such a work explains and accounts for the extreme difficulty met with by readers of the original French, and also for the fascination which it has maintained more than fifty years after the author’s death.  It has been talked about, criticized, and even ridiculed, with an ignorance of its true character which can  ONLY BE EXCUSED  by the abstract and severe form in which Comte thought right to condense his thoughts.
The translation itself is a literary masterpiece.  It renders an extremely abstract and complex French type of philosophical dogmatism into easy and simple English, whilst at the same time preserving and even elucidating the somewhat   cryptic  allusions  and  nuances  of  the  original.  The thought in the French is  full, pregnant, and  suggestive, at once  subtle and  abstract,  and rich with words of a new coinage --- as   altruism,  sociology,  dynamics  (i.e. history), and  old words used in a special sense”. (Harrison, Introduction,  in Bridges,1908,p.VIII a XI)

Tem razão Harrison em dizer que a tradução para a língua inglesa é uma obra-prima, ao tornar o texto denso e rico de Comte em leitura mais amena, mais clara, apesar da doutrina complexa e abstrata do filósofo. 
A extraordinária abrangência da obra comtiana foi, desde a juventude do filósofo, planejada para conduzir à regeneração política da sociedade humana.  Não pela ação da violência, mas por meio da regeneração do saber, ou, em outras palavras, por meio da elaboração de uma nova filosofia..  Pelas luzes dessa nova gnosiologia poderia ser coordenada a política em todos os seus aspectos, do poder, de produção, da arte, da ciência pura, das diferentes especializações, mas principalmente pela política da educação, pela formação de uma opinião pública libertada e coesa, emancipada das masmorras do obscurantismo da superstição e do jugo da injustiça dos privilégios.   A nova doutrina gnosiológica seria gradualmente elaborada por uma revolução filosófica abstrata e severa, pela criação de novas ciências, pela identificação da religião como instituição universal, eterna e única, como suave e adorada  proteção da liberdade e da felicidade  dos humanos sob formas as mais diferentes.  A comunicação dessa sinfonia emocional do pensamento acumulado na cultura multissecular humana exigiria, de fato, para sua explicitação, uma obra-prima sem par.
Palavras originais cunhadas pelo autor são, entre outras, o altruísmo, como antônimo perfeito de egoísmo e o nome de sociologia, um termo híbrido greco-romano proposital.  A sociologia dinâmica refere-se à original filosofia da história comtiana, abstrata, base científica da nova ciência da sociedade. Veremos mais tarde muitas das locuções empregadas por Comte, em nova significação, com o emprego de palavras vulgares, mas tomadas com outro sentido.
Esse testemunho apresentado por Harrison de “alguma forma de alusões criptográficas” no texto comtiano constitui-se numa referência insuspeita, oferecida por um destacado adepto britânico de Comte.  Os tradutores ingleses do filósofo fornecem, em suas obras, informações adicionais indispensáveis para a leitura, além de mostrarem uma utilíssima indexação detalhada, temática e alfabética.  Atuam como se fossem uma chave parcial de decifração, só assim permitindo o acesso cômodo a essa imensidão de conceitos, de palavras, de idéias, de saber filosófico.  Veremos como esses elementos nos ajudarão nesta dissertação.[10]

Será somente nos textos mesmos originais, em francês, de Comte, que deveremos verificar os problemas de sua mensagem, para avaliar sua dificuldade e descobrir porque sua leitura se torna espinhosa, senão, por vezes, impossível.   E ainda desvendar qual a razão de tanta deformação encontrada, em todos os países, mesmo no comentário de muitos pesquisadores famosos, supostamente competentes.

No segundo volume do Sistema de Política, escreve o filósofo, quase ao encerrar a  “Teoria da Linguagem”,  tema relacionado ao nosso campo de pesquisa:

“Il faut, à cet effet, distinguer, dans toute élaboration scientifique, deux phases naturelles:  l’une, purement préparatoire, où les conceptions ne sont point encore communicables;  l’autre où elles le deviennent, et qui seule est définitive.  On attribue trop de part aux signes envers la première opération, et pas assez pour la seconde.” (Politique II-248)

O leitor pode sentir pessoalmente a dificuldade desse texto comtiano procurando captar o significado dessa citação antes de ler sua tradução.  Deve parar aqui, e reler o texto em francês.  Procure escrever sua tradução. Só depois deverá recorrer à tradução e comparar:

               “Para esse fim, será necessário distinguir, em toda elaboração científica, duas fases naturais:  uma, puramente preparatória, onde as concepções não são ainda comunicáveis;  outra fase, onde as concepções se tornam comunicáveis, fase que, somente ela, é definitiva.  Atribui-se exageradamente a participação dos sinais na primeira operação, e não se reconhece suficientemente sua participação na segunda fase.”

Esse texto mostra como o estilo do autor permite expressar, com poucas palavras, concisamente, seu pensamento.  Para que a tradução seja explicitada, será necessário o uso de palavras muito mais numerosas.  Nota-se claramente como a concisão tende a reduzir sutilmente a compreensão. Mas o estilo comtiano apresenta, de fato, um certo encanto em sua construção.   O trecho indicado está relacionado com o parágrafo anterior:

         Ayant maintenant reconnu combien le langage assiste les plus puissantes de toutes nos fonctions cérébrales et les constructions qui conviennent le mieux à notre intelligence, on doit pressentir son importance supérieure envers l’élaboration mentale la moins spontanée et la plus abstraite.  Son office dans la conception scientifique fut même conçu avec une exagération très-vicieuse sous le régime métaphysique, par des penseurs qui, presque toujours livrés au vague et à la fluctuation, devaient surtout aux signes l’apparente fixité de leurs idées.  Outre qu’ils méconnurent essentiellement la combinaison directe des notions réelles, ils négligèrent entièrement la réaction logique des sentiments, et même celle des images.  Toute leur attention resta donc bornée au moins puissant des trois auxiliaires génénéraux de nos méditations, en attachant beaucoup trop de prix à la disponibilité qui le caractérise.  Quoique les études scientifiques aient souvent conduit à constater partiellement ces aberrations ontologiques, l’esprit positif  ne put acquérir assez de généralité pour construire à cet égard une meilleure théorie, jusqu’à ce que la fondation de la sociologie eût constitué le seul point de vue convenable.  Car c’est surtout en rapportant le langage à sa destination sociale qu’on peut concevoir sainement sa principale efficacité théorique.”

Também aqui será de interesse avaliar a compreensão do texto, antes de ler sua tradução:
                                      “Tendo reconhecido como a linguagem assiste as mais possantes de todas as nossas funções cerebrais e as construções que convêm mais a nossa inteligência, deve-se pressentir sua importância superior em relação à elaboração mental na ciência pura, menos espontânea  e a mais abstrata.   Sua utilidade na concepção científica foi mesmo apresentada com uma exageração muito viciosa durante o regime metafísico, por pensadores que, quase sempre voltados ao vago e à flutuação, devem sobretudo aos sinais a aparente fixidez de sua próprias idéias.  Além de que eles tenham desconhecido essencialmente a combinação direta das noções reais, eles negligenciaram inteiramente a reação lógica dos sentimentos e mesmo a reação lógica das imagens.  Toda a sua atenção permaneceu, então, limitada ao menos possante auxiliar do pensamento, o sinal,  entre os três auxiliares gerais de nossas meditações, os sentimentos, as imagens e os sinais, dando muito mais atenção à disponibilidade que caracteriza o sinal.  Embora os estudos científicos tenham muitas vezes conduzido a verificar parcialmente essas aberrações ontológicas, o espírito positivo não conseguiu adquirir bastante generalidade para elaborar a esse respeito uma teoria melhor, a não ser depois que a fundação da sociologia pudesse elaborar o único ponto de vista conveniente.  Porque é sobretudo relacionando a linguagem à sua destinação social que se pode conceber corretamente sua principal eficácia teórica.”

Pode notar-se que será difícil compreender os conceitos contidos no texto, sempre adjetivados, como  as mais possantes de nossas funções cerebrais”,  “a menos espontânea e a mais abstrata”,  “a reação lógica dos sentimentos”,  e “aquela das imagens”,   “os três auxiliares gerais de nossas meditações”, a que se refere “a disponibilidade que a caracteriza”.   Sente-se que o parágrafo não é autônomo, mas está relacionado com noções anteriores, que devem ter sido esclarecidas, e com explicações a serem explicitadas em seguida.
O estilo característico de Comte poderá mostrar-se, e assim ser identificado, ao comparar o original com a versão inglesa do mesmo texto:

“Now that we have established the great use of Language in aiding the most powerful of our cerebral functions, and  the constructions best adapted to our intelligence, it remains to show its even higher importance in the least spontaneous, and the most abstract of our mental operations.  Its part in scientific conceptions was regarded with a most mistaken spirit of exaggeration, under the reign of Metaphysics.  Thinkers, who were themselves almost invariably given up to vague and floating ideas, owed what these had of apparent fixity  chiefly to Signs.  Besides that they profoundly misconceived the direct combination of real notions, they entirely neglected the reaction of the Feelings over the reasoning powers, and even that of Images.  Their whole attention threfore was concentrated on Signs, the least powerful of the three general aids to reflection; and  they attached far too great importance to the adaptability which is the great quality of Signs.  Although scientific studies have often given a partial confutation of these metaphysical aberrations, the positive spirit in philosophy had not acquired views sufficiently general to construct a better theory, until the foundation of Sociology had established the only point of view in agreement with the true theory.  For, it is only when we refer language to its social purpose, that we can duly estimate its principal theoretic importance.”  (Polity, II-208)

Houve na tradução para o inglês o desmembramento do período iniciado por  “Son office”, para separar a observação feita sobre “des penseurs au vague”, aos pensadores da metafísica.  Vê-se que a construção, mesmo traduzida, é muito circunstanciada, com cuidadosa referência a outras conceituações, tudo muito adjetivado, abundante em idéias diferentes.  As funções são “as mais possantes”, as construções, “as que mais convêm”, sua importância “é superior”, a elaboração mental é “menos espontânea e a mais abstrata”.    Os  auxiliares na elaboração lógica,  não identificados, são os sentimentos, as imagens e os sinais;  os menos possantes, implícitos, são os sinais, que estão “mais disponíveis”.  A difícil conceituação comtiana da lógica contrasta com a noção de exclusividade dos sinais na criação do conhecimento pelo logos, da palavra, sua origem etimológica.   Enfatiza que a elaboração do pensamento, objeto da lógica, tem seu motor no sentimento, no afeto, dependente da importantíssima lógica das imagens, de uso permanente nas artes, a além do exclusivo puro emprego dos sinais, da palavra. (Politique, I, 447 a 451. Polity, I, 362 a 366; Síntese Subjetiva, 27)

A qualificação pejorativa da metafísica e do ontológico deve agredir e aborrecer a leitura do texto por adeptos da essencialidade platônica, que em nossos dias, sinceramente, buscam a verdade, na manutenção ou no ressurgimento de alguma nova forma de realismo.  Mas o cuidado do autor estará, sempre, em evitar a conceituação imprecisa, não verificável e nebulosa, que, permitida em sua pesquisa, seria responsável por uma interdição da certeza, da previsibilidade e da intersubjetividade dos resultados.  Essa norma, seguida rigorosamente por Augusto Comte, parece ser uma maldosa e “obsessiva perseguição” contra a liberdade de sonhar e de construir mitos apriorísticos, daqueles personalizados em deuses, ou de outros impessoais, em “coisas”, numa ontologia semi-científica.  Esse modo espontâneo de pensar seria um hábito humano mitológico necessário e espontâneo, desde a mais remota antigüidade, e que tende a retornar natural e constantemente.
A versão inglesa da passagem em estudo tornou-se mais legível, apresentando ainda, fora do texto, a seu lado, na margem, a indicação do assunto tratado.  Nesse caso, ao lado do   “Now that we have established...”, lê-se, em letras menores:  “Effect of Language on speculative powers.” 
O parágrafo destina-se, como se vê, a mostrar a importância ainda maior da linguagem no estudo científico, menos espontâneo e menos concreto do que o senso comum, por ser mais abstrato, por referir-se a fenômenos do ser, e não ao ser, na elaboração intelectual da ciência “pura”, vale dizer da ciência feita de leis fenomênicas abstratas.
Após o parágrafo   “Il faut, à cet effet,”... segue-se um texto de interesse:

       “Pendant l’ébauche initiale des conceptions, inductives ou déductives, le principal office logique appartient directement aux sentiments qui dirigent et soutiennent la contention mentale, en s’aidant des images qui la rendent plus précise et plus rapide.  Les signes n’y participent qu’accessoirement, pour fixer davantage les éléments et les résultats de chaque spéculation abstraite, trop exposés à s’altérer ou s’effacer sans un tel secours.  Toute la science du calcul nous offre, même dès ses premiers pas, d’admirables exemples de cette précieuse aptitude. Déjà la numération abstraite  nous deviendrait impossible  au delà du nombre trois, comme chez les animaux, si l’institution des noms ne nous permettait pas de conserver et de distinguer les divers groupes d’unités.  Mais cette incontestable efficacité des signes envers les plus simples notions diminue beaucoup à mésure que les sujets se compliquent.  Hors du domaine mathématique, le langage n’assiste réellement cette première phase méditative qu’en fournissant, suivant l’heureuse expression de Hobbes, quelques  notes   propres à jalonner la route spontanée de l’esprit. Convenablement appliquées çà et là, elles déterminent mieux les conditions et les produits de cette élaboration provisoire, qui ne pourrait encore comporter aucun véritable discours.” (Politique, II-249)

A tradução inglesa tem ao lado, na margem, o subtítulo:     “Whilst conception is in formation, Language only sugests notes”.    ` O texto diz :

        “Whilst ideas, inductive or deductive, are in the first process of formation, the principal logical office belongs diretly to the feelings, which guide and sustain the effort of the mind, calling in images so as to make its work more precise and more rapid.  Signs have only a subordinate part, that of giving greater fixity to the elements and the results of each abstract speculation; and these are seriously exposed to be modified or effaced without such help.  The whole science of calculation offers us from its primary steps, admirable examples of this precious faculty.  Indeed abstract numeration would become impossible to us beyond the number three, as it is with the animals, if the power of giving names did not enable us to preserve and distinguish the different groups of units.  But this indisputable usefulness of Signs with respect to the simplest notions very much diminishes as subjects become complicated.  Outside the sphere of mathematics, Language really only assists this first phase of meditation, in so far as it furnishes, according to the happy expression of Hobbes, some   notes   to mark out the course freely chosen by the intelligence.  Properly applied here and there, they give increased precision to the conditions and the products of this provisional construction of the mind, before it would bear any formal statement in argument.”  (Polity,II-209)

O texto em francês analisado, se relido agora, depois da tradução em inglês, parece não oferecer dificuldade maior.  No segundo período, “Les signes n’y participent...”, o tradutor evitou a expressão idiomática inicial.  O mesmo fez no período “Hors du domaine...”, tornando a frase mais simples:  “a linguagem só assiste a esta fase ... ao fornecer algumas notas...”  Em seguida o tradutor eliminou o pronome  “qui”,  mudando a construção da última frase. Notar que este parágrafo apresenta várias frases curtas, que são mais legíveis.   A afirmação de que os animais contam até o número três, mereceria uma explicação, num texto isolado, o que não foi feito, uma vez que esse fato já teria sido abordado alhures, nesta mesma obra.  Essa verificação de que os animais contam até três está em Georges Leroy, em suas “Lettres sur les Animaux”.[11]
Pode sentir-se como o texto comtiano apresenta, além das peculiaridades do idioma francês, uma redação encadeada, que implica o sentido em cada frase com afirmações antecedentes e com as sentenças explicativas que se lhe seguem, ainda mais com a redação cheia ou “prenhe”  de significações, sempre acompanhadas de uma adjetivação abundante, mas exótica e instigante, por vezes geradora de maiores dúvidas, dando ao leitor a amarga impressão de ele que não conseguiu compreender tudo o que foi escrito com tanta força e tanto colorido.

1.2     A CRIPTOGRAFIA DA HARMONIA


A disposição ordenada entre as partes do discurso caracteriza a harmonia do estilo, tanto em sua consonância como em sua sucessão.  Seria como a música da comunicação.   Poderá ser considerada quanto à harmonia das frases ou a harmonia das palavras.  (CRUZ, 1959, p.84 e seg.)
A harmonia das palavras apresenta defeitos como a cacofonia, com a formação de termos inconvenientes; a colisão, com o encontro de consoantes; o eco, com repetição de sons. 
A harmonia das frases exige, entre outros cuidados, a redução do emprego de orações subordinadas em excesso, para evitar esse defeito, o  mais comum.   Do mesmo modo seria o uso de parêntesis freqüentes e extensos, que reduzem a unidade da frase;  quando as idéias se atropelam, com múltiplos sujeitos empregados no período;  ou pelo emprego de palavras, expressões ou orações desnecessárias, supérfluas.
No texto de Comte pode ver-se o cuidado em obedecer as regras gramaticais.  A concisão predomina em seu estilo, podendo-se sentir certa dificuldade do autor em oferecer clareza de expressão.  Isso nota-se especialmente nos textos de maior originalidade, em que novas idéias sejam apresentadas, com profundas mudanças, em reformulação conceitual.  A redação é feita de memória, mediante um planejamento prévio, pormenorizado, puramente mental, sem anotações, elaborado com antecedência.   Uma vez imaginado o estudo completo, a escrita passava a ser feita de pronto, de um só jato, sem revisão, sem correção. A redação assim realizada seria então muito mais rápida, embora sofra em sua forma e em sua compreensão, porque as sentenças sucedem-se em seqüência, interligadas com abundância de pronomes como o “dont” o “ce, cet, cette, qui”, usados com demasiada freqüência.  Essa característica denota a pressa com que foi realizada.
Como resultado, o texto comtiano apresenta, por vezes, o vício mais comum na harmonia das frases, pelo emprego de orações subordinadas freqüentes, extensas e contínuas, com os correspondentes pronomes e conjunções subordinativas.
Eis o que chamaremos a criptografia da harmonia do estilo, como uma das causas de dificuldade de sua leitura.

Em conjunto com essa dificuldade, acrescente-se que se lê no texto comtiano referências a partes de volumes anteriores, feitas sem indicação de página, apenas dando o tema pesquisado. Por exemplo, escreve o filósofo:

                            “Le volume précédent a  dogmatiquement  établi la théorie positive de la logique humaine, fondée sur l’emploi combiné des sentiments, des images, et des signes pour faciliter nos contemplations e surtout nos méditations.     Dans le premier chapitre du volume actuel, j’ai d’avance caracterisé l’élaboration historique  de ces trois élements  généraux sous les trois  phases  principales  de  notre initiation  théologique.   (Politique, II-238)

Na tradução inglesa, cada citação como a mostrada é acompanhada da localização da página no próprio texto traduzido. Embora não seja exatamente um enigma, essa é uma dificuldade a mais na leitura.
O uso do termo  “dogmático” causa, também, desentendimento entre os comentadores de Comte: - não significa aqui a referência a um  “dogma” absoluto, fechado, imutável, mas ao aspecto temático ou doutrinário da pesquisa, que poderia ser estudada historicamente, e não em referência a seu conteúdo.
Embora muito cuidadoso na identificação das palavras, faz o autor a crítica da linguagem artificial dos sinais, pelo estudo da lógica como  procedimento da elaboração intelectual. 
Ao mesmo tempo que devemos apreciar o estilo característico de Comte, veja-se o conteúdo, referido à lógica dos sinais, “a menos possante das formas de combinação mental”:

“De là résulte la destination logique du langage, pour compléter, autant que possible, nos moyens généraux de combinaison mentale par l’intervention habituelle des impressions les plus volontaires et les plus variées.  Les signes se lient à nos pensées d’une manière beaucoup moins intime et moins spontanée que ne le font les sentiments, et même les images.  Mais, quand cette liaison artificielle se trouve assez établie d’après un exercice décisif, la facilité de les reproduire et de les multiplier permet à leur usage de rendre à la fois plus rapide et plus précise notre élaboration spéculative.  Néanmoins, leur office normal ne doit jamais être conçu d’une manière isolée comme le firent irrationnellement, sauf  pendant le moyen âge, les philosophes ontologistes qui, devant cette logique artificielle, méconnurent essentiellement les deux logiques naturelles.   Malgré ces doctorales aberrations qui tendaient à réduire le raisonnement  humain au simple langage, les lois immuables de notre nature n’ont jamais cessé de faire spontanément prévaloir l’usage logique des sentiments et des images sur celui des signes.  La principale efficacité de cette troisième logique consiste même à assister la seconde, comme celle-ci aide la première, afin de faciliter la combinaison des images, comme celles-ci secondent la connexité des sentiments.  Toutefois, la liaison des signes aux pensées peut devenir directe, et doit même l’être souvent envers les notions abstraites.  Alors on rattache artificiellement  notre monde intérieur au monde extérieur.   (...)    On voit ainsi combien les prétendus logiciens se font des idées fausses et étroites de notre mécanisme intellectuel, quand ils concentrent toute leur attention sur le plus volontaire mais le moins puissant   des trois modes essentiels que comporte la combinaison mentale.”(Politique II-240,241)

A oportunidade do tema e o seu interesse parecem tornar a redação e sua leitura mais fácil. O parágrafo é longo, e completa as considerações sobre lógica, como diz o primeiro período.
A referência a “aberrações  doutorais” é pejorativa, e se dirige aos leitores mais prováveis do texto, em geral, em nossos dias, pesquisadores e estudantes na busca do saber, de títulos e de vantagens  “doutorais”.  O tradutor para o inglês evitou esse termo, e essa agressão, mudando a construção da frase:

“We may disregard these pretentious authorities, the effect of which would be to reduce the reasoning faculty of man to mere Language: for the immutable laws of our nature have invariably given to the instrument of Feelings and of Images, a higher logical value than to that of Signs.”  (Polity,II-202)

Contornou assim o tradutor um obstáculo posto na leitura a ser empreendida pelos numerosos doutores, de ontem e de hoje,  que passariam a severos críticos e maus leitores, ao lado dos  ontologistes  diversos, todos logo pejorativamente qualificados.  O estilo nesse texto do original não parece tão difícil, apesar da controvérsia mantida a respeito da lógica dos sentimentos e da lógica das imagens.
Assim se descobre aversão semântica criada pelo texto comtiano, uma verdadeira   criptografia das aberrações doutorais.

1.3     A CRIPTOGRAFIA ANFIBOLÓGICA


Ferdinand Brunetière, famoso crítico literário francês, diz que em Augusto Comte  a frase é mal feita:

”La phrase est mal faite, et   la construction  amphibologique,  -  on  ne doit pas chercher dans la prose d’Auguste Comte des  exemples   d’analyse grammaticale; ---  mais  le sens  n’est  pas  douteux.”

Ou seja,       “A frase é mal feita e  a construção é anfibológica,  -  não se deve procurar na prosa de Augusto Comte exemplos de análise gramatical; -  mas o sentido não é duvidoso.”[12]

Anfibologia é catalogada em sintaxe gramatical como um dos vícios de linguagem, ao lado de outros vícios como o barbarismo, o solecismo e a obscuridade.  Define-se anfibologia ou ambigüidade como consistindo em dar à frase sentido duplo ou duvidoso.  Tal como na afirmação
                     “Ama o povo o bom rei”  ---    onde o sujeito da oração tanto pode ser “o povo” como “o bom rei”.[13]
 Referia-se Brunetière  ao seguinte texto da Politique, no volume II, p.115:  

“En un mot, sa discipline (du catholicisme au moyen âge)  ne fut alors hostile qu’envers l’esprit métaphysique, et l’on doit aujour’dui regretter qu’elle ne l’ait point empêché davantage de troubler l’essor spontané de l’esprit positif, dont il conserva longtemps la tutelle spéciale.”    (BRUNETI1ÈRE, 1905, p.308) 

Na dúvida, pode-se ler a tradução inglesa do mesmo texto:

  “In a word the Church was then only hostile to the Metaphysical spirit;  and we may now regret,  that it did not still further succeed in preventing that phase from disturbing the growth of the Positive spirit, which was long  under  the special guardianship of Catholicism.”  (Polity,II-100)

O texto em francês tem, de fato, uma confusão difícil de deslindar. A continuação do texto, em geral, esclarece e completa o pensamento:

 “La théologie du moyen âge était d’autant mieux fondée à exclure l’ontologie du domaine moral et social, que le dogme catholique avait vraiment établi la seule théorie que put en diriger la première culture systématique, du moins pour la vie privée, base normale de la vie publique.  Son véritable créateur posa complétement le principe général de  l’antagonisme  continu entre  la nature et la grâce, qui était alors aussi convenable à la theorie qu’indispensable à la pratique.” (Politique, II-115)

Note-se aí como se mostra o hábito do filósofo em fazer alusão a um autor, sem lhe dar o nome, mas apenas indicando sua qualificação:  no caso,  “o verdadeiro criador” (do catolicismo)  -  referindo-se não a Cristo, mas a São Paulo, que poderia ser identificado por sua teoria da luta entre a natureza e a graça.  Deve-se ter em conta que, para Comte, a doutrina da Idade Média seria a doutrina de S. Paulo, que deixava livre de explicação, desprezado, e, portanto, de permida pesquisa, protegido, o estudo da filosofia natural.  Assim “tuteladas” e abençoadas, então as ciências positivas progrediram por meio dos próprios monges medievais, tais como Roger Bacon e muitos outros.  Essa é a demonstração feita por Augusto Comte da idade das luzes científicas no catolicismo da idade média, que o preconceito anti-histórico dos revolucionários não lhes permite apreciar.  A metafísica era proscrita da filosofia moral ou da ciência humana, onde dominava a doutrina da graça de S. Paulo.  Só mais tarde, com o tomismo, foi introduzido pela escolástica o intelectualismo da metafísica aristotélica, um progresso necessário, mas perigoso para a fé.  Progresso que viria a destruir a doutrina medieval por seus próprios padres, como nunca ocorreu na história das religiões.
Vê-se que Brunetière identifica, no texto comtiano, portanto, uma curiosa criptografia; um vício de linguagem, a criptografia anfibológica.

1.4     THE  OVERLOADED  STYLE


A expressão “overloaded with words” foi empregada por Miss Henriette Martineau, brilhante intelectual inglesa.  Indicava que o texto do Cours de Philosophie Positive  estaria  “sobrecarregado”  de palavras.  O estilo do filósofo passaria, então, por ser “verboso”.   Mas essa “verbosidade” não é daquela usual, que pouco ou nada exprime.  Há uma congestão de nomes, de qualificativos, todos significativos, aparentemente indispensáveis, mas cuja existência só Miss Martineau explicou.   E, ao expurgar a redação do “Cours” desse excesso de cuidados e de complementos, corrigindo esse “estilo sobrecarregado”, o “overloaded style”, tornou a leitura da obra muito menos assustadora, o texto muito mais enxuto, sob a aprovação direta do próprio autor.
Tradutora dos volumosos seis tomos do Cours de Philosophie Positive, condensando-os em apenas dois volumes, Miss Martineau conheceu bem o modo de escrever de Augusto Comte.  Em 1853, portanto em vida do filósofo, no prefácio da tradução, diz ela sobre o texto comtiano no Cours:

“  M.Comte style is singular.  It is at the same time rich and diffuse.  Every sentence is full fraught with meaning; yet it is  overloaded  with words.  His scrupulous honesty leads him to guard his enunciations with epithets so constantly repeated, that though, to his own mind, they are necessary in each individual instance, they become wearisome, especially towards the end of his work, and lose their effect by constant repetition.   It appeared to me worthwhile to condense his work,  My belief is that thus, if nothing more were done, it might be brought before the minds of many who would be deterred from the study of it by its bulk”. (MARTINEAU,1893,p.IV)

Em português:      “ O estilo de Comte é singular.  É ao mesmo tempo rico e difuso.  Toda sentença é bem cheia de significado;  e por cima é sobrecarregada de palavras.  Sua escrupulosa honestidade leva-o a proteger suas afirmações com epítetos tão constantemente repetidos, que, embora, para sua própria impressão, sejam eles necessários a cada momento individual, tornam-se cansativos, especialmente mais para o fim de sua obra, e perdem seu efeito por causa da repetição constante.  Pareceu-me oportuno condensar seu trabalho.  Acredito que, mesmo se nada mais fosse feito, apenas isso poderia colocá-lo ao alcance das mentes de muitos leitores que desistiriam de tentar seu estudo, assustados por seu enorme volume

O Curso de Filosofia se apresenta sob a forma de palestras.  Elas foram proferidas separadamente, em períodos afastados no tempo, o que exigia uma recapitulação repetida que se tornou sem interesse e anti-filosófica. Essa prática, que tinha sido indispensável, tornou-se desnecessária quando a obra se apresentou de uma só vez, em conjunto.  A condensação feita por Miss Martineau em apenas dois volumes ocupa no original seis grandes volumes com oitocentas páginas cada, em média.  E acredita-se que nada de significativo foi omitido, tendo o próprio filósofo aprovado a condensação feita, recomendando sua leitura.
Uma consideração importante a levar em conta é a declaração de  Comte lamentando a precipitação com que redigiu o Curso de Filosofia Positiva e que, se vivesse o suficiente, re-escreveria os seus seis imensos volumes.[14]
Esse projeto de explicitação de seu próprio texto é uma prova clara do que chamamos a criptografia de Augusto Comte.  E por ele próprio reconhecida.
E notar especialmente que é a escrupulosa indicação dos autores originais de cada idéia alheia empregada por Comte que torna a leitura do filósofo ainda mais difícil, sendo por isso difícil considerá-lo como um plagiário.  Um ponto de interesse para debate.
Eis aí como, em candidato a plagiário pouco hábil, a escrupulosa honestidade intelectual de Augusto Comte gerou a criptografia do  “overloaded  style”.

1.5     A CRIPTOGRAFIA DA PRESSA


Sentiu o filósofo que a pesquisa psicossocial preparatória consumiria muitos anos de trabalho.   Seria por demais longa a tarefa a que se dedicaria, para dar uma base científica à arte política da modernidade.
O Cours de Philosophie deveria constar de apenas quatro volumes.  Mas só se completou com o sexto volume.  Toda essa obra, desde as primeiras linhas, foi elaborada com extrema rapidez, embora diversos obstáculos tenham retardado sua execução. A celeridade impressa em sua redação produziu um texto muito mais difícil de ser lido:  a causa desse estilo mais áspero seria a criptografia da pressa, ou seja a dificuldade provocada pelo apressamento posto no trabalho de sua redação.
É no prefácio do volume VI e último do Cours de Philosophie que o próprio autor fala da elevada velocidade que de fato imprimiu à sua elaboração e da forma como a realizou.  Diz Comte:

           “Quant au mode d’exécution des diverses portions de ce Traité, il me suffit d’indiquer que les embarras d’une situation personnelle, dont le lecteur connaît maintenant la gravité, ont dû m’obliger à y apporter toujours la plus grande célérité partielle, sans laquelle mon entreprise philosophique fût ainsi restée essentiellement impraticable.  Pour mesurer, autant que possible, cette vitesse effective, j’ai cru devoir, dans la table générale des matières, placée à la fin de ce volume, noter brièvement l’époque et la duré de chacune des treize elaborations distinctes qui ont constitué, à des intervalles très-inégaux, le vaste ensemble de ma composition.  A cette indication caractéristique, je dois d’avance ajouter ici que, pressé par le temps, j’ai jamais pu récrire aucune partie quelconque de ce long travail, qui a toujours été imprimé sur mon brouillon original, dont la transcription eût au moins doublé la durée de mon exécution.  Heuresement que, peu disposé, de ma nature, à rien écrire avant une pleine maturité, ce premier jet s’est trouvé constamment assez net pour permettre aisément, sans la moindre réclamation, l’opération typographique, que je n’ai d’ailleurs ralentie par aucun remaniement ulterieur.  Ces divers renseignements secondaires pourront, j’espère, susciter quelque indulgence pour les imperfections littéraires d’une telle composition.” (Philosophie,VI-p.XXXVII)

Aí está o pedido de indulgência do filósofo, para a imperfeição literária por ele mesmo reconhecida de seu estilo.  Portanto, qualquer dificuldade de leitura, devida à forma apressada de redação, teria o caráter involuntário, resultante da impossibilidade de re-escrever e corrigir o texto, como o comum dos autores fazem.  Consiste no que se chamou aqui de criptografia da pressa.
Registrou, portanto, no sumário do último volume a data e a duração de cada etapa de redação, cujo primeiro volume foi escrito no primeiro semestre de 1830, o último volume sendo terminado em julho de 1842.  Tem toda a razão Martineau em dizer que a obra completa tomou 12 anos para ser escrita, mas seu plano geral foi elaborado em 1822, a partir de então tendo sido apresentada oralmente em palestras públicas, ao longo de 20 anos.   Notar que esse plano de trabalho tornou-se válido para toda a vida filosófica e política de Comte, sendo uma importante comprovação da continuidade entre suas duas fases doutrinárias, correspondentes respectivamente ao Cours e ao Système de Politique
A preparação para a elaboração política e a própria teoria política de Comte pertencem, ambas, a seu plano inicial.  A Politique jamais foi considerada pelo filósofo como uma nova produção acidental em sua carreira, um novo rumo, mas, desde o princípio de sua pesquisa, seu mais alto objetivo de efetiva ação. 
Consta do programa de trabalho do jovem Comte a renovação da Política.  Compreendendo, sobretudo, a renovação do poder político sem ignorar o papel fundamental da renovação da filosofia, do valor filosófico.  Em seus textos originais estaria o registro de como essa filosofia seria pensada.   Se elaborada em liberdade, por meio da liberdade, para a liberdade, ou, se, pelo contrário, essa filosofia seria a doutrina do autoritarismo científico, da ditadura.
Pretenderia produzir uma nova classe de filósofo da modernidade, a quem denomina de “sacerdote”.  Seria um poder puramente moral e intelectual, independente da coerção tanto da violência como da riqueza, para renovar a comunicação social, para sanear a educação em todos os níveis e especializações.  Mas essa perfeita previsão no planejamento e essa continuidade de esforços também denuncia a  continuidade da pressa  na elaboração também de sua obra principal, a Política, o grande alvo do plano de juventude do pensador, que ambiciosamente pretenderia refazer todo o sistema social humano.
Em grande parte os problemas conjugais de Comte contribuíram para o retardamento da elaboração do Cours.  Em combinação com a perda de cargos no ensino oficial, na exclusão da universidade governamental, que afastou igualmente todos os pensadores revolucionários e inovadores.  Isso obrigou-o a viver de aulas particulares, usando grande parte de seu tempo em lecionar, para pagar suas despesas.  Mais tarde, conseguiria dedicar-se exclusivamente à filosofia, quando instituído um subsídio em seu favor por seus discípulos e admiradores.

Testemunhada a criptografia existente no texto de Comte pelo próprio filósofo, e por ele mesmo justificada, continuaremos a examinar o estilo comtiano.  Ao mesmo tempo, veremos que o autor expressa, no prefácio do Système de Politique, sua decisão de manter o sacrificio do estilo em benefício da maior velocidade de redação da obra.  Confirmará, então, o filósofo, a continuidade da  criptografia da pressa  em sua forma de redação.
Notar, portanto, que temos examinado o estilo do autor, ao mesmo tempo considerando o que Comte, mas não só ele, chamaria de “seu estudo dogmático, isto é, examinando o conteúdo do texto.  Sem haver aí nenhum dogma fechado, do saber absoluto.
Explica Augusto Comte no prefácio do Système de Politique o projeto para a elaboração do que viria a ser a obra  principal de sua doutrina:

                                            “ A  la    philosophie positive,   je  fais  donc succéder  aujourd’hui  la   politique positive,  qui  deviendra  ma  principale  construction,  quoique  nécessairement   fondée  sur  la  première.   En systématisant ïci la religion universelle d’après des principes déjà construits, mon exposition dogmatique se rapproche davantage du vrai régime rationnel, où la conviction résulte beaucoup plus d’une réflexion solitaire que d’aucune controverse.”   (Politique, I-p.3 e 4 do prefácio)[15]

No parágrafo seguinte continua:     

“Une telle réalisation du hardi projet de ma jeunesse constitue la meilleure récompense de mon opiniâtre dévouement.   Non moins vives et plus profondes, les mêmes tendances régénératrices qui échauffèrent mon zèle naissant animent aujourd’hui les approches de ma digne vieillesse.  La vaste élaboration théorique qui remplit ce long intervalle ne m’apparaît desormais que comme un épisode nécessaire de l’incomparable mission que m’assigna l’ensemble de l’évolution humaine.”

O autor continua em outro parágrafo:

“Malgré leur intime connexité, ces deux grands traités doivent donc différer essentiellement.  L’esprit prévaut dans l’un, pour mieux caractériser la supériorité intellectuelle du positivisme sur un théologisme quelconque.   Ici  le coeur  domine, afin de manifester assez la prééminence morale  de la vraie religion.   Le nouveau sacerdoce occidental ne pouvait dignement terminer la fatale insurrection de l’intelligence contre le sentiment qu’en procurant d’abord à la raison moderne une pleine satisfaction normale.     Mais, d’après ce préambule nécessaire, les besoins moraux devaient ensuite reprendre directement leur juste prépondérance,   pour construire  une synthèse  vraiment  complète,   où   l’amour    constitue naturellement   le seul principe universel.”

Traduzindo, explicitando e adaptando livremente :

“Faço suceder hoje, depois do Cours de Philosophie Positive, o Système de Politique Positive, que se tornará a minha construção filosófica principal, embora seja necessariamente fundada sobre o Cours.  Essa é a realização do audacioso projeto de minha juventude.  É a melhor recompensa de meu devotamento perseverante.  As mesmas tendências para promover a regeneração social, que, tão vivas e tão profundas, estimularam minha ação logo no início da carreira, animam hoje a aproximação de minha digna velhice.  A vasta elaboração teórica que foi produzida nesse longo intervalo aparece-me apenas como um incidente necessário dentro da missão incomparável a que me conduziu o conjunto da evolução humana.
Esses dois tratados, apesar de sua ligação íntima, devem, no entanto, diferir completamente.   No Cours de Philosophie prevalece a inteligência, para caracterizar melhor a superioridade mental do positivismo sobre qualquer teísmo.  Na Politique dominará o sentimento, para bem indicar a superioridade psicológica da nova doutrina.  O  novo filósofo a surgir no ocidente não conseguirá acabar com a revolta fatal da razão contra o sentimento a não ser oferecendo uma completa e sistemática satisfação das carências da inteligência na modernidade.  Porém, em conseqüência dessa inevitável preparação, as necessidades afetivas deverão retomar imediatamente, com justiça, sua preponderância, para instituir um sistema de saber verdadeiramente completo, em que o sentimento social, o altruísmo, constituirá, como é natural, o único princípio geral”.

Notar que, para traduzir, o estilo de Comte torna imperioso desenvolver as muitas idéias contidas implicitamente na cuidadosa forma concisa do texto original.   Abundância escondida em seu vocabulário rico, bem empregado, eficiente, mas perturbador. O prefixo “cripto” significa escondido --- daí a idéia de criptográfia.
O filósofo afirma que é do altruísmo, como princípio único de conjunto, que decorre a coesão social.  Insiste em mostrar a completa coerência da segunda fase de sua vida filosófica em continuidade com a fase inicial, em que produziu o Cours de Philosophie.  Justifica, portanto, a mudança de metodologia no Système de Politique.  Alteração que, no entanto,  não reduz a elevada celeridade de sua elaboração, nem amenizaria a criptografia do seu estilo.
Em seguida escreve:

      “La diversité normale de ces deux élaborations successives y affecte même le mode d’exposition.  Por tirer d’une science dispersive les bases élémentaires de la saine   philosophie,   mon ouvrage fondamental dut offrir surtout un caractère de recherche et de discussion.   En systématisant ici la religion universelle d’après de principes déjà construits, mon exposition dogmatique se rapproche davantage du vrai régime rationnel, où la conviction résulte beaucoup plus d’une réflexion solitaire que d’aucune controverse.

Em português:

“A diferença natural dessas duas elaborações sucessivas afeta mesmo o seu modo de exposição.  Para obter de uma ciência dispersiva os elementos básicos de uma  filosofia sadia, minha obra fundamental, o  Curso de Filosofia, deveria oferecer sobretudo um caráter de pesquisa e de discussão.    Ao sistematizar aqui a  nova doutrina filosófica universal partindo de princípios já demonstrados, a minha exposição do seu conteúdo se aproxima mais do tipo de regime usual de exposição, onde o resultado do estudo resultará muito mais de uma reflexão solitária do que de alguma controvérsia.”

Essa tradução exemplifica uma das formas de decodificação da linguagem de tom “religioso” encontrada em todo o Système de Politique.  Essa alteração de forma do texto original, aqui apresentada, no entanto, não implica em nosso julgamento e condenação do vocabulário aparentemente teísta de Comte.  Dentro das premissas estabelecidas pelo autor, sua linguagem parece corretamente expressar suas idéias renovadoras.  Mas, para um pesquisador desavisado, a linguagem religiosa empregada desqualificaria a condição científica da pesquisa sociológica de Augusto Comte, que seria julgada como um retorno à metafísica ontológica ou ao puro teísmo.  A mesma desqualificação valeria igualmente para as descobertas em sua original ciência da psicologia.  E esse descrédito se estenderia até às propostas precisas e pormenorizadas da ciência política comtiana.  Tudo por conta de uma confusão semântica, causada por  uma  mera  criptografia.
O Cours de Philosophie de Augusto Comte teve de fato o objetivo de  produzir uma filosofia, a filosofia das ciências, por vezes chamada de epistemologia, apelido não empregado no tempo do filósofo.  O que corresponde a relacionar as diferentes especialidades científicas a princípios gerais, filosóficos.  Esse seria o primeiro passo para a elaboração de uma sociologia científica, por meio da pesquisa da metodologia do saber puro como conhecimento abstrato.  O êxito de Comte poderia ser avaliado pelo reconhecimento de que a filosofia das ciências hoje seria  o próprio positivismo comtiano.[16]
Mas teria Comte empregado a expressão “filosofia das ciências” para designar sua doutrina?    A resposta encontraremos nas próprias palavras do autor, ao mesmo tempo em que apreciamos o seu cuidado na escolha dos nomes a empregar e em especial  o seu estilo peculiar :

“Mais je n’ai pas dû choisir cette dernière dénomination (de philosophie naturelle), non plus que celle de philosophie des sciences qui serait peut-être encore plus précise parce que l’une et l’autre ne s’entendent pas encore de tous les ordres de phénomènes, tandis que la philosophie positive, dans laquelle je comprends l’étude des phénomènes sociaux aussi bien que de tous les autres, désigne une manière uniforme de raisonner applicable à tous les sujets sur lesquels l’esprit humain peut s’exercer.” (Cours, I, Avertissement, p. VIII)

O filósofo, portanto, decidiu desistir do nome de filosofia das ciências, apesar de lhe parecer mais preciso, por não abranger, em sua época, as ciências humanas.  Essa razão, no entanto,  não é mais válida em nossos dias, podendo-se considerar, assim, a filosofia de Comte uma filosofia das ciências, mas não apenas das ciências.   Por ser também a filosofia das belas artes, da educação, da política, das artes úteis, isto é, da indústria.
Em seu tempo, as ciências estavam se formando, constituindo-se em separado, esparsamente, em informações certas e úteis, mas desarticuladas, sem conhecer princípios de generalidade.   O filósofo pretendeu oferecer uma nova metodologia uniforme, realizando a harmonia de suas divisões, classificando-as, descobrindo relações estruturais perfectíveis, capazes de uma indefinida evolução, embora sob  um imutável arranjo  de relações mútuas.  O que viria a ser a filosofia positiva de Augusto Comte, a ser considerada como uma proposição relativa e perfectível.[17]
O desafio estaria em elaborar um sistema aberto, verificável, sem a condição de imobilidade do absoluto, mas realizando a coerência ou a unidade de todo o conhecimento humano numa síntese gnosiológica compatível com a modernidade.  Com o objetivo final da previsão clara dos fatos políticos, para sua projeção no futuro.
Será essa a tarefa do filósofo de nossos dias?

Mais adiante nos informa o autor sobre sua forma literária de redação:

      “Dès l’âge de vingt-deux ans mon premier travail public sur la coordination historique annonça, nettement l’ensemble de ma carrièrre philosophique, irrévocablement fixée, deux ans après, par ma découverte des lois sociologiques.”

No parágrafo seguinte escreve:     

“Mais cette précocité n’aurait pas suffi pour me procurer une seconde vie sans l’énergique résolution qui me fit sacrifier toute vanité littéraire au besoin majeur de terminer à temps mon immense tâche objective.  Son exécution, qui dura douze ans, en eût exigé au moins six de plus, si je m’étais assujetti, comme je l’avais fait auparavant, á récrire mon manuscrit, au lieu de toujours livrer à la presse  ma première rédaction, jamais suivie d’aucune correction importante.  Cette seule précaution m’aurait préservé des principaux reproches littéraires adressés à  mon ouvrage fondamental, par des juges trop peu attentives aux explications spéciales de sa dernière préface. Mes premiers opuscules, réimprimés à la fin du présent traité,    indiqueront  si   le talent   d’écrire  m’est réellement interdit quand je me conforme aux usages qu’éxige toujours le perfectionnemnt du style.” (Politique,I, p.6 e 7 do prefácio)

Vê-se o filósofo a defender-se da crítica feita ao seu estilo de difícil leitura, dando como garantia de sua capacidade de bem escrever como nos Opúsculos de Filosofia Social  produzidos em sua juventude, e que se acham reproduzidos como apêndice do Système de Politique.     O caráter enigmático ou “anfibológico”  por vezes notado em seu estilo,  foi,  portanto, reconhecido  por Comte, e atribuído à celeridade que quis dar ao seu trabalho.[18]
Assim se confirma o problema semântico que estamos estudando, sob a forma da criptografia da pressa.

Esses registros mostram alguns exemplos de dificuldade encontrados no estilo de Augusto Comte, para ajudar na identificação dos obstáculos encontrados na leitura de sua obra.   Esse constitui o primeiro passo para o estudo de como surgiram e como se apresentam as criptografias..  Vimos, preliminarmente, as dificuldades da harmonia do estilo, das aberrações doutorais, da anfibologia, do estilo sobrecarregado e a criptografia da pressa.  Começamos a ter uma noção da criptografia comtiana, a sentir até onde vai a nocividade desse problema e a admirar a sofisticação de seu texto, por seu requintado vocabulário e sua impressionante concisão.    Mas, nesta dissertação, nada poderemos avaliar do seu conteúdo filosófico, científico ou político, se consistente, verdadeiro ou pura falsificação.





2.           SEGUNDO CAPÍTULO

                             A Obra Abstrata:   Uma Revolução Filosófica


Estudaremos em seguida a criptografia encontrada nos textos da elaboração abstrata do filósofo.  Essa preparação é muito mais longa do que o texto de aplicação a ser encontrado na filosofia política de Comte, a ser vista no terceiro capítulo.
Analisaremos aqui algumas dificuldades vistas na vasta elaboração teórica do filósofo, e, no capítulo seguinte, as dificuldades encontradas na aplicação de seus conceitos à prática política, isto é, em sua ciência política.
É importante notar que o filósofo planejou sua carreira para chegar a um objetivo final bem definido: dar à ciência política o embasamento científico firme, pela constituição de uma sociologia verificável, capaz de prever com segurança sua aplicação na  prática  de um   regime político   mais adequado para a modernidade.  A pretensão seria a de que a sociologia científica não poderia ser uma simples descrição ou experimentação empírica especializada:  deveria oferecer leis sociológicas infalíveis no plano abstrato, a serem aplicadas a cada caso político concreto, com segurança, para previsão.  Mas com a mesma certeza com que se aplicam hoje as leis abstratas da astronomia e da física na técnica industrial, na arte de navegar e nos satélites artificiais.  Para tanto, a nova ciência deveria ser plenamente demonstrável, e, portanto, deveria resistir à dúvida cartesiana.  Deveria provar, por exemplo, que os regimes totalitários são de realização impossível na sociedade contemporânea, a longo prazo, no ocidente. 
A sociologia comtiana pretenderia conduzir com firmeza a uma Ciência Política capaz de defender a democracia no século XX, o que foi impossível à sociologia pobremente descritiva e estéril do início do século e da crise de 1930.
A tragédia da teoria política, de sua esterilidade e incompetência para defender o liberalismo parece, talvez, estender-se até à sociologia e à Ciência Política de nossos dias.  Se assim de fato fosse, ter-se-iam evitado as hecatombes das grandes guerras, do nazismo e do comunismo no ocidente e no oriente, com centenas de milhões de vítimas.   O desafio naturalmente permanece, por todo lugar, até agora, sem solução.
Uma reflexão cabe, então:  se essa pretensão de Augusto Comte, ao se colocar como um reformista social, seria mesmo ridícula ou, se ainda, em nossos dias, seria indispensável alguma solução urgente e eficaz do problema da guerra, da pobreza, da fome e de consumo dos tóxicos.
A verificação só poderá ser feita decifrando os textos do filósofo, tanto na sua produção abstrata como nos textos de aplicação política, comparada ainda à verificação de seus resultados na práxis do poder no Brasil e em outros países.
Neste segundo capítulo o objetivo será a análise das formas criptográficas mais comuns no texto comtiano, em sua parte abstrata.  Como antes, examinaremos o estilo e a semântica apenas do texto correspondente aos criptogramas mais importantes.

A questão implica decerto na identificação clara e distinta do que seja a filosofia.  Propõe Augusto Comte uma definição surpreendentemente simples: 

           “filosofia é a explicação do mundo e do homem”.
                                                (Cours, III, 269; Martineau, I, 295)

Essa é uma oportunidade de registrar a surpreendente capacidade de concisão do pensamento comtiano, a ser constantemente vista em toda a sua obra.  O que a torna por vezes por demais simples, e por vezes muito complexa.  Compare-se com uma definição de Caio Prado Júnior: 
“filosofia é o exame do conhecimento, do fato cognitivo em sua generalidade, que se reduz à consideração sistemática do essencial dos sucessivos fatos ou momentos em que se compõe e desdobra a dialética humana: da prática ao Conhecimento, e desse Conhecimento de retorno à prática.”[19]
O bem feito Dicionário Básico de Filosofia, de Hilton Japiassu e Danilo Marcondes, cuidadosamente registra ser difícil dar uma definição de filosofia, já que ela varia conforme o filósofo e com o período histórico.[20]
E ainda compare-se com a tentativa de Garcia Morente:
         “filosofia  é a ciência dos objetos do ponto de vista da totalidade, enquanto que as ciências particulares são os setores parciais do ser, províncias recortadas dentro do continente total do ser. -  Mas isso é falso, -  mas tem sentido: - a disciplina que considera o seu objeto sempre do ponto de vista universal e totalitário.  Enquanto que qualquer outra disciplina, que não seja a filosofia, o considera de um ponto de vista parcial e derivado.”[21]
A definição deveria servir às diversas formas de filosofia, sem exclusão nem mesmo das mais absurdas e fantasiosas.  E também deveria convir às diferentes formas que a filosofia assume em sua evolução ao longo de toda história.  De acordo com a definição comtiana todo saber humano, teórico ou prático, faria parte da filosofia.  Ver o Quadro dos Conhecimentos, da Gnosiologia,  em anexo.
Na leitura do texto de Comte dois termos são importantes: eles formam o par do  método com a doutrina.
Pretende Comte que cada ciência tenha o seu método preponderante, mas sem exclusão dos demais meios.  Cada um desses métodos deve ser aprendido sobretudo na doutrina científica correspondente, onde predomina.  Refere-se o filósofo aos  Trissotinos de Molière,  que  pretendiam  ensinar  a  arte da dedução sem que tivessem eles próprios aprendido e executado qualquer dedução matemática.  (Catecismo, p.208)
A relação do método com a doutrina liga-se, assim, com a aprendizagem da habilidade.  Aprende-se a nadar, nadando, jamais pela leitura ou pelo discurso sobre a natação.  Porque a habilidade de execução exige a percepção pessoal e intransferível da gradação do esforço e do ritmo durante a realização da tarefa.  O mesmo se dá ao pesquisar e ao filosofar
Assim pode-se bem interpretar a muito citada recomendação kantiana de que  a filosofia não se ensina, a filosofia se aprende.   Ou seja, aprende-se a pensar, pensando.  Ou será que se aprende a pensar, comentando o pensamento alheio?
E, de fato, se assim for, filosofia não se aprenderia lendo ou pensando os comentadores da filosofia ou dos filósofos: ---  somente  aprende-se  a filosofar,  filosofando!

A determinação clara da relação entre o sujeito e o objeto é fundante do conceito de relativismo em Augusto Comte, válido para todo tipo de saber humano.
 No quarto volume do Système de Politique  Augusto Comte proporia uma  “filosofia primeira”, como o conjunto dos princípios mais gerais da gnosiologia, fundantes de todo o conhecimento.  Nessa nova  “metafísica”  define-se que o saber nada mais seria do que uma hipótese às vezes confirmada,   às  vezes  rejeitada,    ou seja,   nada mais é do que  mera  suposição subjetiva,  humana.  (Politique,v. IV, p.173, 174;  ver também no Cours, v. VI, p.728 e seg.)
Esse seria o princípio gerador da teoria do conhecimento, a lei-mater da epistemologia:

“Elle consiste dans le principe, vraiment fondamental, qui partout prescrit de former   l’hypothèse la plus simple que comporte l’ensemble des documents à représenter.”

O autor definiria a verdade, então, assim:  verdade é a hipótese tomada para satisfazer o conjunto de dados conhecidos do problema.   A verdade então é variável, relacionada com os conhecimentos disponíveis, no tempo e no espaço.
Toda o ato, mesmo o mais simples, é precedido da elaboração de um plano de ação, sempre feito sobre hipóteses, por vezes por suposições não verificadas.  E todo o conhecimento se relacionaria com os dados, com as observações, com os resultados, que poderão ter origem objetiva, exterior, ou interior, subjetiva, mas sempre processados no nível subjetivo, da razão lógica, da imaginação. 
Entenderia então Comte que um povo primitivo, em sua adoração mágica, tinha aí, nessa crença, a sua verdade, a sua fé.   Seria o seu positivismo de então, o seu saber.  Para o filósofo, os humanos seriam todos sempre positivistas, em diferentes graus de evolução.  Porque a verdade seria sempre relativa, perfectível, logo imperfeita.
E a  lei-mãe da filosofia, como a dignidade do tema exigiria, seria a  lei-mãe da fé,  de toda fé.  Porque a fé é o aceitar conceitual  antes e independente da aceitação pela razão.  É, portanto, uma hipótese, mas uma hipótese muito sagrada, muito especial, posta na mais alta posição.
Um aforismo filosófico proposto por Comte em sua juventude afirmava que

        tudo   é   relativo,     eis   o   único   princípio   absoluto”
             (Cours, VI,746.747,749,750;  GIANOTTI, 1973, p.68,69)[22]

É a afirmação feita pelo pretensioso pensador, que tem a coragem de dizer que  o saber absoluto não existe,  que nada de eterno foi jamais dito ou feito, que tudo sempre muda, que a mutação no pensar e no fazer é a regra definitiva.   Ou melhor, que    a evolução é a regra.
O saber tornar-se-ia definitivo no sistema filosófico de Comte:
           ---   definitivamente   em   mutação...
Mas essa mutação do conhecimento não é efetivamente arbitrária.  Ela se faria por correções sucessivas, descobertas e repetidamente testadas no estudo das   relações entre os  fenômenos  do  ser.
Afirmaria Comte, portanto, a verdade dos mitos oportunos, indispensáveis à vida e a unidade ou harmonia dos humanos, em seu tempo, em seu lugar, no indivíduo em liberdade e no grupo em coesão.
E, curiosamente, não tem  essa pequena e simples assertiva   ---  “tudo é relativo” --- nenhuma dificuldade semântica, nenhuma palavra nova, é livre de qualquer neologismo.   
É, no entanto uma revolução do pensarA revolução mais geral, mais importante e mais difícil de todas:  a que tem por fim a refusão completa do sistema social  (COMTE, 1972, p. 68)
Será mesmo de interesse a pesquisa da realidade e das conseqüências da continuada positivação progressiva do conhecimento em nossos dias.   E saber se esse movimento ameaça a filosofia dos deuses e dos entes.    Queixa-se mesmo  Jacques Maritain do  mau hábito  introduzido no  raciocínio de nossos dias  pelo estudo científico, dificultando a apreensão de noções metafísicas:   A elucidação de questões morais,  diz Maritain,  são filosóficas, dependentes da metafísica;  e  elas nos escaparão se recusarmos  a  trabalhar  ao nível da visualização  filosófica  e nos fixarmos no conhecimento experimental.  Essa é uma dificuldade constante, porque os espíritos contemporâneos estão habituados ao conhecimento experimental e deslumbrados por ele.[23]
A positivação do saber será em Comte dos mais importantes criptogramas.  Será o criptograma da mudança de método e de conteúdo:  a revolução metodológica e dogmática.   A filosofia deixaria de lado a pretensão ao saber absoluto, tornando-se relativa, depois de ter sido,  sempre, por todo o tempo,  absoluta!  E mais recentemente, em graus variáveis, metafísica!  Na modernidade, até mesmo definida como puramente metafísica![24]
A previsão dos acontecimentos, a que a filosofia sempre se propôs, seria mantida, mas agora feita com a certeza da ciência.  É essa a profunda revolução em andamento na modernidade, posta na mesa de debate.  Em nossos dias um debate felizmente livre.  Mas essa mudança radical não poderá ser feita por meio de uma simples e fácil comunicação.  Haverá dificuldades sérias de compreensão nessa alteração profunda no modo de  pensar.  Haverá dificuldades. e muitas:  portanto, haverá muitas formas de criptografia.
Será essa uma forma de criptografia, de dificuldade semântica, com toda a generalidade filosófica: a criptografia da revolução filosófica.

2.1     COMTE:  O  ÚNICO  FILÓSOFO   LIBERAL


O liberalismo inarredável de Augusto Comte é, entre suas teses inovadoras, das que mais são desconhecidas e, por isso mesmo, deturpadas.
    No entanto,
                           Comte prega a liberdade
                                                                     Ele apresenta a prova de que a liberdade é necessária, isto é, que a liberdade é inevitável e indispensável.   É condição social necessária na modernidade e  também no mais remoto passado
Mas essa pregação libertária não é lida.   A pregação em favor da liberdade, alterada por muitas razões, entre elas também pelas dificuldades semânticas, transforma-se paradoxalmente numa pregação puramente ilusória em favor da ditadura como tirania. 
Esse é um dos motivos por que persistimos, aqui, com o estudo desse difícil processo de comunicação.
Augusto Comte, tantas vezes mostrado como autoritário, em declaração séria, confiante, auto proclama-se como 

    o  único  pensador  a  defender  a  liberdade    ---   como  sistema 

Será racional a pretensão de Comte em tornar-se o grande protetor da liberdade?    Será dando à sua obra o caráter de rigorosa  abertura, como doutrina verificável, colocada  ao livre exame, sempre sob a premissa de demonstrabilidade ?   Porque uma doutrina demonstrável não temeria a examinação livre, que se torna mortal aos conceitos absolutos.    E porque o caráter unívoco da ciência moderna explicaria esse  exclusivo atributo.
Para Augusto Comte, quem elaborar uma outra doutrina   demonstrável    obterá, independentemente, a mesma doutrina, exceto em pormenores secundários, uma vez que a doutrina demonstrável resultaria da observação controlada e repetida, independente da vontade dos cientistas, dos deuses, ou das entidades ou de categorias fundantes.  E não seria fruto da vontade pessoal de poderes intangíveis ou da ação de entidades metafísicas impessoais.  Ou fruto das intuições arbitrárias não-sensoriais de pensadores, nem de registros em livros, ou de tradições, por mais sagrados, uns e outros, por mais consagrados, famosos ou mais antigos que sejam.
Por essa razão Comte não pretendia elaborar um comtismo, mas uma filosofia superior a seu próprio autor, um positivismo”.  A ser , em suas próprias palavras, uma doutrina  superior a seus órgãos quaisquer”.
Por isso, cada ciência pura ou abstrata apresentaria o caráter de intersubjetividade, sendo  o único saber possível, para as mesmas condições de análise, a nível abstrato, vale dizer, fenomênico, fora da concretude do ser.  Essa a base racional da universalidade da ciência moderna, em nada autoritária, mas plenamente livre, hoje utilizada na globalização irreversível da economia e do saber planetário.   Para consolo da liberdade de sonhar na poesia, na arte, na metafísica, o sonho não será jamais proibido, apenas tornar-se-á um sonho consciente, relativado, da mesma forma encantador, cada vez mais empregado para a felicidade dos humanos.

E a liberdade?  Como será definida a liberdade por Augusto Comte?  De forma explícita,     “a liberdade consiste em toda parte em seguir sem obstáculos as leis peculiares ao caso correspondente”. (Catecismo, 243,244)
A definição tem uma aparência autoritária :   só haveria liberdade para obedecer às leis.   O autor exemplifica com a queda de um corpo em liberdade, em queda livre.   Só há liberdade aí, se não houver impecilhos ao cumprimento da lei.   Mas para quem supõe o poder individual completo, sem lei, para quem definir liberdade como sendo o mais amplo arbítrio, essa definição será totalitária, sem remédio.  No entanto, resta refletir que “sem obstáculos” indica que também não haverá imposição para seguir as leis: em outras palavras, a liberdade consiste na possibilidade de seguir “voluntariamente” as leis.    No caso, as leis naturais.   Como veremos, depois, no exemplo dado pelo autor, da liberdade do cão comparada ao cativeiro do leão.

No Discours sur l’Ensemble du Positivisme, editado como apresentação preliminar ao Système de Politique, escreveu o autor claramente sobre a liberdade, onde está a corajosa afirmação de ser  sua doutrina  e  ele próprio  o órgão único de defesa sistemática da liberdade :

    “Désormais le positivisme constitue réellement le seul organe systématique d’une véritable liberté d’exposition  et d’examen, que ne peuvent franchement proclamer des doctrines incapables de résister à une discussion approfondie, comme étrangères à toute démonstration décisive.” (Politique, I , 122)

As doutrinas “estrangeiras a toda demonstração” seriam as teses indemonstráveis absolutas do teísmo e da ontologia metafísica,  permanentes alvos de sua violenta oposição.  Seria, talvez, justificada pelo cuidado em manter a verificabilidade de sua conceituação, que leva Comte a colocar de lado com rigor essas doutrinas, incapazes de conduzir a previsões seguras, certas, ao mesmo tempo em que fogem à possibilidade de demonstração.
O autor expressa, então, sua posição em prol da liberdade, que somente uma doutrina que fosse demonstrável poderia defender.  Liberdade que, nas páginas seguintes, estuda em seus diversos aspectos.  Seria, de fato, interessante pesquisar a correlação natural, esperada, que possa existir entre a  filosofia absoluta e o conseqüente governo  absoluto.  Isso porque, quem pretende estar de posse do saber absoluto, por conseqüência poderá fazer, e certamente o fará, a imposição de sua doutrina coercitivamente, com a violência, por meio do regime político absoluto.   A proposta de Comte, relativista, seria de convencer, “filosoficamente”  pela persuasão, pelo consenso, sempre pelo livre assentimento, sob a condição necessária da liberdade de aceitação ou não da doutrina reformadora.  O filósofo apresenta, em razão de sua completa confiança no poder da liberdade individual, uma defesa da individualidade que chega a um aparente exagero, ou à pura demagogia.  Defesa do trabalhador e das liberdades feita tanto na doutrina abstrata, como em sua aplicação na ciência política, no regime republicano.   Onde um adversário, no Rio Grande do Sul, Assis Brasil, viu  uma “democracia exagerada”.[25]
Também refere-se Augusto Comte explicitamente à palavra liberdade quando trata do lema  “Liberdade e Ordem Pública”, de forma elogiosa.  Identifique-se seu estilo, enquanto diz, em relação à divisa por ele próprio proposta, de  “Ordem e Progresso”:


         “...    je doive ici me borner à indiquer sa filiation et son avénement.  Elle se rattache à la precedente, ainsi que celle-ci se liait à la première, par l’un des éléments de cette combinaison sociale, nécessairement binaire comme toute autre quelconque, même inorganique.  D’ailleurs, elle consacre aussi,  à sa manière, la notion commune aux deux autres,  puisque  tout  progrès  suppose  la  liberté.”   (Politique, I,380)

                            “...    devo aqui limitar-me a indicar sua filiação e seu aparecimento.  Ela se prende à precedente, como esta se ligava à primeira, por um dos elementos dessa combinação social, necessariamente binária  como  toda  outra  qualquer,  mesmo inorgânica.     Aliás, ela consagra também, a sua  maneira,  a  noção  comum  aos  dois  outros,  porque  todo  progresso  supõe  a  liberdade.”
A construção da frase compara a segunda divisa à que se referiu antes, e com outra anterior,  Liberté, Égalité.  Afirma que toda combinação é necessariamente binária, isso de passagem, e que mereceria uma explicação. Mas nos interessa de perto saber que para o autor implica na liberdade o conceito de progresso de seu lema “Ordem e Progresso”. Ou, de outra forma, implicaria em que o despotismo, sem liberdade, não constitui progresso.
Esse texto mostra novamente o estilo de leitura difícil, onde as idéias se escondem em sua apresentação condensada, imbricada cada frase com referências a outras, no mesmo período ou a outros períodos mais distantes. Mas está aí a preocupação clara em favor das plenas liberdades humanas.
O texto original do autor, mostrado acima, deve ser comparado com sua tradução para o inglês.  Notar em especial a como o tradutor, inteligentemente, para maior clareza,  alterou muito a frase,  embora perdendo a concisão  original:

   “I have now only to show its connection with the other mottoes of which we have been speaking and the probability of its adoption.  Each of them, like all combinations, whether in the moral or physical world, is composed of two elements; and the last has one of its elements in common with the second, as the second has in common with the first.        Moreover,  Liberty, the element common to the two first, is in reality contained in the third;  since all Progress implies  Liberty.”   (Polity, v. I, 306)

As alterações feitas pelo tradutor esclarecem o pensamento do autor, constituindo o que chamaríamos uma “chave” de decifração do texto original. Comparando as duas formas, admira-se a elegância do estilo original de Comte, apesar mesmo da profusão de pronomes, do excesso de adjetivação, com a criptografia resultante. 
Elegância porque o texto se apresenta esbelto, conciso, garboso.  Será oportuno avaliar se, de fato, o autor conseguiu   clareza, a precisão e a concisão  que pretenderia obter.[26]
Assim,  paradoxalmente, temos, no positivismo comtiano, uma teoria científica da liberdade, uma pregação da liberdade, mas que ficaria escondida, vendada, por muitas dificuldades semânticas e naturais resistências inerciais contra a revolucionária mudança positivadora das luzes da modernidade.
A leitura do texto comtiano sofre, assim, o pesado ônus de uma injusta criptografia da doutrina da liberdade.

Pode verificar-se como as palavras por vezes escondem as idéias, como no caso da noção clara de liberdade.  E até mesmo conceitos básicos, quando  “em liberdade”, “livre”, passa a ser escrito como “digno”.  No texto original, referindo-se à separação dos dois poderes, o poder material e o poder das  opiniões, lê-se:

   “Cette séparation systématique devient aussi la base nécessaire de la saine politique moderne sous un second aspect fondamental, comme autant indispensable à la digne activité personnelle qu’à la sage coopération sociale. (Politique, I,366)

O tradutor viu a liberdade onde ela não está claramente expressa, ao que parece, de maneira acertada :

     “But there is another aspect of the question of not less importance in sound polity.  Separation of temporal from spiritual power is as necessary for free individual  activity as for social co-operation.”  (Polity, I, 294)

A “separação” referida foi esclarecida na tradução.  É importante notar que “separar” nesse caso indica que o governo temporal, coercitivo, não imporá sua opinião, suas doutrinas, quer religiosas, quer científicas, pelo poder da força.  Indica que os formadores de opinião poderão exercer em plena liberdade suas funções de jornalistas, professores, sacerdotes, independentemente e sem os subsídios oficiais e dos correspondentes compromissos com os poderosos.

Na teoria que denominou de “teoria geral da religião” ou “teoria positiva da  unidade humana”,  Augusto Comte apresenta considerações que desafiam a leitura e a compreensão de qualquer pesquisador contemporâneo da sociologia, da psicologia e da política.  Isso porque a proposta aparece sob uma roupagem vocabular “religiosa”, que, para o comum dos estudiosos é abominada,  como sendo um teísmo ultrapassado pela ciência, com seus longos parágrafos, embora com períodos mais curtos, como se pode encontrar na  Politique, v.II, p.7 e seguintes.
Como teste de sua capacidade de leitura e compreensão da redação de Comte, sugiro que se leia e compreenda o importante texto seguinte, sobre a liberdade, no original, antes de continuar:

    “Afin de la mieux caractériser ( l’affection religieuse )   reprenons  un moment la disposition théorique qui prévalut plus ou moins jusqu’à l’époque très-récente où la biologie démontra suffisamment l’existence naturelle des affections bienveillantes.   L’unité morale ne pouvait alors résulter que d’un principe égoïste.  Or, j’ai assez prouvé déjà l’inaptitude spontanée d’un tel régulateur.  Le sentiment de la dépendance extérieure ne saurait y suppléer réellement.  Quelque profonde que puisse être cette croyance, elle inspire tout au plus une résignation forcée, si le dehors oppose une résistance évidemment insurmontable.   Mais cette triste situation morale diffère beaucoup d’une véritable discipline affective, qui doit toujours être libre pour devenir pleinement efficace.  Il est aisé de le sentir en comparant l’état moral d’un chien domestique  avec celui d’un  lion captif.   Quand une longue expérience inspire au second une passive résignation, l’unité morale n’existe point en lui:  il flotte sans cesse entre une lutte impuissante et une ignoble torpeur.   Au contraire, l’essor affectif du premier devient direct et continu aussitôt qu’il a pu subordonner ses penchants égoïstes à ses instincts sympathiques.  La comparaison se trouve encore plus décisive en opposant  l’esclave antique  au  prolétaire moderne.    Quoique tous deux, sous le rapport matériel, présentent à peu près la même existence personnelle, tant active que passive, la liberté de celui-ci le rend seul susceptible d’une véritable unité morale, en permettant l’essor de ses affections bienveillantes.   La plus dure condition de l’ancien esclavage devait consister, chez les belles âmes, à ne pouvoir jamais vivre réellement pour autrui, leur office étant toujours forcé, ou du moins supposé tel.  On sent aussi combien la conviction habituelle de l’assujettissement extérieur est loin de suffire à l’unité humaine, quoiqu’elle y soit indispensable à un certain degré.  Car, losque cette dépendance devient trop intense, elle empêche même la discipline affective qui tend à résulter d’un essor spontané des instintcts altruistes.  Le bonheur et la dignité  de tout être animé exigent donc le concours habituel d’une nécessité sentie et d’une libre sympathie.” (Politique,II,14,15; Polity, II,13,14)

O texto parece um estudo sobre o sentimento do amor divino, dirigido aos deuses, sobre as normas piedosas da religião.  Mas de fato, o autor expõe ali uma original  teoria da liberdade humana!    Sim, diga-se novamente, Augusto Comte teria exposto na sua sociologia  ---  teoria   da   liberdade!
Trata-se de uma  teoria  sociológica  da  liberdade.    Verifique-se, no entanto, no texto original se é a liberdade completa, democrática.  Ou se é  aquela liberdade para implantar o socialismo pela revolução e depois torturar e matar a liberdade.   Ou se será liberdade para todos,  não a liberdade para impor doutrinas pelas verbas públicas e pela força política, ou para tentar a modificação moral, dos costumes, pela violência policial, de modo que o resultado seja acabar com a coerência pessoal e com a liberdade individual.
Liberdade que é identificada, no texto comtiano, a partir das religiões desde a  mais remota antigüidade, tem sua conceituação analisada com rigor, depois  justificada em pormenor e assim, pelo raciocínio, louvada. 
Compare-se a aparente significação religiosa do texto original com a tentativa seguinte de uma tradução livre em linguagem “laicizada”, explicitada e comentada :

“Para caracterizar melhor o sentimento de coesão social, ou de unidade grupal, retomemos por um momento a explicação teórica que prevaleceu até uma época bem recente, ainda antes que a biologia tivesse demonstrado suficientemente que os sentimentos altruístas ou associativos fossem espontâneos e naturais.  Essa teoria ultrapassada afirmava que a unidade de comportamento ou coesão moral resultava sempre de um sentimento egoísta.  Ora, eu já provei suficientemente a incapacidade natural de tal regulador, a inoperância do sentimento pessoal do egoísmo, para congregar os indivíduos.  A  sensação da opressão pelo mundo exterior não poderá, na verdade, substituír o egoísmo nessa atuação.  Por mais profunda que possa ser a sensação opressora externa, ela inspira no máximo uma resignação forçada, caso as condições se oponham com uma resistência claramente invencível.  Mas essa triste situação psicológica difere muito de uma verdadeira  disciplina afetiva, dos sentimentos, que  deve ser sempre livre  para que possa ser plenamente eficaz.  Isso é fácil de sentir quando se compara o estado moral, do comportamento, de um cão doméstico em liberdade com o que acontece na sujeição de um leão cativo preso numa jaula..   Se uma longa experiência mostra ao leão que só lhe resta uma resignação passiva ao seu cativeiro, a coerência de conduta ou unidade moral não existirá mais para ele: seu comportamento oscilará sem parar, ora com uma luta impotente, ora com  um torpor ignóbil, estéril.  Ao contrário, o processo afetuoso, emocional, de convergência do cão se torna direto e continuado, imediato e permanente, logo que o animal consegue subordinar suas tendências egoístas aos sentimentos altruístas de simpatia, de amizade.   Essa verificação se mostra mais clara quando se compara o escravo da antigüidade com o trabalhador moderno.  Embora ambos, no aspecto de bens materiais, tenham aproximadamente as mesmas condições de vida pessoal, tanto ativa como passiva, a liberdade do trabalhador lhe garante a possibilidade de uma verdadeira unidade moral, que é a sua coerência de atitudes, o que lhe permite  cultivar os sentimentos de bondade, de associação.  A situação mais dura, mais desumana, para os indivíduos de melhores sentimentos, submetidos à escravidão antiga, devia ser a impossibilidade de viver  de forma voluntária em sociedade,  isto é, o fato da coerção impedir-lhe de viver altruisticamente,  associativamente, ou seja, de viver para outrem, em liberdade Isso decorre de serem suas tarefas sempre forçadas pela violência ou pelo menos pela constante ameaça de violência.   Percebe-se porque a consciência constante da opressão externa fica longe de ser suficiente para promover a  coerência, que é a harmonia ou a  unidade  mental e comportamental da vida humana, apesar de ser o contingenciamento moderado indispensável em grau tolerável.  Isso porque, a partir do momento em que essa dependência se torne muito intensa, ela de fato impede a disciplina afetiva ou emocional,  ou seja, a auto-correção voluntária, que só ocorre pela criação espontânea e em liberdade dos instintos da sociabilidade do altruísmo.  Para todo ser, animal ou homem, tanto a felicidade quanto a dignidade exigem, portanto, a combinação permanente de uma necessidade sentida e com a liberdade para a convergência, para a livre manifestação do altruísmo, para a simpatia só possível sem coerção.”

Verifique-se que até os animais, para Comte, exigem a liberdade, quando em estado de unidade moral, de coerência, de coesão.
A comparação entre o original em francês e essa tentativa de explicitação por idioma leigo em língua portuguesa, mostra como o texto comtiano, sem ser ambíguo, apresenta uma riqueza de significados postos como que numa forma condensada, algo desordenada, mas concisa, escondendo, subterraneamente, em modo “criptográfico”, importantes idéias e conceitos resultantes da  extensa e profunda revolução do pensamento da modernidade  proposta por Augusto Comte.  
Nos quatro tomos do “Système de Politique”, a comunicação é feita sob uma roupagem “religiosa”, plenamente justificada pelo pensador.  Mas essa forma redacional provoca o afastamento à sua leitura e leva à deturpação do texto comtiano tanto por parte dos revolucionários metafísicos, por serem eles sutilmente anti-religiosos, por vezes até abertamente ateístas, quanto também da parte dos religiosos, teístas, naturais inimigos das doutrinas comtianas relativistas, científicas e emancipadoras do pensar.  São dificuldades resultantes da  radical  revolução  filosófica  de  Comte,  para a regeneração da harmonia e coesão social na modernidade.   Com o emprego de um texto que conta, em adição, com a reação contrária dos beneficiários remanescentes, mesmo em nossos dias, dos privilégios inerentes ao regime político e mental da Idade Média, um regime há muito já extinto, mas ainda não totalmente substituído.
Por mais que tenhamos exposto a revolução comtiana do pensar, não poderemos atestar, aqui, sua validade.   Todas essas teses merecem uma severa verificação e meticulosa crítica.   Podem parecer belas essas propostas de Augusto Comte, mas podem ser irreais, enganosas.

2.2   THE  SERVICE  AFTER  DEATH


O  filósofo dramatiza  a   continuidade  verificada  na  cultura  humana acumulada através das gerações chamando-a de  “le  service  subjectif”,    a que  o  tradutor inglês  denominou  com  feliz  clareza  de 
                           “the  service   after   death”.
Essa expressão serve para mostrar com ênfase a continuidade das ações na cultura social dos humanos, vencendo o hiato da morte, na separação biológica entre as gerações sucessivas.   O que explicaria fatos como teria agido Aristóteles, muitos séculos depois, agido na medievalidade, introduzindo sua metafísica intelectualizada na doutrina da época.
Na sociologia abstrata, Augusto Comte, ao pesquisar a teoria da estática social, no volume II  do Système de Politique,  apresenta o estudo da  estrutura da sociedade, isto é, de seu arcabouço, de suas instituições,  a que chama de “a ordem humana”.    Não se deve esquecer que a sociologia é a fonte da  revolução  filosófica  comtiana :  a lei dos três estados é sua base, mas essa lei não é toda a sociologia, nem é, nessa sociologia, a lei única.
É com a teoria geral da unidade humana, a que Augusto Comte denomina de  “Teoria geral da Religião” que a sociologia estática se inicia. Assim, para ele, a religião está associada à idéia de unidade ou coerência mental e moral dos humanos, como sinônimos perfeitos.
Mas a leitura da sociologia comtiana apresenta, para o leitor contemporâneo, problemas adicionais, além das dificuldades de redação encontradas no Cours de Philosophie.   No Système de Politique o autor passa a empregar valores semanticamente modificados para as palavras usuais, o que resulta num vocabulário  alterado, ininteligível, de feição religioso-teísta para o leitor desavisado.  Mas esse caráter teísta é apenas aparente; na verdade, a sociologia de Comte se mantém científica, verificável, cartesianamente demonstrável.   Apenas o vocabulário se altera, de forma justificada.
Em primeiro lugar o filósofo elabora a teoria geral da unidade humana, seguida da teoria da propriedade material e do capital, da teoria da família, da linguagem, das funções sociais, da teoria da ação filosófica e finalmente da teoria dos limites de variação da estrutura social.
É em sua  teoria  da  unidade  humana  que Comte enfatiza a liberdade.   Ali estará, para o filósofo, a demonstração da importantíssima teoria da liberdade.   E até mesmo  santifica a liberdade  humana, como se lê no texto seguinte:

“Pour compléter l’appréciation sociale de la vraie synthèse, on doit remarquer son aptitude spontanée à rallier  sans  comprimer.  Car, la saine notion du Grand-Être consacre autant l’indépendence  que le concours, comme également nécessaire au service fondamental;  puisque  toutes les fonctions collectives exigent finalement des organes individuels.   Une sincère impulsion sociale ne méconnaît jamais la liberté personnelle que faute de lumière, et même d’extension.  Ce conflit résulte surtout d’une grossière ébauche, mentale et morale, de la synthèse altruiste, quand elle se borne à la solidarité, en négligeant la continuité.  Il faut donc s’inquiéter peu d’une telle aberration, directement contraire aux conceptions et aux sentiments qui caractérisent le mieux la religion systématique de l’Humanité.  Envers le vrai Grand-Être, le  service subjetif  domine de plus en plus le service objetif.  Or, la subjectivité suppose toujours des sources individuelles, que leur libre concours peut seul convertir en impulsions collectives.   Loin d’altérer l’indépendance, la religion positive la sanctifie et la développe, en lui offrant une noble destination.  Indispensable à la dignité personnelle, cette condition n’importe pas moins au service social, que paralyserait toute oppression.  Le vrai concours doit toujours être facultatif, sauf la juste appréciation des motifs qui détermineraient à le refuser.  En un mot, le régime altruiste suppose et produit la confiance, comme il exige et développe la responsabilité.  D’une autre part, il consacre directement toutes les vraies supériorités, naturelles ou acquises, en vouant toujours les forts au service des faibles.  Loin de disperser la puissance, spirituelle ou temporelle,  il la concentre systématiquement, pour la mieux adapter à son office social.  En appréciant le passé, il honore dignement les éminentes individualités dont chacune a tant influé sur l’ensemble des destinées humaines.  La religion positive inspire à tous les serviteurs du Grand-Être une sainte émulation  pour le représenter autant que possible.  Elle appelle la vénération universelle sur chaque personnalité vraiment digne.   Son avénement normal peut seul contenir aujourd’hui les tendances, aveugles ou vicieuses, que poussent à comprimer les inégalités réelles au lieu de les utiliser.  Un juste sentiment de la valeur individuelle doit habituellement seconder la moralité positive, en disposant à mieux combattre les impulsions vicieuses que altèreraint une force consacrée au Grand-Être.”   (Politique, II,73,74)

Poderemos saber se  ... “la condition indispensable de la liberté paralyserait l’oppresion”, ou se  ... “l’oppression paralyserait le service social”.  Compare-se com a versão inglesa, que por cima mostra como Augusto Comte se refere ao socialismo de seu tempo  sem nomeá-lo  no original :

“To complete our view of the social efficacy of the true Synthesis we must turn to its power to unite  without  coercing.  For a sound conception of the Great Being makes the independence no less sacred than the cooperation of the members: both are equally necessary to the essential service;  since the parts performed by an aggregate are impossible without individual organs.  It can only be an unintelligent, and even a narrow, view of social duty, which can ever lead an honest social reformer to undervalue personal liberty.  The supposed antagonism between individual liberty and social combination comes from a crude attempt to found an altruistic Unity, with only one mental and moral condition.    These  socialist  visionaries   thought only of the solidarity of living men, and forgot the  continuity  of ages.  We need apprehend little from this misconception which is directly contrary to the ideas and the feelings which characterise the systematic Religion of Humanity.  As regards the Great Being the subjective service    after death   constantly becomes more and more important, compared with objective service in life.  Now subjectivity invariably supposes individuals as its authors;  and their free cooperation alone can endue them with an aggregate influence.  Far from lowering the freedom of the individual, the Positive religion sanctifies and develops it afresh;  for it supplies it with a noble destination.  This freedom is a condition indispensable to personal dignity: it is in no less degree indispensable to every service of society, which any form of oppression would paralyse.  True cooperation ought always to be wholly voluntary;  allowance being made for the motives which cause it to be withheld.  In a word the alruist regimen supposes and produces the spirit of trust, as it exacts and increases the habit of responsiblility.  On the other hand it directly sanctions every real form of superiority, be it natural or be it acquired; for it devotes on system the strong to the service of the weak.  Far from breaking up and subdividing Power, whether spiritual or temporal, the Religion of Humanity habitually concentrates Power, to enable it better to fulfil its social funcion.  In its judgment on the Past, it gives the amplest honour to the illustrious characters, each of whom has done so much to influence the destinies of men.  The Positive Religion inspires all the servants of the Great Being with a sacred zeal to represent that Being as fully as possible.     It invokes the veneration of all towards every truly worthy individual.  The full acceptance of this Religion alone can check that spirit of blindness or of envy, which in our day would seek to crush out the real inequalities, which exist amongst men; instead of turning the inequalities to account.     A healthy sense of individual merit  should invariably sustain our Positive morality, and dispose us to combat all those miserable attempts to discredit the power of individuals  -  a power  for ever consecrated to the service of the  Great Being.”  (Polity,II,65,66)

O tradutor incluiu a expressão  “visionários socialistas” como o sujeito produtor do esboço grosseiro, tanto mental como moralmente, limitado à solidariedade,  mas deixando de lado a continuidade.  Explicitou também que solidariedade se refere à coesão social entre os vivos, e a continuidade à coesão social entre as gerações sucessivas na raça humana. Parece que acertadamente, deu o tradutor a chave do criptograma que encobria a identificação do  “esboço grosseiro”  do ou sistema socialista puramente material.  E tal esboço teria desprezado a liberdade individual,  numa visão política obscura, “unintelligent”, não inteligente, e mesmo “narrow”, estreita.
O  conceito de continuidade  aqui referido é de alta relevância na doutrina de Augusto Comte.  O serviço   “after death”  menosprezado ou desconhecido pelos pensadores materialistas, é a força da cultura humana, o suave mas imperioso poder do social sobre o indivíduo.  Note-se bem, que nada há de transcendental nesse  “depois da morte”, nada de ingenuidade mística.
Essa força, cada vez mais significativa, esse poder cada vez maior do passado, oferecido pela educação a cada pessoa humana, e aceito voluntária e continuadamente, no elo de ligação do presente, é uma conceituação das mais importantes da filosofia de Comte.   Sua filosofia deverá, decerto, ser identificada como a filosofia da cultura, a filosofia da liberdade pela cultura completa, afetiva, intelectual e de ação, sempre independente e soberana em relação aos poderosos, sem a coerção do poder político. .  Essa conceituação de extrema importância resulta no reconhecimento da realidade do social na vida humana, que hoje, nos poderia motivar a composição de uma paráfrase de conhecida citação hegeliana ligada à razão e à realidade: 

                     só  o  social  é  real  e  só  é  real  o  social

E fica para a nossa reflexão questionar como o  “after death”  é real, como ele pode dominar a ação política, pode dominar as emoções e a razão, mesmo sem afirmar a continuidade da vida objetiva depois da morte.   Ou se é apenas um filosofar inútil de um filósofo tardiamente romântico, fanático pela liberdade, mas criptográfica e erroneamente conhecido como autoritário e liberticida.
Será, decerto, de grande interesse, verificar se a doutrina comtiana, pretendendo o progresso sem retorno ao passado, mas dizendo-se venerante a ele, conseguiria propor uma nova filosofia realizável, na forma de uma gnosiologia à moda de religião, mas sujeita à dúvida de Descartes.
Deve-se notar como o tradutor britânico explicitou bem outras expressões que têm significações implicadas no texto comtiano.  Importante aqui é ver no texto, novamente, a pregação clara da  ampla liberdade individual,  com a valorização da desigualdade e do mérito de cada um.
Identifica-se na tradução inglesa uma forma do que poderia ser a chave da criptografia no texto de Augusto Comte, porque o tradutor explicita, desenvolve, esclarece, muitos dos conceitos implícitos no texto original, mesmo mantendo o fraseado “religioso”.
E com essa explicitação, confirma a existência de expressões criptográficas não-intencionais usadas pelo autor.

Do mais alto valor seria notar se, de fato, a sociologia de Comte demonstraria,  por meio dessa teoria geral da liberdade humana,  que

    a   liberdade   é   indispensável   e   inevitável   na   modernidade

E também encontraria o pensador essa  liberdade,  em diferentes graus,  em todos os sistemas religiosos  do passado, por mais primitivos que fossem.  O que, de fato, pode verificar-se no apogeu de cada civilização,  excetados os seus períodos de crise,  como em suas fases de formação ou de declínio.
A demonstração de uma   “teoria da liberdade”, tal como indicada aqui, terá uma consistência admissível como postulação científica em sociologia ?  Ou será apenas um  wishful thinking”, um pensamento apenas de intenção, destituido de valor lógico ?   O questionamento não cabe aqui :  apenas indicamos que existe esse texto, com suas peculiaridades de comunicação, tanto de emissão, como de recepção.   Texto que, sem dúvida coloca um desafio aos sociólogos e políticos que desconsideram o saber filosófico da lógica abstrata, dando valor apenas à  ação sem reflexão  ou apenas a pesquisas empíricas na concretude.  Daqueles que desconhecem, se não invertem ou menosprezam 
o   supremo  valor  da  filosofia    e  o     poder  eterno  da  religião
            tidos como lixo ou como ópio do povo, sem levar em conta uma gnosiologia, isto é, uma doutrina filosófica indispensável para a coesão social dos humanos.   Desconhecer  o valor teórico da liberdade e da religião, levará, de fato, a decretar a própria impotência em defendê-las, e será o mesmo que traçar uma rota que leva diretamente ao totalitarismo, ostensivo ou disfarçado.
O que estamos lendo faz parte da sociologia abstrata, que está elaborada nos três primeiros volumes do Système de Politique.   A aplicação prática dessa sociologia, no que se chama hoje de  CIÊNCIA  POLÍTICA,  será encontrada em seu quarto volume.

Deve-se recordar sempre que não temos, neste trabalho, a pretensão de julgar como errônea ou como acertada a teoria da religião de Comte.  Nem de avaliar essa proposta, nem alguma das numerosas teses do filósofo, de seus seguidores ou de seus oponentes.     Nosso objetivo permanente aqui é pesquisar o ocultamento da obra do filósofo, das formas que essas deturpações assumem, de suas causas, para remover os obstáculos reais ou imaginários inerentes ou adquiridos por seu texto.    Somos obrigados, por falta de recursos, a deixar aos cuidados de outrem, mais aquinhoados para ofício tão complexo, a ocasião e a tarefa de defesa ou de contestação da doutrina comtiana.

A preservação da Grécia, como o lar do livre pensamento, é mostrada como notável progresso na evolução do ocidente.   Na interpretação de Comte essa libertação se deve ao predomínio, nesse politeísmo, dos guerreiros sobre a casta sacerdotal do regime teocrático, o regime mais estável da civilização humana.   É o ponto histórico que marca o início do processo demolidor da doutrina do teísmo, com a introdução sutil, mas contínua, da libertação do pensar então preso ao mito personalizado dos deuses, por meio das entidades da metafísica.  No caso grego, as condições geográficas impediam a atividade da guerra de conquista:

  “cette activité” ( a  guerra) “détermine implicitement une précieuse réaction mentale, d’où dépendit  la principale préparation de l’esprit occidental  d’après la grande élaboration grecque.  Ayant heureusement brisé le joug théocratique, le principe militaire, contenu par l’ensemble de la situation, pousse alors toutes les hautes intelligences vers la culture spéculative, d’abord esthétique, puis scientifique, et enfin philosophique.  Il ne conserve d’activité essentielle que celle qu’exige la digne préservation de ce libre foyer théorique contre l’invasion du théocratisme oriental.  Mais, en secondant les nobles penseurs d’où dépendait alors notre essor, ce polythéisme intellectuel détermine finalement une profonde dégradation dans l’ensemble de la population correspondante, où prévaut alors le genre d’existence qui convient le moins notre nature. (Politique, II,92)

A fecundidade e a confusão se mostram no texto: estabelece a filiação do pensamento grego a razões militares e seu contingenciamento pelo relevo geográfico. Pretende explicar a dedicação desse povo preponderantemente à atividade intelectual.  
E mostra três fases distintas de desenvolvimento departamentado da atividade mental grega, em seqüência, primeiro com um surto poético,  depois pela pesquisa filosófica, e enfim com uma fase científica.  Qualifica  essa dedicação ao próprio uso da razão, como a menos conveniente para os humanos,  o que se poderia tornar estranho na pena de um pensador.
Nada indica ser Comte um  puro  idólatra da razãoconsiderando a própria razão menos conveniente à natureza humana.[27]
Neste caso, interessa-nos verificar a aprovação pelo filósofo da defesa da liberdade dos gregos, para verificar se esse comportamento estará em harmonia com o sentido geral da filosofia comtiana em favor da liberdade e contra o autoritarismo. 
A pesquisa que o autor pretende fazer da evolução social torna-se uma grande dificuldade: exige do leitor um extenso e profundo conhecimento da história, aliado a grande perspicácia de análise e a uma indispensável emancipação de preconceitos religiosos e metafísicos.   Com sua interpretação histórica Comte quereria estabelecer uma filosofia do progresso e uma sociologia, como sendo uma ciência de rigor, na pretensão de prever com certeza e de dirigir com firmeza a  ação política.
Essa escrituração secreta procurada na história parece estar codificada nos anais de acontecimentos singulares e esparsos no tempo,  até então tidos esses registros, postos cronologicamente, como a única história possível.
Comte possui sempre, ou pretende ter, a chave para sua decifração “inalterável” ou até  “irrevogável”  desses anais.   Quer seja essa ambiciosa pretensão errônea, quer seja ela de fato uma verdadeira competência, logo ofende a inteligência do leitor, o seu desconforto aumentando de forma insuportável quando ele percebe que jamais notou ou mesmo desconhece completamente os fatos mais simples usados no raciocínio do filósofo.  Fatos apresentados pelo autor de forma incompleta ou implícita, que tornam a comunicação do pensamento criptográfica.
Esse mal estar ocorre, por exemplo, quando o filósofo se refere ao rei que perdeu uma guerra por não saber de quantos soldados dispunha no campo de batalha.    O leitor fica sem saber quem foi esse importante rei.   Seu nome não é dado.[28]

Mas o abrangente resultado dessa leitura multidisciplinar de Comte nunca foi proposta como emanada de um poder metafísico.  Essa obra de profeta científico não se constituiria numa intuição arbitrária, de propriedade pessoal, como um comtismo particular.   A proposta se dispõe com ousadia a enfrentar a dúvida cartesiana, ficando, assim, sujeita a toda contestação possível.
Outras passagens dos textos de Augusto Comte, em grande quantidade, atestam a forma como o filósofo institui a mais ampla liberdade como sistema  de maneira em sua filosofia e em sua doutrina política.  Decerto, desde que se possa fazer sua leitura original e se consiga contornar as criptografias próprias ou postiças ao texto comtiano.[29]

2.3     A DITADURA


O conceito de ditadura em Augusto Comte é o mais enganoso.
Ditadura, no texto comtiano, quando entendido como tirania, como regime de força, sem liberdade, é o mais freqüente dos erros, perdendo apenas para a ocorrência da falsa propensão anti-liberal atribuída ao filósofo.
Comte escolheu a palavra ditadura para significar um regime presidencialista.  Tal regime seria claramente não parlamentar, e, embora monocrático, sua sucessão seria feita fora da hereditariedade familiar, por processos que hoje denominamos de democráticos.
Para infelicidade, mesmo em sua época, a palavra ditadura já despertava viva antipatia por estar relacionada ao despotismo e a regimes de exceção.  Em nossos dias, após diversas desastrosas ditaduras militares autoritárias, o nome tornou-se ainda mais ligado à tirania extremada, sempre acompanhada da supressão completa das liberdades.
Por sua repercussão ativa, a palavra  ditadura  no texto comtiano é
              a  mais  importante  armadilha  semântica
                         capaz de enganar a todos os seus leitores, com raríssimas exceções.
Todos os estudiosos que empregam hoje a mesma palavra inconveniente ---  ditadura  - o fazem com a significação de   autoritarismo e de tirania violenta.   Simplesmente porque esse é o valor semântico dessa nefanda palavra, aceito, em nossos dias, por todas as pessoas.
A exceção dá-se apenas entre alguns adeptos da doutrina de Comte, que empregam a palavra ditadura candidamente, como se fosse a mais bela da língua portuguesa.  E essa malfadada palavra é mostrada valentemente como se constituísse num valioso troféu de originalidade da ciência política de Comte.   Mas  na ingênua crença  de que, para todos os leitores e ouvintes, ditadura seja  um sinônimo da mais ampla liberdade...
A leitura errônea de um autoritarismo em Comte, por resultar mais da ausência de declaração nominal do termo  “liberdade”, torna-se mais fácil de explicar e de corrigir.   Mas essa leitura, sem a liberdade bem expressa, em conjunto com a afirmação de clara proposta de ditadura, torna bem definida uma falsa tirania radical, um autoritarismo inexistente no texto comtiano.  Embora totalitarismo muito real, bem ligível, mas  apenas na aparência. 
É a grande armadilha da criptografia da ditadura.

Esse engano de leitura pode deixar mal a competência do pesquisador, ao passo que o filósofo liberal, considerado   fanaticamente liberal,  que é Augusto Comte, não precisa de defesa.   Seu texto está pronto e acabado há muitos anos.   Mas nesta dissertação não cabe provar o liberalismo de Comte.  Essa virtude do pensador está em debate.
Assim se construiu uma forma de criptografia em todos os textos de Comte.  Mas não apenas dessa maneira, como já temos visto.

Na filosofia da história proposta por Augusto Comte é que se vai encontrar a gênese da palavra “ditador”.  E exatamente para indicar a legitimação do poder político fora de sua transmissão primitiva no regime de castas da teocracia, pelo nascimento, como direito divino, absoluto, dos reis.  Isso, na visão de Comte, ocorreu ao assumir Júlio César o poder em Roma, vencendo a tradição aristocrática do Senado.
O autor prefere o nome de ditador para caracterizar o modo não-hereditário de transmissão do poder, fosse por eleição, fosse por designação do antecessor, tendo em vista as necessidades sociais do momento.  Essa forma de passagem da força política foi chamada por Comte de  “sociocrática”, nome a ser comparado com nome do antigo modo ‘teocrático”.  Sociocrático tem uma significação similar à de socialista, parecendo tornar mais claro tratar-se de um governo pelo bem social.
Portanto, paradoxalmente, o título de ditador indicaria uma nova prática de sucessão política referida ao mérito.   
Mas Augusto Comte enfatiza que a escolha dos ditadores romanos era feita essencialmente por meios eletivos, na forma como modernamente é desejado!
No texto do autor:

“La constituition  impériale doit être soigneusement distinguée de celle qui précéda le régime aristocratique, malgré les efforts intéressés du parti patricien pour les confondre en exagérant leurs ressemblances apparentes.  Au fond, le chef suprême s’y trouvait exactement qualifié par le titre de dictateur perpétuel, qui lui fut d’abord assigné, puisque son autorité consistait surtout dans la permanence de l’ascendant exceptionnel attribué, pendant les crises républicaines, au magistrat ainsi désigné.  Le besoin de se rattacher spécialement à l’armée fit bientôt prévaloir un autre nom; mais celui-ci, souvent usité jadis comme récompense militaire, n’indiquait pas davantage ume analogie réelle avec la royauté primitive.  Jamais l’empire ne put devenir vraiment héréditaire:  il resta toujours essentiellement électif, sauf quand le chef inspirait assez de confiance pour qu’on lui laissât le choix de son successeur, quelquefois étranger à sa famille.  De fréquentes catastrophes achevèrent d’ailleurs de prouver combien les nouveaux maîtres de Rome différaient réelement de ses anciens rois”. (Politique, III,p.390)

Conforme o estilo do autor, cabe sempre explicitar sua construção:  essa maneira de escrever supõe que o leitor saiba o que havia antes da constituição aristocrática.  O “outro nome” referido depois, não está expresso.
Vejam-se as modificações feitas na tradução inglesa:

     “The constitution of the Empire must be carefully distinguished from that of the Monarchy which preceded the aristocratic regime, in spite of the interested efforts of the party of the nobility to confound them by exaggerating their apparent points of similarity.  The title of  permanent Dictator,  the first that was assigned to the chief of the state, is the one which most exactly defines his office.  For it was, in the main, but a permanent form of the exceptional supremacy conferred, in times of republican crisis, on the magistrate known by that name.  The need of a special connection with the army soon led to the adoption of another title;   (Title of Imperator, posto em nota de margem na página),    but this, already familiar as a reward for success in the field, did not present any more real analogy to the early Kingship than the title of Dictator.  The Empire never succeeded in becoming really hereditary; it always continued to rest on an essentially elective basis, save when the character of the ruler inspired such confidence that he was entrusted with the choice of a successor, who was often drawn from ouside his own family.  Moreover repeated catastrophes furnished conclusive proof of the substantial difference between the new rulers of Rome and her ancient Kings.  (Polity, III,329)

A tradução refere-se claramente à monarquia, que precedeu o regime aristocrático.   Em outro local Comte faz notar que sempre a transição da teocracia, em que o poder está com o sacerdócio, para o politeísmo militar, onde os guerreiros prevalecem, é feita pelos reis.   Mas a monarquia logo desaparece, por se mostrar inadequada ao desenvolvimento da atividade coletiva da guerra.  Só depois da monarquia é que o regime do politeísmo militar se converte, na Grécia, numa democracia, e em Roma, numa aristocracia.  Mas tanto a realeza, como a democracia e a aristocracia se apresentam como revolucionárias, comparadas com o regime da teocracia. (Politique, III, 224)   
O “outro nome” indicado nos textos é o título de imperador, que em inglês aparece na margem direita do texto, fora do alinhamento, e na mesma linha.  Dessa forma, o tradutor apresenta a “chave” para a criptografia do texto original.
O emprego do termo  “ditadura”, portanto, deveria dar a entender um governo não hereditário, como é o presidencialismo, com uma sucessão democrática, por  eleição popular ou por indicação consensual.  O que se chamaria hoje, de um regime  ... “democrático”.   Mas não foi nessa direção que caminhou a evolução semântica do termo ditadura.  Levou, isso sim, à já identificada confusão semântica, a grande criptografia da ditadura.

Com o fim da Idade Média, a análise histórica feita por Augusto Comte vê a concentração do poder como resultante do declínio do feudalismo e de sua doutrina.  O que promove a usurpação pelo poder material de funções do governo espiritual enfraquecido, em decorrência da perda de liderança do papado. 
Instala-se, segundo o filósofo, então, a crise da modernidade, a partir do fim século XIII, e a condição social se torna revolucionária, acabando a comunidade de pensamento, estabelecida então em plena liberdade pela filosofia medieval.
Os governos modernos, portanto, se mantêm  pela força, e não mais pelo prestígio de uma doutrina comum aos povos, pelo consenso.  A esse tipo de governo, considerado como anômalo  por Comte, feito sem consenso, dá o autor também o nome de ditadura.    Ditadura que pode ser monárquica, como no continente europeu ou pode ser parlamentar. O parlamentarismo ocorre com o predomínio da nobreza sobre a realeza, ou, em outros termos, do poder local sobre o poder central, como na Inglaterra e em Veneza.
Há, portanto, duas formas de ditadura moderna, no vocabulário de Comte: a ditadura monárquica e a ditadura parlamentar.   Implica esse modo de expressar a noção de governo “provisório”, ou de exceção, numa fase anormal, sem consenso de opiniões.   Seria uma transição de saída da civilização feudal e entrada em outra civilização, a modernidade, que se estaria formando em nossos dias de revolução.
Por isso, para Augusto Comte, os governos da modernidade são “ditaduras”, todos eles.  Ditaduras que podem ser tirânicas, sem liberdades.  Ou, pelo contrário, podem ser “ditaduras liberais”,  como exemplificou o regime político do incrédulo imperador Frederico II, o Grande, da Prússia.   Seu governo “democrático”,  manteve as mais amplas liberdades, o que permitiu a Kant sua  Kritik der reinen theoretischen Vernunft”, de 1781, de tom pouco piedoso e pouco metafísico.   Uma política que se modificaria após a morte de Frederico II, em 1786.  Seu sucessor, Frederico Guilherme, não foi exatamente um imperador “democrata”, emitindo decreto real em que proibia a Kant abordar oralmente e por escrito questões religiosas, lembrando sua dependência ao salário que o pensador recebia do governo político.[30]
Na linguagem  de Comte ele diria que Frederico II foi, de fato, um  “ditador” que realizou os votos de Hobbes, de conciliação do poder material com a liberdade espiritual.
É dessa maneira que se forma a mensagem enigmática de Augusto Comte, como a contida na expressão de uma    “ditadura com liberdade de expressão”     com  aparência de  uma perfeita contradição em termos.
Como numa arrematada  criptografia da ditadura.

2.4     A CRIPTOGRAFIA DA RELIGIÃO


Outra dificuldade semântica do texto comtiano tornar-se-ia mais sentida na segunda fase da vida do filósofo.  A partir da publicação do Système de Politique Positive Augusto Comte, em plena elaboração da sua original sociologia, passou a empregar, como já vimos, um vocabulário religioso.  Essa alteração vocabular esconde, ou dificulta em muito, a leitura da importante elaboração da nova ciência da sociologia.  Da mesma forma como praticamente impede reconhecer sob o nome de “Moral Teórica” a nova e original psicologia científica comtiana.  Essa seria a  sétima ciência  da escala enciclopédica na classificação das disciplinas abstratas, só identificada a partir do volume II da Politique Positive. Portanto, essa ocultação do pensamento do filósofo, essa criptografia causada pela alteração semântica do conceito de religião, merece uma menção especial.   Essa criptografia terá validade pelo restante da vida e da obra do pensador.  
São comuns as afirmações de comentaristas de Augusto Comte referindo-se à escala classificatória das ciências abstratas como constando de apenas 6 ciências.  Todos eles resultam do desconhecimento da obra principal do pensador, estando baseados somente no Cours de Philosophie, se é que o leram diretamente.  Mais provável é que estejam apenas compilando informações incompletas, encontradas em enciclopédias, em resumos e  em textos de vulgarização mal feitos.  A razão dessa desinformação decorre do fato de que a identificação e inclusão da psicologia como a sétima ciência da classificação comtiana se deu tardiamente no segundo volume do Système de Politique. E, para uma dificuldade maior, o próprio filósofo negou que uma coisa como uma psicologia existisse.   Mas ele se referia a uma psicologia metafísica, e seu método de introspecção, única que havia em seu tempo.   Mas, além desse mal-entendido, a nova psicologia positiva foi denominada pelo nome “ambíguo” de Moral, de Moral Teórica(Política, II,54).[31]

Ao induzir ou “intuir” do conjunto da história uma teoria explicativa da  unidade humana, que corresponde à coesão social dos grupos,  pretendeu o autor ver essa unidade espontaneamente realizada pela religião, presente em todas as civilizações, embora sob formas e deuses diversos.
 Para o filósofo, a função constante da religião se manteria sempre a mesma, variando apenas os meios empregados. Seria mesmo de estranhar que uma sociologia de rigor pudesse explicar os eventos da sociedade sem identificar e estudar ao pormenor a manifestação social da fé religiosa.  Sua grande importância exige uma pesquisa equilibrada e imparcial, de difícil realização, notando Comte que cada forma religiosa tem mais adversários do que adeptos. 
Quando chegou a supor que descobrira a função integradora da religião em todos os aspectos da vida humana, passou Augusto Comte a empregar permanentemente a  nomenclatura religiosa  em semântica diversa da vulgarizada pelo uso, naturalmente ligada à doutrina judaico-cristã bem como às religiões mais antigas.  Essa alteração do sentido de palavras comuns com outra significação se soma ao estilo difícil do autor, causando as maiores dificuldades na sua leitura e na sua crítica.
São virtuais armadilhas postas no texto do filósofo, na linguagem normatizada ao longo da segunda fase de sua vida.    Esses engodos, esses logros, alçapões de caráter semântico, fazem suas vítimas entre os pesquisadores mais apressados, em especial aqueles que se apoiam em dicionários, enciclopédias, na bibliografia secundária e na opinião de outros autores.  São também comumente encontradas vítimas entre os compiladores descuidados, perdidos numa falsa hermenêutica feita sobre sucessivas cópias infiéis, sem verificação a ser feita a partir do texto original.
Adicionalmente, escolheu o autor o nome de ditadura, --- “ditadura republicana” --- nesse caso, para um regime  político que é um presidencialismo com liberdades   “exageradas”,  quando, mesmo em sua época, ditadura já era um regime de exceção às leis, contando, portanto, com grande antipatia.   O presidencialismo é colocado por Comte como provisório, já que, para o futuro, imaginou que o poder e a riqueza se reuniriam, num só governo, ou seja, que o governo político seria exercido pelo patriciado, pelos empresários, sob a orientação dos novos filósofos, sob a fiscalização do poder do número do proletariado. 
Mas esses problemas na comunicação em Comte não resultam da displicência na escolha das palavras a serem sistematicamente usadas: --- pelo contrário, nota-se sempre o cuidado com que o filósofo analisa o significado e a etimologia dos termos.  Essa deformação semântica  toma a forma de um sutil código cifrado, já que realiza uma ocultação do significado a comunicar, com o grave inconveniente de não alertar o leitor, que pensa conhecer bem as palavras apresentadas.   Toma o texto, dessa forma, um caráter criptográfico.
Brunetière, um bom católico, diz que, apesar dessa dificuldade, Augusto Comte,

“ ... dans le domaine da  l’art  comme dans le domaine de la science et à qui les dilettantes peuvent bien reprocher   ‘d’avoir mal écrit’,   mais que la lourdeur de son style n’empêche pas d’être, avec  Descartes, dans l’histoire de la pensée philosophique, le plus grand nom dont nous puissions, et à bon droit, nous enorgueillir.” (Brunetière,1905,p.4)

O famoso crítico literário francês coloca, assim, Augusto Comte ao lado de Descartes, como um dos maiores nomes franceses na história da filosofia.  Mesmo apesar de seu estilo pesado.


No caso da palavra  “coração”, para indicar a esfera dos sentimentos, em nossos dias já identificada como tendo sede no aparelho cerebral, Comte cuidadosamente observa que:

“ notre perferfectionnement se rapporte surtout aux deux qualités morales qui importent le plus à la vie réelle, pour l’impulsion affective et la décision active, c’est-à-dire la tendresse et l’énergie, comme l’indique, dans toutes nos langues occidentales, l’hereuse ambiguïté du mot  coeur chez les deux sexes.”  (Politique,I-108)

Escolhe, portanto a palavra  “coração”  por sua  ambigüidade,  já que ela significa para as mulheres a ternura e para os  homens a energia. No caso  essa ambigüidade seria desejada pelo autor.
Eis aí, em Comte, a muito consciente  criptografia  da  ambigüidade.

A confusão aparente de significados é vista por Comte como uma indicação importante da percepção filosófica admirável do bom-senso popular, e não apenas um engano ou falha acidental.  Essa observação é feita pelo autor ao comentar os dois sentidos da palavra necessário, como inevitável e indispensável, quando propõe a composição de um dicionário de “équivoques”, como uma obra inteiramente nova sobre a filosofia da linguagem.  (Cours, IV, 491,492,nota I)[32]
As ambigüidades, que se atribuem desdenhosamente à penúria popular, atestam  ligações  profundas entre  os  conceitos,  felizmente identificados pelo bom senso comum, muitos séculos  antes  que o estudo sistemático consiga fazê-lo.  Estariam nesse caso outras ambigüidades verdadeiramente notáveis, como as das palavras   juste,  ordre,  propriété,  humanité,  peuple. (Politique, I,57  e  II,259) 
A forma de redação do filósofo, sempre encadeada com o texto anterior e com o que se segue, torna as citações deformadas e muitas incompreensões resultam da  leitura segmentada  do texto comtiano.[33]

Na teoria da unidade humana pesquisa o filósofo, portanto, no conceito abstrato de  religião  os seus meios e sua destinação principal.
Na proposição de uma  “teoria positiva da unidade humana”, --- leia-se teoria da coesão social ou, o que seria o mesmo, teoria da religião, --- estuda de início o significado da palavra.  Escreve então;

“ Avant tout, je dois ici dissiper le vague et l’incertitude que présente encore la signification générale du mot religion.  Les meilleurs esprits y confondent presque toujours le  but essentiel  avec des  moyens temporaires.   On n’a pas même fixé la destination principale, alternativement rapportée au sentiment et à l’intelligence.  En outre, la   pluralité   souvent attribuée à ce terme indique assez que son sens fondamental ne fut jamais saisi nettement.” (Politique, II-p.8)

Nesse texto está a proposição do estudo da palavra  “religião” de forma diversa do uso vulgar.  O estudo sistemático indicaria outro significado, que o autor procura explicitar em seguida.     A partir daí  ele vai empregar o termo como sendo um sistema filosófico ou  “dogma”  implicado no culto de uma  entidade superior, estabelecendo a normatização para a práxis, em regras sempre chamadas de “regime”.    Segundo Comte, o resultado desse sistema, ao longo da história, sob todas as suas variadas formas e deuses diversos, sempre foi o de realizar a coerência dos humanos em duas esferas: no âmbito individual, dando a unidade à mente pessoal independente e a nível social, congregando a coletividade com uma doutrina comum, sem o que não haveria a convergência em liberdade dos esforços do grupo..  A etimologia da palavra corresponde, então ao destino da religiãoligar  e  re-ligar
Essa verificação só pode ser percebida quando a análise é feita  na religião dos outros,  uma vez que cada crente verá em sua própria fé a verdade absoluta, a sua amada ou temida divindade será sempre o destino de sua vida, jamais a  forma  de operacionalizar uma função sociológica ! ...  Função, ou operação a ser jamais reconhecida sem uma emancipação do estudioso de seu próprio teísmo.
Mas a proposta de Augusto Comte é revolucionária: - no lugar das doutrinas míticas até hoje registradas como sistemas de religião, pretende colocar uma doutrina adequada à modernidade, sujeita ao critério da dúvida e da demonstração cartesiana, destinada a satisfazer a necessidade lógica e à previsão dos acontecimentos.
Com essa mudança fundamental , a palavra  religião  assume outra significação, sem conotação ontológico-metafísica nem teísta,  que o filósofo curiosamente pretende que seja  isenta de misticismo.   Pelo menos de um misticismo ingênuo, embora plena de um espiritualismo místico consciente, que. seria melhor definido, talvez, como um espiritualismo puramente “artístico”.   Herdeiro da longa e respeitável prática mística que enche todo o passado humano.
Ao analisar o sistema religioso, mantém o filósofo a terminologia vulgar, que se ajusta perfeitamente à nova forma da fé.   Apesar de palavras como culto, dogma e regime, como partes da religião referentes respectivamente ao sentimento, à inteligência e à ação, passem a ter seu significado muito alterado, em razão dessa nova teoria da unidade social humana, dessa nova filosofia da religião. 
Assim se explica essa  homonímia  de  semântica  diversa,  resultante do respeito mesmo aos nomes sempre usados no estudo religioso, evitando a criação de novos termos tidos como desnecessários.  E também oferece a razão porque certos pesquisadores entenderam que fosse o sistema comtiano mera cópia caricatural do catolicismo medieval.  E que fosse até mesmo um retorno à medievalidade, até mesmo com a volta do autoritarismo cruel da Inquisição, método só empregado pelo catolicismo em declínio, incapaz de conter o fim de seu prestígio moral.   A ilusão se torna completa, já que para quem conhece e reconhece apenas  uma das formas  religiosas, isto é, a sua própria doutrina.   O retorno à religião só poderia ser de volta a esse credo particular, para ele próprio o único existente e verdadeiro, e para todo o sempre.[34]
Por exemplo, a palavra culto, relativa à adoração dos deuses, com aperfeiçoamento da afetividade. Com origem no medo, na ambição e pelo amor, passaria, no sistema pretendido por  Comte, a dirigir-se ao ser social, à humanidade e a seus representantes mais importantes, seja na vida pessoal e doméstica, na ação cívica e na cultura universal.  Supunha o pensador que seria a unidade ou coesão feita em relação ao novo ser superior, a sociedade, como um  “nouveau dieu”.  Um deus que, para ele, teria sido sempre o beneficiário da disciplina religiosa em todos os tempos. Embora a adoração e o estudo filosófico fosse dirigido com sincero devotamento a outros entes míticos.
Esse é outro aspecto sério que parece interferir, de forma muito intensa, na leitura do texto comtiano.   A revolução filosófica de Augusto conflita diretamente com as crenças teístas, tanto quanto contesta o idealismo ontológico, seja deísta, seja ateu.   
A famosa lei dos três estados não pode ser aceita, a não ser que fosse comprendida a teogonia nela contida por meio da observação histórica.  Nessa teogonia revolucionária os deuses passariam a ser criados espontaneamente pelos humanos, e não os humanos, pelo contrário, que teriam sido criados pelos deuses.  Mas esse processo necessário da divina criação seguiria uma perfeita racionalidade, isenta de fraude e plena de sinceridade, tanto da parte das elites religiosas mais primitivas, como por parte de seus mais humildes seguidores.  Os diversos deuses, teriam sido criados espontaneamente pelas diversas e sucessivas civilizações, até chegar ao reconhecimento do poder superior do ente social, da coletividade dos seres convergentes, como centro teleológico da existência da raça humana --- o novo poder superior, também cheio de bondade,  para os novos tempos da modernidade: “o nouveau dieu” ---  o social.
Que, afinal, seria a causa final da revolução filosófica proposta pela gnosiologia comtiana.  Mas uma causa final relativa, jamais revelada, jamais absoluta.  
Essa teodicéia comtiana empírica, com as suas dificuldades lógicas e semânticas, sob a reação oposta pelos crentes em outros deuses,  e em outros entes,  é que nos conduz a reconhecer a dificuldade em ler e compreender a existência real do novo poder superior.
É sem dúvida  paradoxal!    A própria ciência neutra, fria, tida como infalível, pelo texto de Comte, parece aquecer-se no calor eterno da teoria da religião e  ---   pretende nos convencer do poder de um   Novo Deus!
Assim reconhecemos a forma de criptografia do  Nouveau Dieu.

Na identificação modificada da ontologia metafísica ela é colocada por Comte como  “ersatz”  do teísmo, isto é, uma forma de substituição que nega a explicação por meio da vontade de uma divindade humanizada para explicar, através da ação de abstrações em graus variáveis, vagamente personalizadas, por entes como a  “sábia natureza”, as qualidades reais, as formas substanciais, a energia cósmica, a história, a força vital.  Essa causalidade diferente, por vezes de aparência rigorosa e de falsa ciência, sutilmente desloca, enfraquece e tende a substituir  -- e a destruir -- a vontade divina como a única causalidade.  Seria a doutrina dos revolucionários, a ideologia da destruição.  Tem um caráter vago, ora mais para o mágico ou divino, ora mais parecida com a ciência.
O panteísmo de Espinosa, que parece alargar o poder de Deus, acaba rompendo a síntese medieval, isto é, provoca a rutura do sistema unitário harmônico da doutrina antiga, até chegar, imperceptivelmente, ao ateísmo, por meio do caráter vago das definições inverificáveis.  E Espinosa, para evitar a morte na fogueira, teria que morar longe de Roma, que logo percebeu o perigo de suas idéias, da sua  metafísica bem raciocinada.
É esse conceito de metafísica que Comte adota.  E não a metafísica definida como parte da especulação com o nome de filosofia primeira, posta como estudo das causas primeiras e finais, dentro do sistema teológico de filosofia.
A desumanização da causalidade teísta original tornaria, para Comte, os entes metafísicos uma  causalidade cega ou  não-inteligente, na falta de uma razão, a mesma razão inteligente explicativa  que muito assiste sempre aos deuses, dando-lhes o poder de aglutinar em torno deles todo o grupo social, em harmonia teleológica, como verificado ao longo da história humana.  O que o filósofo denomina de poder orgânico, de criar a coesão social,  um conceito fundamental em sociologia.
Ao  pesquisar a evolução intelectual da Grécia antiga, diz Augusto Comte:

       “l’essor de la prévision rationelle en astronomie ne permettait plus aux libres penseurs de concilier suffisamment les   Lois   naturelles et les  Volontés  divines.  Quelques penseurs, sans renoncer au problème absolu, tentèrent d’y remplacer toutes les causes intelligentes par des causes aveugles, en s’efforçant d’instituer une synthèse purement objective.   La causalité métaphysique ne mérite aucune comparaison avec ses deux souches   (as linhagens dos deuses e dos fetiches),   vu son inconséquence radicale, qui poursuit le problème des origines et des destinations en rejetant l’unique solution qu’íl comporte, sans comprendre que toute cause aveugle implique une contradiction directe.”  (Politique,v.III, p.302,303) 

O termo  souche aqui é usado como estirpe, tronco familiar, do teísmo.
Para Comte, portanto, a causalidade metafísica, sendo cega, constituir-se-ia  em uma “contradição em termos”, como diz a versão em inglês:

           “the very notion of a blind cause implies a  contradiction in terms.”  (Polity, v.III, p.254)

O texto em que Augusto Comte reclama da objetividade buscada pelo materialismo da metafísica, é de uma posição que parece estranho a um filósofo da ciência, defendendo o  subjetivismo animista:

“They   (the atheists and pantheists, who parody Positivity),   utterly spoil the initial Synthesis (the Fetichism), robbing it of its happy subjectivity to give it a delusive objectivity, in accordance with their characteristic materialism, which, by an abuse of the true encyclopedic subordination, strives to explain our Moral nature by the Physical world.” (Polity,  III, 76)

A respeito do resultado político do materialismo progressista, cabe notar uma interessante observação de Comte.  É que, embora  “tenhamos simpatia pelas teses populares” dos revolucionários, sempre o poder político  vai para as mãos dos conservadores.  (Catecismo, 1934, p.3)
Seria penosa, portanto, a posição revolucionária.  Sempre perdem o poder.  E quando o conquistam, tornam-se conservadores,  tornam-se os mais violentos conservadores.

Essas considerações põem em relevo questionamentos levantados pelo texto comtiano, cheio de idéias e implicações filosóficas e políticas, num ambiente de ideologias conflitantes. 
Aí estaria, portanto, um fecundo repertório de questões para estudo e debate, a ser feito sem dogmatismo, com a abertura da liberdade democrática.
Vê-se que a revolução filosófica  proposta por Comte provoca reações consideráveis de oposição, vindas de ambos os lados, sejam de conservadores, sejam de progressistas, que são a fonte de uma criptografia externa, deformante do texto por si mesmo difícil.  Uma dificuldade reativa que inibe e esconde a leitura do texto comtiano. 
As dificuldades resultam de fontes que se relacionam mutuamente, mas têm formas e razões diferentes.  A criptografia da religião decorre do vocabulário comtiano modificado, mas a semântica do novo deus decorre da dificuldade de uma visão histórica emancipada.  Aqui, a dificuldade é a reação oposta à revolução comtiana.
Eis aí a dificuldade exterior ao texto do filósofo: a criptografia reacionária.

Se aceitamos que é livre a proposta de várias formas para a busca da verdade, não serão as suas variadas vias utilizáveis por todas as pessoas. 
A negação ou a dúvida sobre a existência de uma divindade salvadora, corresponde, para alguns crentes, a um  risco de vida, ao perigo iminente para a sua  sobrevivência. O mesmo se dá com a crença numa vida objetiva após a morte, e sobre todos os outros mistérios não resolvidos,   É isso que explica o fanatismo violento: -  não se pode tirar a esperança na continuidade desta vida, nem a confiança num ente supremo. A morte, como fim real, imprevisto por vezes, talvez imediato, jamais poderá ser aceita pelas populações primitivas e  mesmo por muitos de nós.
Mas de fato Comte nunca apresentou-se como um ateu e jamais postulou a morte dos deuses.  Diz ele que ninguém conseguiu no passado verificar a morte de Júpiter e de sua corte, nem de tantos deuses antigos:  eles foram apenas esquecidos, não assassinados.   Por sua filosofia,  os problemas  da vida eterna, do paraíso, da formação do universo, seriam temas de verificação impossível, pelo menos até nossos dias.  O positivismo de Comte, ao pretender  o abandono das incertezas das causas primeiras e finais absolutas, tornar-se-ia  um modesto agnosticismo:  sabemos que não sabemos.
O risco de vida, o perigo da  morte, morte eterna, de padecer no inferno e mesmo a ameaça de doenças, desastres  e de outros azares em vida,  parecem constituir um obstáculo sério na leitura de Comte.  Decerto não poderemos  medir sua influência, mas pela numerosa adesão popular às seitas pentecostais protestantes e ao rápido enriquecimento de seus pastores, pode-se avaliar como essa ameaça da morte, na forma de terror teísta, ainda atormenta muitas pessoas e muitos estudiosos. 
E essa inquietação pela perda das “nossas mais caras esperanças” transforma a leitura de textos aparentemente assassinos e de desesperança numa verdadeira decifração semântica quase impossível.  É o bloqueio da supertição à liberdade de filosofar.
É a criptografia do medo.

Outras palavras modificadas no vocabulário de Comte foram, além de culto, as  noções de dogma e de regime
O “dogma” da religião comtiana é a filosofia das ciências e a filosofia em geral, que não é dogmática, no sentido de doutrina “fechada”, absoluta.  Portanto, “dogma” para Comte é a doutrina intelectual, a filosofia, que cada religião apresenta, seja essa filosofia absoluta, ou  não.
O  “regime”  é definido como a  normatização religiosa da vida, na práxis, como o código de conduta, uma ética.
Todo o elenco de conceitos relacionados com a religião sofre essa alteração semântica no texto de Comte.  Quando ele fala de , o conceito estará alterado, como quando disser dos sacramentos, da oração.
No idioma de Comte o filósofo passa a ser o sacerdote da modernidade.  Em nossos dias, essa nobre função sacerdotal, de condutor de mentes e formador de opinião, teria sua atuação segmentada, dividida entre o professor, o orientador, o psicólogo, o jornalista.  Esse fato mesmo seria anormal e sintomático, indicando, na visão do pensador, que nossos tempos correspondem a uma longa e profunda crise de transição entre a civilização medieval e a nova civilização da modernidade, ainda em gestação..  Na pesquisa  histórica,  em todas as sociedades e em todos os tempos, a  necessidade de coerência sempre colocou essas nobres funções num único órgão,  o sacerdote  ou  filósofo,  o  gnosiólogo  da época e do lugar, organizado em liberdade em comunidades religiosas. 
Essa percepção comtiana é que explica sua pretensão de  “voltar”  a uma religião, que parece exótica a qualquer espírito contemporâneo.    Seria mesmo loucura completa de um pensador moderno pretender o retorno ao feudalismo e à religião daquela época.[35]
Curiosa é a acusação de heresia positivista feita pelo pensador contra a religião proposta por Saint-Simon, o saintsimonismo, preso ao misticismo sobrenatural de um cristianismo modificado, qualificado por Comte como, esse sim, uma caricatura do catolicismo.[36]
Famoso já em vida pela sua original filosofia das ciências, professada em cursos públicos e gratuitos,  Augusto Comte jamais aceitou ser chamado de discípulo de Saint-Simon, muito menos em ser tido como seu plagiário.  Pelo contrário, Saint-Simon e sua escola é que teriam dele aprendido e se apropriado de idéias suas, ocultando a origem e incompetentemente misturando-as com o que retirava superficialmente de outros autores.  O plágio seria, de fato, feito por Saint-Simon.[37]
St-Simon já utilizava Comte e outros estudantes da época como  ghost writers,  “secretários”, cujos trabalhos remunerados assinava  como se fossem seus,  embora a mesma assinatura sua fosse inadvertidamente aposta descuidadamente em textos com opiniões conflitantes.
Apesar dessas evidências, St.Simon chega a ser tido como o fundador da sociologia e até do socialismo.  Mas, como em todos os pontos aqui estudados, esse tema permanece em aberto, para discussão: --- “Augusto Comte, como  simples plagiário”!   
E, para arrematar, seu estilo difícil seria explicado, portanto, por ser apenas uma incoerente colcha de retalhos.
Quanto a ser Augusto Comte um saint-simoniano dissidente, escreve  Henri Gouhier:

“Auguste Comte  n’est pas fâché  de mettre  publiquement les choses au point:  les pères suprêmes ou non suprêmes (do saint-simonismo), déclare-t-il, on fait leur éducation philosophique et politique à mon école;  mais, incapables de comprendre la marche scientifique de mon enseignement, ils on trouvé plus expéditif de fabriquer une nouvelle religion, qui est une misérable parodie du catholicisme;  le positivisme n’est donc pas un schisme  saint-simonien:  c’est le saint-simonisme que est une hérésie positiviste.”  (Gouhier, 1931,p.186)

ou seja, em português:

“Augusto Comte não fica constrangido em colocar a limpo publicamente os fatos:  os pais supremos ou não supremos do saint-simonismo, declara Comte,  receberam sua educação filosófica e política na minha escola;  mas, sem capacidade para compreender a marcha científica de meu ensinamento, eles acharam que seria mais rápido fabricar uma nova religião que não passa de uma paródia muito pobre do catolicismo;  o positivismo não é uma dissidência do saint-simonismo :  é o saint-simonismo que é uma heresia positivista.”

Eis como se compreende a dificuldade de comunicação que teria sido introduzida, se assim foi,  na comunicação da obra de Comte, pelo plágio de Saint-Simon e seus secretários:  seria a criptografia de St.-Simon.


A filosofia da história, como vista pelo filósofo, indicaria que a modernidade consiste num  período de transição  entre a civilização anterior, a medieval,  e outra civilização futura, a ser identificada e construída.  O desmembramento da função de coordenação das opiniões corresponderia então à rutura do poder espiritual da Idade Média, em decadência mortal, nos últimos seis séculos. 
Os diversos agentes especializados dos órgãos formadores de opinião passariam a ser, então, nada mais do que  “sacerdotes degenerados”.  Consistiriam em nada mais do que usurpadores incompetentes, por vezes conflitantes, da função sacerdotal, outrora nas mãos dos esclarecidos padres medievais, pertencentes à nobre genealogia das sagradas castas das veneráveis teocracias do oriente.
Mas  reconhecer o próprio fracasso em nossos dias pelo sacerdócio de cada uma das seitas conhecidas seria uma contradição.    Cada facção se supõe em progresso irresistível, a derrocada da religião da Idade Média não passando de uma  “secularização” sem maiores conseqüências.[38]
Verifica-se, portanto, como o significado das palavras se transforma para filósofo à medida que os conceitos são revistos e modificados pela sua própria pesquisa filosófica.  E que se pode questionar se chegaria a constituir exatamente uma contradição doutrinária ou se seria apenas a evolução do pensador dentro do mesmo programa filosófico.

2.5       A   GNOSIOLOGIA


A revolução filosófica provocada por Augusto Comte tem um caráter enciclopédico e complexo.  Essa abrangência e profundidade proporciona amplo campo natural para as dificuldades de comunicação.   Sendo uma revolução de caráter científico, questiona-se sua cientificidade, seja para menos, por ser anti-científica, por ser dogmática e rígida, seja para mais, por consistir em exagero cientificista, logo anti-liberal.   Assim se originam algumas das diversas formas de problemas semânticos.
Empregaremos aqui o nome de gnosiologia como a teoria geral do conhecimento em forma de sistema coerente.  Esse sistema, abrangendo a teoria do saber destinado a  (1) idealizar a realidade, o saber estético, ao lado do saber que busca (2) representar a realidade, o saber racional, e ainda do saber para (3) modificar a realidade, a técnica.   Nesse nomenclatura, a teoria do saber racional, do conhecimento científico, sob o nome de epistemologia, seria, portanto, apenas um capítulo da teoria geral da gnosiologia.  Para Comte, o conhecimento, na modernidade, tenderia para uma positivação crescente, mas, a cada época, teria se apresentado sob várias doutrinas míticas, animistas, teístas, ontológicas.  A gnosiologia compreenderia toda a filosofia, todo o saber,  em quaisquer de suas formas, a qualquer tempo, empregadas para explicar o mundo e o homem.
O termo gnosiologia não foi empregado por Comte, que também não usou o nome de epistemologia, ambos, então, fora da nomenclatura filosófica de sua época.   Mas o conceito de gnosiologia que aqui propomos tem a vantagem de caracterizar o  sistema completo do saber humano,  identificado pelo autor como constituindo o sistema de religião de cada tempo e lugar.  Mas a designação de gnosiologia não envolve os arraigados preconceitos sectários inerentes ao conceito de cada religião em particular, as mesmas crenças que no passado uniam os humanos e que em nossos dias, por vezes, divide a nossa raça.

Teria Augusto Comte empregado, de alguma forma, a denominação de “filosofia das ciências”?  Uma pesquisa de texto nos levou às explicações esclarecedoras.  O autor diz ter preferido a denominação de filosofia positiva em lugar de filosofia natural ou de filosofia das ciências, por entender que, em sua época, uma e outra  não se estendiam  então, ao estudo das ciências humanas, limitadas às ciências naturais.  Ao empregar o nome de filosofia positiva, desejava designar restritivamente o estudo apenas dos princípios gerais das ciências, da generalidade encontrada em comum nas ciências de observação, deixando de lado o estudo especial de cada disciplina.    Mas desejava designar de modo ampliado esse estudo até às ciências mais complexas, humanas.   A filosofia positiva seria então um vocábulo de conceituação ao mesmo tempo mais ampla e mais restrita, sob dois aspectos diversos, do que os nomes de  filosofia  natural  e de   filosofia das ciências.        (Cours, v. I, Avertissement, p.VII e VIII)

Cada seita religiosa, em sua época, constitui a gnosiologia desse tempo, a sua “verdade”.  O termo gnosiologia tem a vantagem de mostrar como a religião em cada época é a sua teoria geral do saber, com o ethos nesse tempo, sendo ainda o mesmo que o sistema de educação, tanto educação teórica como prática e sendo ainda o mesmo que a enciclopédia completa da época.
Para o filósofo, o sistema religioso, em cada era, sob cada forma, constituiria a própria gnosiologia em seu tempo e lugar.  Os sacerdotes, que são os pensadores, em cada época, formavam, com o saber disponível, uma  teoria geral do conhecimento, sempre em forma de sistema, ou em outras palavras, em conjunto orgânico de idéias, de caráter necessário, capaz de cooptar a livre colaboração coletiva, ou seja, tornando cada indivíduo um órgão em liberdade, sem coerção, a serviço dos ideais grupais consensuais.  Sem esse sistema consensual organizador, orgânico, não haveria sociedade.  Retornando aos registros da história, seria comprovada, na pretensão de Comte, a consistente e sempre retomada formação de sistemas de pensamento, considerados ao longo de períodos multisseculares suficientemente prolongados, para que se estudem as grandes civilizações.  Essa teoria geral da história, como uma filosofia demonstrável da evolução humana, acha-se descrita em pormenor no Système de Politique, em seu terceiro volume.
O retalhamento do sistema de conhecimento dar-se-ia, portanto, para Comte, apenas durante um prazo relativamente curto de transição inter-sistema, no interregno de períodos regidos pelos sistemas filosóficos ou religiosos, em geral de civilizações de duração multissecular.  Assim, nesse meio-tempo, se mostrará, naturalmente, a real impossibilidade de elaboração de sistemas filosóficos, tornados os sistemas, então, de fato irrealizáveis, fora de “moda”, dentro do período de crise da modernidade, agora com mais de 600 anos.   Essa interdição resultou de uma razão muito importante :  a incapacidade intelectual do centro aglutinante teleológico da medievalidade, de sua doutrina do ente divino, em manter reunidos os povos do ocidente em torno de sua adoração, por sua filosofia e para seu serviço, a partir do início do século XIV.  
Para restaurar a coesão social, na visão do filósofo, faltaria elaborar um novo polo a que referir todo o destino dos humanos.  A revolução copernicana teria destruído o antigo centro filosófico representado pela divindade, em torno de quem giravam as mais caras esperanças de cada servidor do grupo.   Essa pessoa, mantida pela religião medieval e pela religião em todos os tempos e lugares, como um indivíduo feliz,   independente  e  em  liberdade.  Fora derrubada  a causalidade final  e outra causa deverá substituí-la.  Porque somente essa teleologia assegura a saúde mental, a coerência lógica, para o indivíduo e para o grupo a   unidade   é condição sempre  necessária.
Ao apresentar sua obra principal, o Système de Politique Positive, é que o autor amplia seu horizonte  além da ciência, para desenvolver uma síntese humanista por meio do saber enciclopédico em forma de sistema, de uma gnosiologia.  Mas tal síntese deveria manter-se coerente no plano psicossocial das ciências humanas.  E, ao mesmo tempo, sem renegar sua base científica elaborada no Cours de Philosophie.  Então a proposta de Comte passaria a apresentar um centro único de referência sistêmica.  Ou seja, descobriria uma    teleologia  subjetiva    harmoniosa para todo o universo do mundo da vida, com a pretensão de colocar um alvo claro e distinto para a existência humana.   Seria a proposta de uma nova causa final.
A arte não seria mais a arte pela arte, nem a ciência pela ciência, nem a técnica pela técnica.   Um valor mais alto se levanta.  Resta pesquisar se a grande filosofia de Augusto Comte teria enfim conseguido cordialmente unificar todas as especialidades harmonicamente em torno dos objetivos humanos, num sistema coerente e plenamente subjetivo..  E isso teria sido feito com o coração, por um filósofo cientificista, tido como idólatra da razão.  A tarefa, por demais extensa e complexa seria de demorada execução e de difícil leitura.[39]
E a pulverização do saber teórico seria, portanto, para Augusto Comte, um grave sintoma  de desagregação social, de origem filosófica.    Notar bem:  somente a condição de sistema de opiniões comuns produziria a união dos indivíduos em condição de liberdade, em forma de convergência social consentida.  Não confundir, porém, como fez Durkheim em sua leitura, essa visão comtiana da especialização filosófica na teoria pura com a interpretação da divisão do trabalho, considerada por Comte como uma especialização  cada vez mais indispensável e útil  na práxis, no âmbito da concretude.  Uma confusão primária como essa só pode acontecer pelo desconhecimento da conceituação clara e distinta da diferenciação entre o saber abstrato e o conhecimento concreto, entre o fenômeno e a coisa.[40]
O conjunto da  nova gnosiologia  proposta por Augusto Comte pode ser visto no Esboço do Quadro dos Conhecimentos Humanos elaborado em CAVALCANTI, 1914, aqui apresentado em anexo, com pequenas adaptações, na ortografia da época.[41]
Torna-se a filosofia das ciências, nesse quadro geral, apenas uma parte do conhecimento; apresentando em adição outro saber, a filosofia da arte, a  filosofia política e a filosofia da indústria.  Mas, como introdução às ciências, é apresentada a filosofia primeira, como princípios gerais do saber ou epistemologia; a filosofia terceira compreendendo a teoria referente às artes aplicadas.
Verifica-se, então, como seria apenas preparatória a primeira fase da carreira de Comte, em que pretendeu desenvolver uma  filosofia a partir dos princípios gerais que formam as ciências.  Pela pura homogeneidade do método, pensou  ele fazer uma síntese, o que não conseguiu.[42]

A teoria da abstração merece uma atenção especial na leitura do sistema de Comte.
Na conceituação do filósofo, a descoberta das relações entre os departamentos do saber teria a pretensão de não comprometer a sua contínua evolução, não impondo, portanto, limites ou fronteiras rígidas entre suas partes.  Para o filósofo, sempre será importante distinguir claramente o conhecimento  abstrato, o saber referente aos  fenômenos  pelos quais o ser se dá a conhecer,  comparado ao saber referente ao  ser concreto.   (Politique, IV, 170 a 173)
A importante identificação do formato abstrato do saber teria sido empiricamente notado na elaboração de cada e de todas as ciências puras, não aplicadas.  Seria, portanto, o critério adequado para possibilitar a classificação do saber em extraordinária simplicidade.   E seria mesmo a única possibilidade de cada pessoa humana  abarcar todo o conhecimento enciclopédico, com o afastamento provisório da pormenorização especializante da concretude.[43]
E somente no âmbito do saber abstrato é que se poderia alcançar a rara e nobre virtude da generalidade filosófica.
A elegância, claridade e distinção dessa ordenação sistematizante parece resultar de uma identificação nítida da aptidão  subjetiva  dos humanos para a abstração, com que o filósofo pretenderia explicar o processamento da imaginação.
Por isso é que o positivismo de Comte não se constituiria num cientificismo rústico e factualista.[44]
Para Comte, esse saber depurado mediante a abstração, livre dos  pormenores da concretude, permite a elaboração de conceitos de validade muito mais geral, levando a uma enorme simplificação na tarefa educativa, já que poderá deixar de lado um volumoso conjunto de dados concretos,  livrando o ensino da obrigação de tudo guardar de memória, à maneira da escolástica medieval.  
No entanto, essa regra didática temporária poderia ser tomada por engano como  a interdição definitiva  da evolução do saber, evolução que se faz muito mais rapidamente em suas aplicações práticas.  Aparentemente, o filósofo, ao recomendar a exclusão apenas didática e provisória dos pormenores de aplicação da ciência, estaria promovendo a rígida negação do progresso intelectual e técnico.  Sua doutrina, no entanto é posta como permanentemente relacional, relativa, não absoluta, perfectível.
Pode-se avaliar como será difícil a comunicação dessa nova teoria do conhecimento de enorme generalidade e de abrangência nunca vista no saber humano seguro, com base na observação, mas sem desprezar os poderes da razão e da imaginação filosófica abstrata.  Deixar de entender a firmeza e a relatividade dessa proposta conduz a ocultar um aspecto básico da obra filosófica de Comte.   Seria uma enganosa dificuldade de comunicação: seria o criptograma do dogmatismo anti-científico.
Só por meio dessa  simplificação abstracional  justifica o filósofo sua temerária afirmação de que o ensino da ciência, em todos os tempos, sempre poderá ser enciclopédico, ou seja, abrangendo  todos os degraus  da escala fenomênica abstrata, ou todas as  SETE  ciências “puras”. Tal seria, se realizável, um  ensino filosófico,  vale dizer, um ensino de validade geral, em todo o campo do saber humano.
Uma grande falha hermenêutica na leitura de Comte seria vê-lo com horror ao progresso científico, tanto abstrato como aplicado.   Nessa falácia primária o filósofo relativista da evolução continuada teria ficado preso a um imobilismo próprio ao reino do dogmatismo das noções absolutas, da verdade eterna.

Na doutrina psicológica Comte, sugere ele a identificação e a  localização dos órgãos cerebrais.    Essa proposta  tem recebido  confirmação recente por métodos arquitetônicos e neurofisiológicos. (SILVEIRA, 1962,265)
Na teoria da cognição da original  psicologia  proposta por Comte, as funções básicas do processo intelectual estão caracterizadas como as de concepção e de expressão ou comunicação.[45]
A concepção se apresenta sob duas formas: como passiva, ou contemplação, e ativa, ou meditação. A contemplação se divide em concreta e abstrata; a meditação em indutiva e dedutiva.  A inteligência teria então cinco funções elementares irredutíveis: 1. a contemplação concreta; 2. a contemplação abstrata; 3. a meditação indutiva; 4. a meditação dedutiva; e 5. a expressão ou linguagem.  Teria então o aparelho cerebral um órgão específico para a linguagem, considerada como uma das funções intelectuais simples.  (Politique, v. I, p.715)[46]
A psicologia de Augusto Comte, com toda sua originalidade, seria, porém, ilegível, irreconhecível a muitos pesquisadores.  Deu o autor à ciência do comportamento individual o nome de MORAL TEÓRICA.  Um nome comum, mas de significado diferenciado: nada menos que uma NOVA CIÊNCIA,  a Psicologia, como nós hoje a conhecemos. 
Mas, além de lhe dar o nome de Moral Teórica, afirmou que a psicologia não existiria jamais,  era uma disciplina puramente ontológica, metafísica, o que de fato era verdade em seu tempo.  Pode-se ler, por isso, em muitos autores, erroneamente, que Comte não teria tratado do estudo da psique.[47]
Está aí identificada uma importante dificuldade semântica originada no próprio texto comtiano, dentro de sua ampla revolução gnosiológica.  É aquela dificuldade de significado que esconde a psicologia como ciência de observação elaborada originalmente por Augusto Comte:  eis a criptografia da psicologia positiva.[48]

A revolução de Copérnico, para Comte, teria tirado dos humanos o  centro de referência  do que se supunha ser a criação de um mundo para o reinado dos homens.  Essa a grande culpa de Galileu.   É-lhe imperdoável  haver acabado com esse sonho, provocando um vazio teleológico :  ---  para que finalidade estamos agora vivendo?
O mesmo abalo e derrocada havido com o sistema medieval terá ocorrido também com o sistema de Comte ?   Depois de mais de um século, terão suas pretensões  filosóficas e científicas ruído  como ruíram as bases de todos os sistemas anteriores?
O debate se torna aceso.   Como se alteraram em nossos dias os princípios gerais do saber científico?
Tendo todos os sistemas sido abalados, seria essa a comprovação de que a era e a moda dos sistemas já terão passado: agora seria então o império do caos, da revolução, da filosofia do “contra-o-método”.  Estaria, portanto morto Descartes.
A morte do cartesianismo e do espírito científico implica também em matar a leitura de sua filosofia.   Para que ler e meditar um texto cuja doutrina  “ruiu por terra”?   A proposta de uma nova gnosiologia se torna risível ou ridícula, se baseada nos postulados de Newton, se tiver ele morrido sob o peso da  nova relatividade.  E se depender dos axiomas de Euclides, também morto sob os escombros das novas geometrias não-euclidianas.   Estaria morto Newton e morto Euclides.
A crítica, se válida, parece levar ao “retorno a Platão”, para seus universais, suas essências, sua caverna.  Com que deveríamos esquecer Aristóteles, seu laboratório experimental e sua filosofia enciclopédica.   Agora teríamos toda a liberdade, --- melhor --- todo o arbítrio do pensar metafísico.  Por isso Paolo Rossi, da Universidade de Florença, observa que, segundo Heidegger, “nasce a ciência, desaparece o pensamento”.[49]
É como um novo processo inquisitório contra Galileu, diz Rossi, sob acusações muito mais pesadas do que as dos juizes da Santa Inquisição, os textos mais fortes durante esse processo tendo vindo à luz nos anos do fascismo e da guerra, entre 1935 e 1942, e estão  na   Krisis  de Husserl e  na    Dialektik der Aufklärung    de Horkheimer e Adorno.  (Rossi, 1992,p.13)
E essa nova forma crítica feita pela rutura do saber, pela descontinuidade, tornaria a filosofia das ciências e o positivismo completamente ultrapassados, como peças enferrujadas de museu, da mesma forma que Comte pretendeu fazer na superação do teísmo e da ontologia metafísica.[50]
O debate filosófico, compreenderá, assim, a discussão da morte geral das ciências, especialmente das ciências humanas.[51] 
Augusto Comte sustentara, no entanto, que nossa ignorância das leis da ciência política acarretariam revoluções sangrentas que o saber poderia ter evitado.  Tal como se viu neste século, com 20 a 40 milhões de mortos na revolução chinesa, de 15 a 20 milhões na revolução russa, mais de 11 milhões pelo nazismo e em muitos outros massacres e genocídios injustificáveis.  (Política, IV, apêndice,p.96)
O questionamento anti-científico assim fundado em caminhos de uma mística de vida, sob aparência de pensadores  revolucionários,  inibirá ou pelo menos desestimulará a leitura da filosofia da ciência.[52]
Essa criptografia, se assim for, não seria de responsabilidade comtiana.  É uma forma de dogmatismo filosófico, em que toda tese de positivismo, não só na forma comtiana, mas também no Iluminismo e toda a positivação do conhecimento, teórico ou prático. passa a ser uma burla, não merecendo ter a sua leitura analisada. já que aquela ciência anterior, em crise agonizante, estaria ultrapassada e jogada por terra, por descobertas  mais recentes, pela própria ciência, agora sob nova forma ontológica.[53]
Se houver mesmo o holocausto dos cientistas todos, e, portanto, da ciência, a gnosiologia inteira de Augusto Comte poderia ser esquecida, escondida, enterrada.  Essa seria uma das dificuldades de leitura e do ensino da obra comtiana.  Seria a criptografia pelo holocausto da ciência. 
Aí está um fascinante desafio.

Analisa Augusto Comte em pormenor os aspectos importantes e os benefícios, à época, do apogeu do catolicismo e do seu regime político, sem mostrar rancor revolucionário contra a religião..  Essa falha odiosa é que o filósofo nota e condena no estudo de Condorcet sobre os progressos humanos.  Em especial, porque um período de evolução não poderá resultar do vazio ou  da retrogradação de seus predecessores imediatos.  Nesse caso, também, nada se cria, nada se perde.[54]
Comte pretende usar uma indispensável acuidade para inteligir na história, nos próprios fatos particulares, as tendências da evolução, para dessa verificação histórica direta concluir princípios abstratos correspondentes.  Em outras palavras, sua metodologia consiste em diferenciar  fatos singulares e pessoas  de  conceitos abstratos em sociologia, como “posição da mulher na sociedade”, “estrutura familiar”, “poder espiritual” ou “poder material”.  E o método por excelência em sociologia  seria, para Comte, a  “filiação histórica”,  que corresponde a pesquisar, ao longo da evolução conhecida, as alterações de cada uma dessas noções abstratas, em cada civilização histórica.  Isso será, de fato, muito diferente de pesquisar apenas as ruturas em alguns poucos períodos anormais do grupamento social.   Mas os conflitos não deverão, decerto, ser ignorados, mas considerados, especialmente nas fases de nascimento, crescimento e declínio de cada período civilizatório.  Essa análise não seria, para Comte, apenas de um “positivismo” ingênuo de acumulação passiva de registros factuais.  Nem a original e complexa filosofia da história que o filósofo pretenderia extrair dessa pesquisa seria apenas um relato linear, incompleto, romântico, sem lutas e sem conflito.
A teoria da história assim construída deverá ser testada em sua validade em várias partes do trajeto evolutivo.  Os princípios não devem resultar de um simples   wishfull thinking:  o pensamento rico de inspiração espontânea  a priori  não pode ser, só ele, a base de uma doutrina histórica, confiável, firme, preditiva, verificável.  Pelo contrário, o filósofo mostra testes de validação de sua teoria histórica.  (Politique, III, 623; Polity, III, 535)
Essa capacidade de previsão é que parece resultar em profecias não realizadas, como a de que o século XX veria o predomínio universal do positivismo.  Mas alerta o filósofo que, ao oferecer números precisos em sociologia, ele apenas estava tornando sua argumentação mais nítida:

“     il faut indiquer deux avertissements:  le premier concerne les nombres que j’ai cru devoir introduire afin de rendre les notions assez précises, quoiqu’ils ne puissent encore être exactement déterminés.” (Politique, IV, 252,253,445; Polity,IV, 222)

O efeito de previsões erradas atestariam, sem dúvida, a invalidação do método sociológico comtiano.  E precisamente falsearia sua afirmação básica em possuir a certeza na previsão, característica principal da ciência moderna. E seria, por conseqüência, a invalidação aparente e a ocultação da gnosiologia de Augusto Comte. Mas, ao que parece, trata-se apenas de uma engano semântico:  seria a criptografia da falsa profecia.

Há uma forma diferente de dificuldade semântica quanto à doutrina religiosa que a leitura do texto de Comte apresenta.   Não mais se refere ao vocabulário “religioso” do autor, que, já registramos.  Esse vocabulário afeta todos os quatro tomos do Sistema de Política Positiva, as obras posteriores e a ação do filósofo.  Relaciona-se esse outro aspecto à teoria histórica, à filosofia da evolução doutrinária e social, base indutiva da sociologia dinâmica, ou teoria do progresso social.   Consiste na avaliação da civilização católico-feudal, de sua implantação, de seu apogeu e de sua ruína.  A defesa do catolicismo e até dos privilégios feudais é feita pelos conservadores remanescentes dessas instituições.  Resulta então um severo debate no estudo do fenômeno da  “secularização”.   Essa renhida defesa e mesmo uma reação agressiva torna-se uma dificuldade que perturba ou mesmo tenta impedir, por vezes, a leitura da proposta gnosiológica comtiana.  Constitui um efeito criptográfico decorrente de ação exterior ao vocabulário escolhido pelo filósofo, dificultando a compreensão básica da revolução do pensamento na modernidade.  É uma criptografia diferente da criptografia da religião, que já examinamos.
Pela doutrina comtiana não haveria retorno ao passado, muito menos à Idade Média.  A análise pormenorizada da derrocada da medievalidade, de seu regime político, o feudalismo, e de suas crenças, é exatamente uma das dificuldades criptográficas de Comte.  Confessa ele sua grande admiração pela sabedoria humana do sacerdócio católico da idade média, capaz de tornar convergente a doutrina egoísta da salvação individual.   Mas define o catolicismo, hoje, como uma  majestosa ruína histórica, o belo resto de um monumento antigo, de uma verdadeira organização filosófica:

    “le catholicisme, que nous avons vu si longtemps présider à l’évolution moderne, comme devenu finalement étranger à la société actuelle, où il ne peut plus figurer qu’à titre d’imposante ruine historique,  pour empêcher le monde de perdre tout sentiment actif d’une véritable organisation spirituelle, et   pour en indiquer aux  philosophes   les vraies conditions fondamentales.”  (Cours, VI, p.422)

E ainda enfatiza uma importante lição para os novos filósofos.  Pensadores, ao que parece, cegos para a “verdadeira organização filosófica da sociedade”.
Não se pode dizer, portanto, que o sistema gnosiológico comtiano seja um retorno ao misticismo ingênuo e à teologia medieval.[55]
Comte examina a eficiente ação exercida pela religião medieval em seu apogeu:  todas as escolas eram religiosas; todos os hospitais; todos os cemitérios;  o ensino estava completamente nas mãos do sacerdócio católico; todos os meios de comunicação, por embrionários que fossem,  lhe eram afetos.  Todos os escritos eram religiosos, sagrados, bem como todas as bibliotecas.   A música era toda sacra, como também a pintura; o teatro se fazia dentro das igrejas.  Portanto, todo o aconselhamento estava em mãos competentes e coerentes do sacerdócio.  E isso, a não ser após o declínio, era feito livremente, ou seja, com plena liberdade, tanto para o povo, para os trabalhadores, como para os governos. Nessa era foram libertados os servos da gleba, sem revolução, com o desenvolvimento das cidades modernas e da sociedade civil.     Os papas, então com grande poder moral, e apenas pelo consenso, coordenavam as relações políticas entre os países autônomos.   Mas o faziam sem violência material, mantendo a paz entre as nações.    Por meio de uma bula papal, acatada pelos dois países interessados, as novas terras descobertas na América foram divididas pacificamente entre Portugal e Espanha.[56]
A apreciação de Augusto Comte sobre a escolástica indica a filosofia intelectualista de Aristóteles como ameaçadora à doutrina católica, levando a razão a questionar a fé, conduzindo à sua destruição ou secularização, por um movimento interior ao próprio sacerdócio.  Essa “implosão” nunca fora vista na história da religião. As provas da existência de Deus são desnecessárias: são sintomas da emancipação crescente.  Portanto, para renovar a fé medieval não seria solução retornar à escolástica, o que seria voltar à dúvida;  melhor seria retornar a Sto. Agostinho e a Platão.  Por essa razão, para Comte, Tomás de Aquino é um filósofo moderno, não um pensador medieval. (Cours V,555; VI,294;  Martineau, II,262,350; Politique III,411)
Essa é uma análise cujo estudo e cuja comunicação envolve preconceitos, mitos e esperanças “religiosas” e metafísicas  muito caras, muito preciosas.  Mitos por demais confusamente presentes em grande parte dos estudiosos, todos, já convencidos da vitória da ciência no pensamento contemporâneo, mas encarcerados em restos de crenças do passado, conforme a visão comtiana.
Por isso torna-se o estudo da secularização em Comte uma dificuldade de significado, de semântica :  é o criptograma do fim do cristianismo.

O comentário da conhecida  lei dos três estados  costuma ser baseado em leituras distorcidas.  Entre as mais comuns, está afirmar erradamente que essa lei se referira a três formas de estado social da sociedade, e não de formas de  concepção de  cada ramo  do saber.
Notar bem:  a lei não se refere a  etapas  da evolução histórica; como se toda uma coletividade em cada época pensasse da mesma formao que facilmente se reconhece ser irreal.    E a simultaneidade de estados mentais diferentes para uma mesma pessoa, num mesmo momento, variando conforme a complexidade do ramo de conhecimento, confunde o pesquisador, parecendo-lhe uma contradição simples de descobrir na lei evolutiva de Comte, o que não passa de um ingênuo engano.[57]
Assinala-se, aqui, portanto, uma dificuldade das mais sérias, uma vez que a revolução da gnosiologia da modernidade consiste exatamente em tornar positivada toda a enciclopédia humana:  bastaria que o “terceiro estado”, o estado positivo do pensar, fosse falsificado, para tornar a nova gnosiologia um mero sonho ...  Essa grande dificuldade seria a  criptografia  dos  três estados.

No estudo da teoria sociológica, Théodore Abel interpreta a lei dos três estados como referida à evolução das idéias e crenças das pessoas, numa original “análise sociológica”.  E a preocupação de Comte seria com o  “ethos do grupo”  e não com  “estágios de desenvolvimento” da sociedade.  Teria Comte dito que   “todos os mecanismos sociais repousam sobre as  opiniões”. (ABEL, 1972, 108,109)
Segundo  Abel,  a lei dos três “estágios”  pode ser vista como “uma proposição sociológica que afirma a correlação existente entre o  ethos   do grupo, por um lado, e os tipos de instituições junto com a localização do  status  e do   poder   numa sociedade, pelo outro.   O caráter sociológico da lei só pode ser reconhecido    se a  terminologia  filosófica    que descreve os  “estágios de desenvolvimento intelectual”   for posta de lado.  Quando Comte fala a respeito de “teologia”, “metafísica” e “positivismo”, deles não trata como sistemas filosóficos.   Está interessado não no significado filosófico dessas idéias,  mas no papel que desempenham na vida social e em sua influência sobre a conduta humana.
Abel com essa recomendação afasta o preconceito  “filosófico” que impede a leitura de Comte, para enfatizar o juízo  “sociológico”,  único que a Abel interessa e que poderia ou desejaria ler.  É comum que filosófico aí implique numa conotação de confuso, metafísico, não científico.  
Mas muito bem reconheceu  a dificuldade de ler  essa mensagem comtiana em razão de sua implicação  ideológica.   Ou, em outras palavras mais simples, somente afastado o ataque ao teísmo e à metafísica,  então, e só então, pode-se decifrar o texto do  filósofo. 
Importava a Comte, segundo Abel, colocar na lei apresentada que o comportamento social  dos humanos em cada civilização depende da doutrina que o grupamento adota, de suas crenças, de seu ethos”, de seus costumes em todos os seus aspectos, afetivos, intelectuais e práticos.
Comte teria, então, concluído que o fetichismo conduz à exterminação dos cativos, enquanto que o monoteísmo leva à emancipação dos escravos da antiguidade.  O politeísmo é a única etapa apropriada à escravidão.[58]
Theodore Abel assinala, assim, a dificuldade da leitura da  terminologia comtiana, que ocultaria a comunicação da nova gnosiologia, que enfatiza o poder social das crenças, do consenso, da filosofia.  E as coloca a serviço da sociedade.
Ocultar essa comunicação seria realizar a criptografia do ethos social.

Com a lei dos três estados está implicado o conceito da variação da complexidade de cada ramo do conhecimento, já que a velocidade de evolução da lei seria tanto maior quanto mais simples o fenômeno estudado. Ou seja, nos acontecimentos mais comuns, mais gerais e mais simples, como os da matemática, a positivação se dá antes do que nos fenômenos mais complexos, como os biológicos, sociológicos e psicológicos.
Por isso, numa mesma cabeça, pode haver estados diversos de conhecimento, conforme se trate de “passes espirituais” em psicologia ou de cálculo em aritmética elementar.  E isso está explicitamente posto no texto original do filósofo.  (Cours, v. I, p.18)
Eis outro tema de debate filosófico ligado às propostas de Augusto Comte, para a alteração radical do ethos social

Aparentemente Augusto Comte teria abandonado o método analítico “positivo”, ao enfatizar o método sintético, oposto, tido como “dogmático”.  E essa contradição ter-se-ia dado tardiamente, conforme a crítica feita por Brunschvicg, provocando uma ambigüidade entre o  “positivismo da razão” em relação ao  “positivismo da Igreja”.  Aquele da razão seria iluminista, seria a favor da liberdade, do progresso.  O outro, o positivismo da Igreja, seria contra o progresso, a favor da ordem, que,  “como toda religião, impõe a necessidade de um princípio de autoridade”.      A ilação levaria a  supor a doutrina comtiana como sofrendo de profunda incoerência, tornando-se favorável a uma ordem despótica, autoritária.[59]
Nos Opúsculos, escritos na juventude, elaborados antes do Cours de Philosophie, em 1822, diz Comte, a respeito do método de pesquisa: 

“A pesquisa das leis que regem os fenômenos naturais apresenta, sob o ponto de vista que nos ocupa, importante diferença, conforme estuda a física dos corpos brutos, ou a dos organizados.  Na primeira, reconhecendo o homem que constitui parte imperceptível de uma série imensa de fenômenos, dos quais não lhe é dado esperar, sem louca presunção, perceber jamais o conjunto, vê-se obrigado, logo que começa a estudá-los com espírito positivo, a considerar primeiro os fatos mais particulares, a fim de elevar-se gradualmente, em seguida, à descoberta de algumas leis gerais, que se tornam mais tarde o ponto de partida de suas pesquisas.
“Na física dos corpos organizados, ao contrário, sendo o próprio homem o tipo mais completo do conjunto dos fenômenos, suas descobertas positivas começam necessariamente  pelos fatos mais gerais,  que lhe fornecem depois um luz indispensável para esclarecer o estudo de um gênero de particularidades, cujo conhecimento preciso, por sua natureza lhe é para sempre interdito.    Em uma palavra,  em ambos os casos,  o espírito humano   procede do conhecido para o desconhecido;mas,  no primeiro,  eleva-se a princípio do particular para o geral, porque o conhecimento das particularidades lhe é mais imediato do que o do conjunto, enquanto, no segundo, começa a descer do geral ao particular, porque conhece mais diretamente o todo do que as partes.”(COMTE, 1972, p.132,133;   IV,p.133)

Mais tarde, o autor passou a chamar sistematicamente o método analítico de “método objetivo”, comparado com método sintético, a que deu o apelido de “método subjetivo”, que supunha serem não conflitantes, mas, ao contrário, que seriam, ambos, de valor, completando-se, dependendo do tema em estudo.  (Politique, I,444 e seguintes)
O método subjetivo poderia ser denominado de funcional, por considerar primeiro a função a ser estudada, para então pesquisar o órgão correspondente.    No ser orgânico o estudo estrutural, analítico, do órgão, por sua dissecção destrói a fisiologia, impedindo a observação.    Um exemplo foi a dificuldade em descobrir a circulação do sangue, onde as artérias ficavam vazias no cadáver, parecendo que cada artéria apenas “ar-teria”.[60]
O conflito comtiano consiste, então, para Brusnchvicg, em hesitar na escolha para base de sua sociologia entre a  análise positiva  para explicar as instituições da sociedade por sua história   ou  ...  entre empregar uma  síntese “dogmática” na qual a sociedade é tomada como substrato ontológico e as instituições seriam apenas produtos desse substrato.[61]
Fica identificada, dessa forma, a dificuldade de compreender como o método sintético ou “subjetivo”, depois de elaborar a biologia, é empregado por Comte para instituir a sociologia e a psicologia, as novas ciências basilares da proposta gnosiológica revolucionária do filósofo para a reconstrução da harmonia mental e política da modernidade.   Mas como será possível edificar duas ciências positivas sobre sonhos de substratos ontológicos ?   E dessa exótica metafísica enlouquecida ainda acreditar em Novo Deus para a fé numa nova religião ?   Estamos, assim, em franco e forte debate filosófico, deveras salutar para o pensar.
Eis a dificuldade semântica comtiana do “método sintético”, ou a criptografia do método subjetivo.

2.6              ABSTRAÇÃO  E  REVOLUÇÃO  FILOSÓFICA


Haverá, de fato, uma revolução filosófica em andamento em nossos dias?   Se permitido o debate democrático, em que posição cada um de nós se colocará? 
Há pelo menos três posições a tomar, a quem reconhecer o declínio e ocaso da civilização medieval, por seu regime político e por sua filosofia :  primeiro, voltar atrás, retornando a um modo revitalizado de pensar da Idade Média, conservadoramente; depois, tentar apenas destruir todo o conhecimento do passado, acusando-o, por exemplo, de ser uma simples ideologia para a exploração dos oprimidos pelos poderosos;  ou, como terceira opção, construir uma nova doutrina filosófica confiável.
Revendo o que foi estudado neste capítulo, notamos que Augusto Comte adotou a posição construtiva. Iria tentar a elaboração de uma revolução apenas filosófica, de consenso, pacífica.   E propõe uma nova causalidade final.   Teria ele descoberto a causa final, que residiria e teria  sempre residido ao longo de toda a história no social, na sociedade dos humanos, como causa ligada ao próprio sujeito, relativa, verificável, a ser explicada por meio de uma doutrina gnosiológica de liberdade. Essa proposta revolucionária, mas não violenta, de Comte, está, portanto, em pauta para debate, para crítica, para verificação.
Será ela a verdade para o nosso tempo?
E teremos visto que podemos ter encontrado uma “chave inglesa”, para ajudar na abertura e na explicitação do rico e pesado texto comtiano para torná-lo accessivel à leitura da pessoa comum, do trabalhador e do pesquisador em geral.   Sabe-se que os mecânicos usam uma chave de boca, de abertura regulável, para apertar parafusos, chamada de chave-inglesa.  Essa “chave”, em nosso caso, seria a tradução da obra comtiana para o inglês.  Seria, portanto, uma ...“chave” ...“inglesa”.   Mas, aqui, em teoria, seria uma chave imaterial, seria uma chave semântica.
Algumas das formas mais comuns de dificuldade semântica foram encontradas na obra abstrata de Comte, algumas inerentes ao próprio texto do filósofo.  Outras dificuldades não estão no texto original, e sim em razões como no medo da morte, no  possível plágio de Saint-Simon,  ou  no discutível  assassinato das ciências ... pela própria ciência.  Ciência que, afinal, pode-se refletir, assim mesmo,  sobreviveria.
Com esta dissertação, teremos apenas tentado trazer ao debate filosófico acadêmico, com mais clareza, se possível, as proposições de renovação do enciclopédico filósofo francês. 
O pensador que pretendeu ser, ou o foi, o criador da filosofia positiva, o fundador da sociologia, seu batizador e primeiro dos sociólogos.   Além disso, teria sido o fundador da psicologia científica, o primeiro dos psicólogos e, principalmente, ainda por cima, o criador de um novo sistema gnosiológico enciclopédico ---  para não dizer o fundador de uma nova fé religiosa.  E tudo isso sem levar em conta sua muito importante Ciência Política, considerando apenas a obra abstrata, no pensamento “puro”.   Como será possível deixar de examinar criticamente essa obra?  Quais serão seus limites e possibilidades?    
Neste capítulo acabamos de ver  algumas  das dificuldades conceituais de comunicação dessa enorme obra, em sua parte abstrata.  Obra já chamada de  uma monumental, filosófica   “catedral  de  idéias”.
Assim o estilo do pensador Augusto Comte, considerado o filósofo indispensável, que é pesquisado, discutido, mas não lido, talvez por ser ilegível --- ou de leitura quase impossível.
Permaneceria em discussão, portanto, o texto e o título de Comte, tanto como o grande Mestre da filosofia da modernidade, quanto como o único  filósofo-mito  jamais conhecido.





3.        TERCEIRO CAPÍTULO

                        A Práxis:  Liberdade e Ciência Política


Seguiremos com o estudo de algumas das criptografias mais importantes, encontradas na  aplicação  à  práxis  política  das conclusões abstratas elaboradas pela teoria comtiana pura, preparatória.  Serão dificuldades semânticas na formulação de sua forma democrática de regime político, na ordem que propõe, em seu raciocínio cientificista a se aliar a seu possível fanatismo pela liberdade, em seu aparente romantismo místico, em mistura com um enganoso empirismo autoritário.   A qualificação da filosofia política de Comte de democrática, liberal, romântica, ou ditatorial, autoritária, irrealizável, aqui é indicada para ser colocada em debate.  Será que a leitura competente, honesta, dos textos originais do filósofo, depois de aclaradas as criptografias encontradas, poderá decidir essa dúvida? 

3.1              DEMOCRATA,   MAS  A  CONTRAGOSTO



Em razão da influência da ciência política de Augusto Comte na propaganda e na realização tanto da abolição da escravidão negra e do índio, bem como da fundação da república no Brasil, muitos estudiosos têm consultado, para suas pesquisas, as publicações do Apostolado Positivista no Rio de Janeiro.   Elas são muito mais acessíveis do que o texto do pensador, por estarem traduzidas para o português.  Essa fonte, no entanto, mantém a nomenclatura original do filósofo, como seria de esperar da fidelidade filial rigorosamente ortodoxa.  Grandes enganos cometem, porém, comentadores superficiais a partir ingenuamente dessas informações, em publicações de forma geral perfeitamente fieis  literalmente  à palavra e ao texto de Comte, e, também, fieis a seu pensamento.[62]
A nomenclatura original do filósofo foi evitada, no entanto, na aplicação da ciência política de Comte feita no Rio Grande do Sul por Júlio de Castilhos em sua demorada e bem sucedida ação política.  Ele  obteve  apoio  democrático do Partido Republicano Riograndense, para instituir, sob  sufrágio popular,  o presidencialismo  de plenas liberdades recomendado por Comte, isento de parlamentarismo.    Castilhos  jamais usou o nefando apelido de  “ditadura republicana”.   Mas esse nome, perverso em nossos dias, foi, eficazmente referido e lembrado, sempre pejorativamente por seus ferrenhos adversários, e   apenas  por adversários...
Paulo Carneiro afirma mesmo que foi
             por     motivos    semânticos   em    grande    parte
                          que a Assembléia Constituinte de 1891 não deu ao projeto constitucional de Miguel Lemos a acolhida que merecia.  E isso, segundo Paulo Carneiro,  pela importante e enganadora razão semântica do projeto apresentar-se com o nome de   “uma constituição ditatorial”   para o Brasil.[63]

Se assim teria sido, esse é um caso que demonstra exemplarmente como o emprego de um termo geralmente rejeitado pela coletividade pode ser desastroso.   É um caso de criptografia, de dificuldade de comunicação, de semântica alterada.   É a criptografia de resultado contraproducente, quando a palavra tem, de fato, o significado alterado ou oposto ao desejado.
Demonstra a grande, a enorme importância do que chamaremos, para dramatizar seu resultado adverso, de  ---   criptografia política.

Mostrava o gaúcho Júlio de Castilhos, como jurista e estadista, ter sentido essas dificuldades semânticas de forma ampla na discussão de temas políticos:

    “tudo faremos por adaptar  à compreensão popular  a fraseologia peculiar ao assunto em debate”.  (CARNEIRO, 1982, p.109)

Decerto pode admitir-se que a lógica firme com que Augusto Comte justifica a cuidadosa escolha de suas palavras e de sua significação, venceu facilmente a percepção das inconveniências de seu emprego. 
Além disso, estando Comte e seu positivismo com grande prestígio na  França e na Europa em geral, essa influência intelectual poderá ter inibido a verificação da nocividade semântica de um vocabulário assim modificado.[64]
E democracia, no vocabulário de Augusto Comte, significava, de forma distinta, a sucessão do poder sob o regime eleitoral, mas tomada a eleição como solução universal infalível, dotada da infalibilidade que não mais é creditada ao Papa, mas creditada ao Povo.  Ao passo que hoje, democracia não pode mais ser caracterizada apenas pelo processo eleitoral, mas é sinônimo de liberdade, igualdade e justiça, sob  variadas formas de representatividade social.  
O filósofo, no entanto, sempre imaginou que o seu regime presidencial, de liberdades mais do que democráticas, devesse representar as necessidades populares, sob a condição de uma opinião pública livre, mantendo o poder executivo sob o controle de uma assembléia orçamentária e fiscalizadora  independente  e  eleita.     E isso hoje nada mais seria do que  democracia.     Mesmo reconhecendo Comte a dificuldade lógica provocada pela  inversão de valores do processo eleitoral, que pretende escolher os superiores pelo voto dos inferiores, num universo heterogêneo de eleitores.  Portanto, não será uma verdade completa afirmar que Comte considera, junto com Rousseau, a democracia como inviável.     O que Comte condena é o emprego ingênuo das eleições como solução tida como   panacéia absoluta,   dotada de moderna  infalibilidade  do povo destinada a substituir a desacreditada  infalibilidade papal.[65]
Pesquisas de Condorcet, em seu conhecido paradoxo eleitoral, e, recentemente, no estudo e no teorema de K.Arrow provam que o processo eleitoral  não é confiável  para sua utilização na  social choice,  na decisão social.[66]
Em razão disso, os pesquisadores concluíram que a democracia pode caracterizar-se   menos   pelo processo eleitoral do que pela  liberdade dos cidadãos, pela justiça, ausência de corrupção e pela igualdade de oportunidades.  (HEAP, 1992, p.227)
Aí está o debate aberto:  quais serão as limitações do processo  eleitoral?
E aí estaria mais uma dificuldade semântica do vocabulário do filósofo.   É o caso de confundir eleições com  democracia.   Um criptograma político no texto de Comte :     o criptograma eleitoral.

Mas  é muito curioso notar que o pensador dizia de si próprio ... não ser nem aristocrata nem democrata.   No entanto, o filósofo teria sido de fato  um liberal e um democrata!   

Somente, no caso, com o emprego de um vocabulário menos preciso de nossos dias,  único a ser compreendido pela generalidade dos leitores.   Afirmação feita a salvo de nossos erros e omissões, posta na mesa de debate, se o debate será livre e democrático.

3.2       ORDEM  E  PROGRESSO


A noção de sincronia e de diacronia, definida por Saussure em lingüística, é uma aplicação da conceituação de estático e dinâmico feita muito antes por Comte, cujo texto decerto Saussure desconhecia.[67]
O estudo estático fornece, de forma geral, a estrutura ou composição do objeto em equilíbrio, cujo movimento ou mutação caracteriza a condição dinâmica.  As leis estáticas seriam  de semelhança, as leis dinâmicas seriam de sucessão.  Em ambos os casos, as leis sociológicas são, para Comte, relações normativas infalíveis, verificáveis, preditivas no âmbito abstrato e não apenas indicações meramente descritivas e estéreis para guiar a ação.  Serão as descrições da concretude, porém, imprescindíveis e de alto proveito como bases auxiliares e preparatórias para o saber abstrato fenomênico.
Outra conceituação polêmica importante feita pelo filósofo, nesse caso, consiste em notar que
             o  desenvolvimento   nada   cria,   nada   perde
                          ou, em outra forma, a estrutura, o arcabouço contém, de partida, tudo que depois se desenvolve: ---  há validade aí da lei da conservação da matéria e da energia, em sociologia tanto como em psicologia, em toda a série fenomênica.  (Politique, I,106)
Essa conceituação básica nem sempre fica muito clara no texto comtiano.   Ela é referida de forma  por demais sucinta  como  “o progresso depende da ordem”  ou  “o progresso deve ser considerado  sob as condições da ordem ou ainda “atendendo às condições da ordem e do progresso”. (Politique, II, 41).
Ficaria assim, segundo Comte, identificada a ilusão revolucionária de que destruindo o  status,  derrubando as instituições, a rutura criaria do nada ou dos escombros uma sociedade melhor.   Daí o lema político ---  “ordem e progresso”, --- significando que devemos manter a estrutura, dando-lhe condições de aperfeiçoamento, ou seja, de liberdade, com que devemos ter tanto a ordem  “democrática”  tanto quanto o progresso.
Seria a demonstração do engano cometido no simplismo das soluções imediatistas de destruição: --- a moeda está mal, suprima-se a moeda;  a família tem problemas, suprima-se a família.   O capital é explorador, suprima-se o capital;  se a propriedade apresenta um uso anti-social,  acabe-se com a propriedade.
Mas essa ordem, na filosofia política de Comte, jamais foi empregada para propor o regime tirânico, em nossos dias implicado de forma bem definida, gritante e irremovível  no significado da palavra ditadura.  Esse termo, em razão de trágicas experiências mais recentes, tornou-se o abominável sinônimo de despotismo liberticida, de tirania cruel, capaz do mais desumano genocídio.  Ao mesmo tempo, carreou-se para o qualificativo de  “democrático”  a acepção  indiscutível,  por definição, de “governo bom”, dentro das normas de direito, com liberdade, isento de corrupção, sob uma certa correlação com o processo eleitoral, sempre fora da sucessão hereditária familiar.
Registra o filósofo  duas significações  da palavra ordem.   Nos tempos antigos de atividade militar, corresponde à ser a ordem de comando.   Na nova civilização pacífico-industrial da modernidade, ordem passaria a  significar a ação de arrumar,  organizar  ou fazer órgãos, delegar funções em plena liberdade.   (Politique, II, 469
Mas a Ciência Política de Comte é vista pelos revolucionários como radicalmente conservadora, e pelos retrógrados como perigosa e destruidora, ao eliminar mitos e privilégios, propondo uma liberdade leiga e exagerada.
Vê-se, portanto, a correlação entre os conceitos de estático e de dinâmico com a divisa da  ordem e progresso.   Implicando, também, esse lema político,  como já registramos, a premissa da plena liberdade.[68]
Eis aqui, então,  a   criptografia da ordem e do progresso.


3.3           COMTE, LIBERAL,  ---  MAS  LIBERAL FANÁTICO


Continuamos a analisar alguns criptogramas ligados à doutrina política de Augusto Comte.
Cabe-nos aqui pesquisar se, em torno da figura de Augusto Comte, terá sido criada uma  falsa imagem  de pensador autoritário, como se fora ele o próprio precursor do totalitarismo, tanto de direita, como de esquerda.  Conceito que continuamente é mantido e ampliado sucessivamente pelos comentadores da leitura de segunda mão.  E consagrado pelo ensino de comentaristas de repetição copiadora, baseado na mesma bibliografia secundária.   Em concerto unânime, comentadores superficiais, sem ler o texto original, ensinam ser a doutrina de Comte um empirismo tosco e autoritário e até uma  Ciência Política   ditatorial
Será de justiça pesquisar como nasceu essa apreciação de Comte como teórico do autoritarismo radical.  Como terá ocorrido essa alteração de significado  da obra do pensador?
A resposta estará na pesquisa da dificuldade semântica do texto do filósofo:  --- estará no estudo na criptografia comtiana.

O livre exame, como preceito da Reforma protestante para leitura bíblica, é analisado por Comte como um sintoma grave do estado de decadência do papado, ou seja, como a verificação da crise da modernidade, tomada como lamentável a rutura. Essa é a chamada  “liberdade de consciência”, considerada por Augusto Comte como a base do necessário progresso da modernidade.  Essa liberdade foi, sim, inutilmente combatida pelos papas, tentando evitar a derrocada de suas crenças pelo estudo direto individualizado da multiplicidade das teses da bíblia, ameaçador da autoridade hierárquica da fé.  Contra essa  liberdade usaram os papas a força de sua autoridade moral, e, mais tarde, em sua falta, até a força da violência, quando o sacerdócio aliou-se  ao poder temporal da realeza, provocando a cruenta Santa Inquisição.  (Politique, IV, appendice,18)
Essa análise condenando a liberdade de consciência usada contra o catolicismo é um verdadeiro texto criptografado, muito repetido por críticos apressados, de conseqüências interpretativas enganosas.  Logo implicando erroneamente em que, para Comte, a liberdade de consciência seria um terrível erro a ser sempre combatido...
Pelo contrário, por sua doutrina demonstrável, afirma Augusto Comte apresentar ele a  única defesa permanente  da liberdade.       E, ainda, afirma ser ele    o único pensador   que elabora   uma doutrina em forma de sistema   na defesa  da liberdade de opinião,  de consciência e de  livre exame.   (Politique, I, 122)

Se assim acontecer, será enorme engano pensar que Comte seria de fato o maior inimigo das liberdades, o totalitário do século XIX, prócer eminente do nazismo.[69]
Será necessário pesquisar com cuidado o texto comtiano para não cair nessa armadilha e dela tirar conclusões enganadas.  E, se não houver grave erro ou omissão de nossa parte, muitos estudiosos de renome já teriam chegado a produzir, dessa forma, análises de má qualidade, ao cair nesse lamentável e indesculpável engano semântico, nessa  criptografia da liberdade de consciência.

Note-se que o outro nome da plena liberdade de pensar  no texto de Augusto Comte chama-se
                      “separar       os      dois      poderes”
             tanto no estudo abstrato da sociologia de Augusto Comte como na aplicação de sua ciência política.   
Significa claramente retirar do governo material o governo das opiniões e do governo espiritual o poder de comando filosófico pela violência ou pela riqueza.  Decerto uma ciência política que considerasse as opiniões e a religião como o ópio do povo, resultaria sem remédio numa tirania liberticida.  E do mesmo modo pode-se questionar se conduzirá à tirania toda ciência política incapaz de identificar claramente esses poderes nem se proponha a separá-los.
A “separação dos poderes” em Montesquieu não corresponde a essa libertação comtiana do pensamento filosófico em política.  A divisão de poderes nesse caso pretende o controle democrático do poder pelo fracionamento do poder.   Não se refere à libertação da opinião, ao livramento da filosofia.  E Comte perguntaria,  desconfiando da fórmula expressa por Lincoln de  “governo do povo, pelo povo, para o povo”,  será que poderemos ter o controle democrático do poder, para obter e manter as mais amplas liberdades por meio de outra forma de governo?
Ao estudar como se dá a convergência dentro da sociedade, o filósofo enfatiza  a maior dificuldade da associação humana:  conciliar  o concurso e a independência.   Em outras palavras, tentaria Comte compreender como os humanos em liberdade vivem em convergência em sociedade, sendo independentes, não coagidos pela violência.
O problema fundamental da sociedade, de acordo com Comte,  estaria em  manter o concurso assegurando a liberdade,  estando a solução desse problema num corpo de doutrinas, de pensamento, num  ethos  que desenvolva primeiro o sentimento social, o altruísmo, e depois a confiança, a fé.
Lê-se no texto original do filósofo, com sua terminologia específica:

“Une conciliation permanente entre le concours et l’indépendence constitue le  noeud fondamentale de la sociabilité,  dont la religion peut seule instituer le dénouement.   (Politique, IV, 34)

Explicitamente: só a religião pode desfazer esse nó fundamental em sociologia!   
É a expressão decisiva de que a solução única do problema fundamental da sociedade, a harmonia entre a convergência e a liberdade  só poderá ser instituída pela filosofia, pela gnosiologia.   E essa solução filosófica implicaria  na  mais ampla  liberdade!
Não está impressa a palavra  “liberdade”. Mas lê-se liberdade na independência, como sinônimo perfeito.    Não se trata aqui de obter o concurso pela força ou pela ameaça,   mas pelo amor e pela fé.  
Volte-se,  e leia-se de novo:
                                      pelo amor e pela fé!
                                                          Outra vez  o compilador não poderá ler nem anotar a palavra liberdade  no texto comtiano,  embora o conceito de liberdade claramente  esteja contido no contexto,  no próprio espírito da comunicação.   A explicação das condições de afeto e de razão na unidade humana, em sua coerência, estão na teoria da unidade, nas primeiras linhas do segundo volume do Système de Politique, como já vimos.
O biógrafo de Comte, Henri Gouhier, pareceria ter razão ao dizer que 

                        “Comte é um liberal fanático, adversário impiedoso de  Marat  e  de  Robespierre,   de   Bonaparte  e  de   Luiz XVIII.     Para  Comte a liberdade é um absoluto.”[70]

Fica claro, na letra do Système de Politique, que, para o pensador,  a doutrina abstrata, bem como sua aplicação política tem embasamento na disciplina consentida da doutrina filosófica, jamais imposta, mas amplamente elaborada em todos os aspectos da vida humana, nas afeições, na razão, na práxis política e técnica, no formato de uma gnosiologia liberal, para regular a modernidade em  nova civilização pacífica e industrial. 
A proposta do pensador, acertada ou não,  coloca o desafio maior ao filósofo de nossos dias:  
               dirigir a sociedade somente por suas opiniões, sem violência, sem a tutela quer do Estado, quer da violência  ou da riqueza, mas somente pela competência e prestígio, moral e intelectual do filósofo.  
                                                                           Em outras palavras, por meio da mais pura, da mais desinteressada filosofia!
Nesse aspecto básico, o sistema comtiano fica parecendo aos revolucionários do progresso pela violência política apenas uma proposta  “romântica”, irrealizável, uma vez que só conhecem a solução tirânica por meio da força militar fardada de um governo totalitário.[71]
Esse debate está e continua na ordem do dia:   escolher entre  a tirania e  a  filosofia da liberdade.
E descobre-se então a  dificuldade semântica  da complexa pregação em favor do poder da opinião, do poder do consenso.   Essa é a doutrina de Augusto Comte, no estudo abstrato do fenômeno da coesão social.  Sistema de pensamento que conclui pela necessidade da liberdade, isto é, por ser inevitável e indispensável a disciplina livre, consentida, tida pelos totalitários como uma “política ...apenas romântica”.  
Será mesmo que estamos presenciando uma grande dificuldade na leitura do texto original comtiano?   E exatamente na importantíssima, democrática e  original teoria da liberdade,  com validade para os nossos dias e para todos os tempos.   Esse escolho semântico alterado constituiria  a  criptografia romântica.

Portanto, no texto de Comte parece permear a preocupação em manter as maiores liberdades públicas, ao mesmo tempo em que pesquisa uma  forma de realizar a  harmonia  filosófica  pela afetividade e pela razão, que   livremente   regule a vida humana em sociedade pelos mesmos meios liberais historicamente registrados em cada civilização anterior pela religião. . 
A pretensão se torna regenerar a sociedade pelo estabelecimento de uma comunidade de filósofos, gnosiólogos, sem poder nem riqueza, de caráter teórico, por meio do ensino de princípios de ampla aceitação.   Seria realizar o governo das opiniões em forma de consenso, em plena liberdade, para regular a ação da política material.
Supondo que o problema da crise da modernidade tenha sido criado pela derrocada do sistema de gnosiologia da medievalidade, pretendia  Comte que  o problema sendo filosófico,  sua solução deveria ser filosófica.   Ou seja, primeiro o pensador identifica a crise de nossos dias como sendo de caráter filosófico.   Em seguida pretende que seja essa crise resolvida nos mesmos termos, filosóficos, isto é, no âmbito de uma solução doutrinária, ou seja  não  apenas  política,  não violenta.
A solução, portanto, do problema da modernidade, não estaria somente no âmbito do governo temporal :  principalmente a solução da crise   estaria implicada na esfera  filosófica.
Por essa razão propõe o autor a instituição de um culto ou adoração de caráter socialista ou social, sem a tutela ou incentivo do poder material.  O culto deveria ser livre, tanto para o indivíduo, para a família, a pátria e para a comunhão internacional.  
Não se haveria de confundir esse culto religioso sincero e em liberdade com programas políticos despóticos destinados à propaganda de regimes de força.
Essa forma de controle social livre pretenderia o filósofo ter visto sempre nos sistemas de gnosiologia de todo o passado, onde os filósofos ou sacerdotes obtinham, com formas de pensar diferentes, a cada época e lugar, a  mesma coesão social.    Escreve então sobre a consagração religiosa que

          “pendant le déclin du catholicisme ce privilège (du sacerdoce)  fut de plus en plus regardé comme une usurpation envers l’autorité civique, qui, finalement, domina partout l’influence ecclésiatique, pour les trois phases principales de la vie privée,  la naissance, le mariage, et la mort.” (Politique, IV,122)

Essa verificação feita no texto original de Comte indica a extensão de suas especulações na esfera da religião,  que resulta numa das maiores dificuldades semânticas na sua linguagem, que assim parece completamente cifrada, em meio a sua aparência teista.
Entraria em debate, portanto, a esfera do sentimento, da afeição, na solução do problema político e filosófico.
A complexa doutrina de Comte apresenta então um aparente misticismo e espiritualismo:  Fala o autor na “espiritualidade” de sua  proposta da  “santidade” da ciência :

      “Il faut donc que d’abord le coeur règle l’esprit, afin que leur harmonie discipline ensuite l’opinion public, d’où résulte une force morale destiné à perfectionner les impulsions individuelles.  Ce complément  général de la spiritualité positive suppose, avant tout, des sentiments convenables, qui prévalent aisément, chez les âmes les plus imparfaites, envers la conduite d’autrui.  Mais son nom usuel doit suffisamment rappeler que cette force exige aussi  des  pensées communes,d’après  lesquelles on  puisse juger chaque cas.”
           “Ainsi conçue, la science acquiert une sainteté jusqu’allors impossible, en consolidant à la fois la liberté et vraie  moralité”    (Politique, IV, 167)

Refere-se aqui o autor à subordinação da inteligência, da razão,  aos sentimentos e às necessidades práticas da sociedade, quando a luz dada pela ciência se tornaria  santificada por sua destinação ao bem comum.  O que teria ocorrido sempre no passado, dentro de cada civilização.
Esses criptogramas é que conduzem a enganosas interpretações de considerar Comte como “retornando ao misticismo” de sua infância, ou até numa visível prova de  demência  “senil”  antes dos cinqüenta anos de idade.
Além da criptografia pode notar-se a preocupação do autor em sua doutrinação com a liberdade.  E também com a semântica do nome de “opinião pública” livre.
Assim nasce no texto comtiano o criptograma do misticismo.

3.4        A  CIÊNCIA  POLÍTICA,  A FILHA DA LIBERDADE


O problema fundamental em política, do recrutamento, seleção e treinamento dos governantes, é posto na ciência política de Augusto Comte como e estudo da transmissão do poder e da propriedade.  Além das dificuldades semânticas nesse assunto, outros temas deveremos abordar, como a tirania, a interpretação da liberdade em Hobbes, o empirismo anti-filosófico e a origem da crise política.

O colégio filosófico libertado, imaginado por Comte para a orientação espiritual das mentes humanas, deveria ficar, por sua recomendação expressa, sempre isento da opressão temporal.  (Politique IV, 259)
Para a solução do importante problema da transmissão das funções e do capital nas classes ricas, no patriciado, também será à liberdade que recorrerá o autor;  recomendando  para tanto a liberdade de testar e a liberdade de adoção com a livre indicação do próprio sucessor:

                “Quant à hérédité sociocratique des offices et des capitaux, il suffit ici de compléter la loi fondamentale, établie dans mon volume statique,  sur le libre choix du successeur, sous  la sanction du supérieur.” (Politique, IV,333)

O seu “volume estático” refere-se ao segundo volume da Política Positiva, onde apresenta o estudo da estrutura da sociedade.  Na instituição da teoria da família, escreve o autor:

                   “D’antiques exemples de monstrueuse inimitié manifestent combien la fraternité fut altérée par la transmission héréditaire des fonctions sociales.  Il en est de même, à un moindre degré, quand l’hérédité se borne à la richesse.  Mais, en rapportant toujours la famille à la société, le régime final dégagera l’autorité paternelle de toute entrave inspirée par l’égoïsme domestique.   Pleinement libres de tester sous une juste responsabilité morale,  les pères pourront  alors transmettre  hors de  la  famille  les  capitaux acquis ou conservés, même indépendamment de l’adoption.”          (Politique, II,199, 200)

Chama o autor de  sociocrática  a transmissão do poder e da propriedade em vista do bem da sociedade, e não dentro do critério familiar,  em favor dos descendentes, o que tem origem no regime de castas na teocracia antiga.  Mas usou o termo hereditariedade, que, para nós, é unicamente usado com o significado teocrático.   Sobre o tema retorna o filósofo no mesmo segundo volume, na p.406, no estudo das classes produtoras.
A expressão “regime final” não tem o sentido de colocar um limite para o progresso, mas chama assim o autor o regime proposto como o fim de uma série evolutiva, sendo o começo de outra civilização, cuja característica seria a atividade pacífica, em constante aperfeiçoamento.  Não se trata do fim da história.
Essa proposta de alteração do processo de sucessão de bens e de funções é fundamental em política, com significativa conseqüência num regime em que o Estado é posto como mínimo indispensável e onde haveria concentração crescente dos meios de produção nas mãos do patriciado cada vez mais reduzido, se o futuro confirmar a visão de Comte.
Na ciência política comtiana se faria a socialização do empresário e não a socialização dos meios de produção.  Deve-se notar que o filósofo usa sempre o nome de patrício para designar o chefe prático, detentor da riqueza, considerado nos três setores da economia, da indústria agrícola, extrativa e manufatureira,  do comércio e do banco.
Mas a palavra liberdade, de forma explícita, pode aparecer na escrita de Comte:

            “Une  pleine   liberté d’exposition,  et même de discussion, est d’abord indispensable comme garantie permanente contre la dégénération,   toujours imminente, d’une dictature empirique en une tyranie  rétrograde.”(Politique,IV,379)

Se assim foi, a ditadura, como definida por Comte, em sua semântica alterada, não seria, em nossos dias, a ditadura.  Logo,    
                      ditadura    não   seria      ditadura!
                              Não seria uma ditadura como todos entendemos hoje, com supressão das liberdades, numa verdadeira tirania.  Trata-se, sim, do presidencialismo democrático, e, até mesmo eleitoral! 
O autor compara a proposta política de Hobbes, de disciplina puramente materialamplas liberdades civis, com o regime por Comte proposto.   E refere-se a Frederico II  da Prússia, como um exemplo, por todos conhecido, de governo com liberdade, embora mesmo sob um regime absoluto, tal como um imperador “democrata”.
Será curioso pesquisar se, na doutrina de Hobbes, por sua posição anti-espiritualista, terá sido apresentado também falsamente como adversário da liberdade, numa distorção da leitura de seus textos, numa deformação semântica hobbesiana.  E se, paradoxalmente, essa distorção terá origem exatamente vinda de grandes inimigos da liberdade, de adeptos de alguma forma pouco caridosa de doutrina fechada de espiritualismo.    No entanto, é Hobbes reconhecido, apesar de sua falta de piedade teísta, com muita razão, como precursor do liberalismo ...
Não só Comte, portanto, teria sofrido com a maldição criptográfica. O viés interpretativo também afetaria a leitura do materialista Hobbes na visão da bibliografia dominada pelo espiritualismo conservador, por muito tempo aliado ao despotismo político desde a retrogradação de Napoleão.[72]
Com essas circunstâncias, gera-se a grande dificuldade semântica que chamaremos de criptografia do autoritarismo.

Ao concluir sua obra principal, o Système de Politique, escreve Comte:

   “En aspirant à la réorganisation matérielle isolément de la reconstruction spirituelle,  l’empirisme pratique devient plus vain et plus perturbateur que l’empirisme théorique qui s’efforce d’instituer la science indépendamment de la philosophie, ou celle-ci sans la religion.” (Politique,IV,532)

Para entender essa crítica ao “empirismo”  de ordem prática  e ao “empirismo” de ordem teórica, torna-se necessário saber o que significa para o autor a palavra  “empírico”.  O conceito de empírico para Comte é definido pela falta de articulação com uma doutrina mais geral.   O empírico seria o atributo oposto ao filosófico, ao conceito encadeado a um sistema, a uma síntese, sendo, portanto incapaz de perceber o conjunto.  O saber empírico seria exemplificado pelo conhecimento de que um balão de ar quente sobe no ar e não saber que se trata da mesma relação dada pelo princípio de Arquimedes, de flutuação de um corpo num líquido.
O empirismo prático consistiria então pretender reorganizar a sociedade sem conhecer a teoria sociológica da liberdade espiritual, o que é comum ocorrer com os políticos.  Certos teóricos políticos até negam existir uma filosofia política, afirmando que toda doutrina política seja uma falsa ideologia, já que sua própria proposta é a única válida.
O empirismo teórico é referido como a tentativa de fazer ciência sem filosofia e fazer filosofia sem religião.
A solução comtiana, portanto, seria genuinamente filosófica, e, por conseqüência, completamente liberal.  Por não pregar o uso da coerção.
Eis ai a criptografia do empirismo.

A opressão pelo governo temporal, como característica nefasta, como doença da modernidade, é visto por Comte, como a decorrência do desmoronamento do feudalismo e da doutrina religiosa correspondente:

“Je le répète, tout ce qui est arrivé a du arriver, et je suis certainement aussi éloigné que personne de tout regret stérile sur le passé.  Mais qu’il me soit permis d’observer, avec le grand Leibnitz, le fait de l’importante lacune laissée dans l’organisation européenne par la dissolution inévitable de l’ancien pouvoir spirituel, et d’en conclure que, sous ce premier rapport, l’établissement d’un nouveau gouvernement moral est impérieusement réclamé par l’état présent des nations civilisées.
La décadence de la philosophie théologique et du pouvoir spirituel correspondant a laissé la societé sans aucune discipline morale.  De là cette série de conséquences que je marque dans l’ordre où elles s’enchaînent mutuellement.
   1.  La divagation la plus complète des intelligences.
   2.  L’absence presque totale de morale publique.
  3.  La prépondérance sociale accordée de plus en plus, depuis trois siècles, au point de vue purement matériel, est encore une conséquence évidente de la désorganisation spirituelle des peuples modernes.
   4.  Je dois indiquer enfin comme dernière conséquence générale de la dissolution du  pouvoir spirituel,  l’établissement de cette sorte d’autocratie moderne qui n’a point d’analogie exacte dans l’histoire, et qu’on eut désigner, à défaut d’une expression plus juste, sous le nom de  ministérialisme ou de despotisme administratif.  Son caractère organique propre est la centralisation du pouvoir poussée de plus en plus au delà de toutes les bornes raisonnables, et son moyen général d’action est la corruption systématisée.  L’une et l’autre résultent inévitablement de la désorganisation morale de la société.  (Politique, v.IV, Appendice,184 e seg.)

Essa análise severa da autocracia moderna, indica, como já vimos antes, a  origem filosófica, para Comte, desse mal.  Confirma, também, o ânimo grandemente liberal do filósofo.   O que leva a pensar que a acusá-lo de autoritarismo não passe, de fato, de um engano semântico, de uma leitura criptográfica.
Notar aqui, como o autor faz o crédito de idéias que emprega, citando  Leibniz, o que mostra o seu hábito de honestidade intelectual, que, por outro lado, torna o texto mais sobrecarregado com tais indicações.[73]
Comte mostra, já nesse escrito de juventude, em 1826, aos 28 anos, como relacionava o problema filosófico ao governo político,  que  até mesmo no caso, é o governo da sociedade pela religião, por meio do consenso, no âmbito intelectual e afetivo, sempre longe da opressão.

Temos, portanto, neste terceiro capítulo, examinado alguns dos mais importantes obstáculos postos na leitura do texto de Augusto Comte, na aplicação de uma construção filosófica extensa e demorada na elaboração de uma  nova Ciência Política.
Corresponde, esse estudo, a um convite para a leitura e a crítica da obra original do filósofo, para confirmar ou não seu caráter liberal.  Será de fato, a ciência política de Comte autoritária ?  Como explicar as lutas dos positivistas brasileiros pela libertação dos negros e dos índios ?   Como explicar as numerosíssimas intervenções do Apostolado Positivista em favor das diferentes formas de liberdade, até  mesmo ao defender a própria Igreja Católica, ameaçada de perder a propriedade de suas igrejas e de seu patrimônio predial ?
Augusto Comte será, de fato, um fanático pela liberdade?  A semântica de sua ditadura que não é ditadura, é, mesmo, uma dificuldade criptográfica.  Como o fato de ser democrata a contragosto, não desejando ter o título em sua época um nome hoje tão cobiçado como de democrata.   Como pode ser autoritário o filósofo tido como fanático pela liberdade ?  
Será difícil julgar se o debate filosófico, o choque de doutrinas, seria a única razão desse desvio semântico, ou mesmo se o preconceito metafísico participaria predominantemente na realização dessa distorção da imagem do filósofo e de sua doutrina.    Mas, em todo o caso, o vocabulário de Comte e a complexidade de seu pensamento merecem um estudo mais cuidadoso.

Deve-se sempre ter em mente que as considerações até aqui feitas sobre o texto comtiano não pretendem ser completas e capazes de exaurir todas as dúvidas possíveis que uma elaboração enciclopédica e complexa como essa possa apresentar.




         CONCLUSÃO

                           A Criptografia de Augusto Comte



O percurso de nossa pesquisa permite concluir que a dificuldade em ler o texto do filósofo decorre principalmente de seu estilo próprio. Mas não só de seu estilo sintético e ao mesmo tempo inchado de referências e de idéias em geral originais, complexas e contundentes.  Certas ou erradas, a serem aceitas ou contestadas.  A dificuldade decorre também do ataque de sua doutrina a preciosos e importantes  preconceitos seguramente arraigados desde a mais remota antigüidade.
A pesquisa permitiu encontrar várias formas criptográficas bem definidas no texto de Comte.  Além de revelar essa suspeitada, mas inesperada criptografia, foi possível tentar descobrir algumas de suas causas e de suas variadas formas.
A surpresa decorre do fato bem conhecido de ser o autor um filósofo dono de uma obra séria, feita com cuidado, até ao excesso, no rigor das menores singularidades ou das mais amplas generalizações.
Não foi possível encontrar um deliberado propósito claro e distinto do autor em elaborar uma linguagem secreta.  Augusto Comte, tal como Descartes, procurava escrever com nitidez para atingir a opinião popular.  Em especial procurava apoio na opinião dos trabalhadores e das mulheres, não deformados em sua formação por preconceitos escolásticos e acadêmicos.   Eram os únicos em quem confiava para desenvolver a revolução filosófica  “romântica”, sem violência, que pretenderia implantar na doutrina e na práxis de modo afetivo e intelectual, sem coerção. 
Mas verdadeiros enigmas foram mostrados no seu texto.  Embora colocados sem a menor intenção criptográfica, sua decifração quase sempre foi impossível a muitos de seus leitores.
Alguns criptogramas são apenas expressões mais difíceis, referências implícitas, conceitos complexos, novos.   Foram aí postos pelo próprio autor, sem o propósito de esconder seu pensamento.   Pelo contrário, o autor buscava expressá-lo claramente, mas de forma sucinta, confessadamente feita às pressas.
Verdadeiros enigmas são os que resultam da deformação de sentido dada a palavras comuns usadas em significação diversa da convencionada. Essa alteração semântica, embora sempre justificada, torna o texto enganoso, criptográfico, no sentido aqui nós estabelecido.
Outros enigmas, no entanto, são postos no texto comtiano, ao correr de leituras descuidadas, em falta de atenção, em pesquisas incompletas ou até tendenciosas, a deformar o pensamento original do filósofo.   Essa prática intelectual acarreta, por vezes, a qualidade inferior de muitas pesquisas e de muitas interpretações. 
A leitura do texto original dos filósofos merece, portanto, ser em geral incentivada. Um dos critérios de qualidade nos estudos filosóficos deve ser a indicação distinta e confirmada do número da página no original e não só o debate erudito, por vezes elegante, mas estéril, vazio, baseado numa hermenêutica artificial, a partir do texto nem sempre fiel de comentadores fantasiosos, eles também, por vezes exegetas de literatura de segunda mão.
A evolução do próprio pensamento do autor e de sua semântica contribui, no caso de Comte, ainda mais para o corte da comunicação.   E os criptogramas indicados na pesquisa quase sempre resultam da criação de  conceitos novos, complexos, estranhos ou exóticos, de significação em viés, ainda mais deformados pela alteração natural, imprevisível  do léxico.
Pelos textos originais estudados e pelas enormes distorções feitas por seus comentadores fica bem clara e distinta a necessidade patente, para a leitura da obra de Augusto Comte, da explicitação sistemática de sua terminologia. 
O procedimento do pensador em nada reprovável ao evitar neologismos, deu lugar a um curioso dialeto incompreensível, constituído de palavras comuns consideradas em conceituação diversa.   Seria um dialeto criptográfico particular em filosofia.
Formou-se uma linguagem que jamais alerta o leitor com palavras estranhas.  Seus termos são todos bem conhecidos.  Mas ditadura não é ditadura; religião não é religião; rezar não é misticismo, o não democrata é democrata.
Essa dificuldade ficou bem caracterizada quando o estilo do autor foi considerado  “anfibológico”.   E, com mais precisão, quando se percebe uma criptografia capaz de iludir a todos os leitores, sem distinção.
É o fechamento, não exatamente da doutrina, mas é o fechamento, pelo menos parcial, da comunicação.
A criptografia, no entanto, não é expressamente voluntária.  O autor reconhece essa dificuldade e se penitencia da falha, justificada por sua pressa em criar o ambicioso sistema planejado.  Uma vez conhecidas, as suas palavras apresentam  uma certa elegância pedante,  como afirma Littré.  Seria pedante em sua dificuldade superior, agravada por uma complexidade sucinta.  Mas elegante por sua ameaçadora e esbelta graça.  Embora por vezes ilegível.[74]
Talvez tão importante como a identificação e a ênfase na criptografia de Augusto Comte nesta dissertação terá sido a explicitação aqui realizada da grande teoria da liberdade humana, desenvolvida por Comte em forma de sistema filosófico,  de filosofia da liberdade, pelo método cartesiano, demonstrável.   
Essa original, mas pouco reconhecida e nunca mencionada  teoria da liberdade  resulta, como vimos, na sociologia de Comte, da constatação histórica, na política do ocidente medieval e moderno, da caracterização clara e distinta dos poderes sociais, com a rigorosa recomendação pelo pensador da separação do  poder  teórico  do filósofo em relação ao  poder  material  do goveno político.  E de sua proposta liberal para resolver a grande e permanente dificuldade de compatibilização no grupo social da independência com o concurso.   Ou seja, mantida a  inarredável  liberdade,  mostrada com o caráter filosófico de necessidade, como poder-se-á obter continuamente o concurso, a convergência social.

O sistema proposto por Comte sofreu, no entanto, a ação de confrontos de grande monta.  A história da filosofia no século XIX mostraria o despotismo napoleônico impondo um espiritualismo oportunista que  assumiria o controle despótico do ensino e da pesquisa na universidade por mais de um século, resultando na padronização dos estudos sob a tutela ontológico-metafísica do Estado, que chega quase até nossos dias.[75]
Se verdadeiro, esse fechamento teria sido, nessa visão, efetivado pela imposição pelo Estado de uma erudição intelectual espiritualista estéril aliada a uma política conservadora, resultando no expurgo imposto por Napoleão aos filósofos renovadores do pensamento e do ensino.  Seria a vez do oportunismo político, aliado ao poder, quando Victor Cousin com seu ecletismo afasta o debate ao afirmar que  a filosofia já está feita, não deve mudar.[76]
O ensino na França, portanto, em grande parte, teria, desde então, passado a dar ênfase à interpretação metafísica do pensar, única permitida pelo poder político, de maneira clara ou disfarçada.  Prevaleceria uma visão adequadamente hostil ao do iluminismo, aos enciclopedistas.  E seria mesmo infensa à ciência e à técnica, à moderna filosofia da ciência e naturalmente à obra de Augusto Comte, tanto quanto à de outros renovadores.  Por meio da liderança francesa, essa tendência teria passado a todo o ocidente, a todo mundo civilizado. 

Se tal ocorreu, a universidade teria sido então empolgada por uma versão oficial do que se denomina contemporaneamente de “pós-modernismo”, em versões por vezes lembrando um retorno ao obscurantismo antigo, com vestes revolucionárias de nossos dias, como diz  Paolo Rossi.
Não coube aqui escolher entre o moderno e o pós moderno, entre o espiritualismo e o materialismo, ou ficar ecleticamente a meio caminho.  Em todo o caso esperamos, felizmente, aqui, festejar a liberdade acadêmica  agora desfrutada, para incentivar o debate civilizado e aberto em busca da verdade.
Não é possível impedir mais, com doutrinas impostas direta ou indiretamente pelo poder do Estado, o saudável embate ideológico em liberdade na filosofia, na ciência, no saber em geral.  A verdade de nossos dias não está pronta: --- ela deverá ser pensada, discutida.  A verdade está para ser elaborada.

Será oportuno, agora, ter uma visão do que pesquisamos neste trabalho que teria a pretensão de salvar a verdade e restaurar a justiça na leitura da obra de Augusto Comte.  A obra de sua vida, pretendendo fazer das ciências uma filosofia, elaborando a sociologia, postulando a psicologia científica abstrata e aplicando essa investigação polimorfa à prática política, para reestruturar o governo da sociedade humana.   Desse labor resulta, afinal, uma teoria geral do saber humano: --- uma gnosiologia, uma enciclopédia.

Como terá sido pesquisada a criptografia de Comte?  Como sua filosofia tornou-se sujeita à criptografia?  Antes de tudo teria sido indispensável conhecer a doutrina comtiana.  Em seguida dever-se-ia conhecer como sua leitura foi feita, e quais as distorções havidas.  Então seria a hora de ter uma noção dos erros mais comuns, e notar, entre eles, quais seriam os mais freqüentes e mais importantes.

Inicialmente procurou-se identificar o que fosse a criptografia comtiana, conhecendo-se seus exemplos  A seguir buscamos registrar as mais importantes dificuldades semânticas no texto abstrato do filósofo. E vimo-las em sua desconhecida e importante teoria da liberdade, na religião que não é religião, nas suas definições e nas suas ambigüidades, no infeliz mas bem mascarado plágio de Saint-Simon, no afastamento do absoluto pelo relativo, no after-death,  na grande gnosiologia.  Mas espanto mesmo foi na constituição de uma nova causa final, uma nova teleologia!
Só um  filósofo-mito  poderia propor tão ambiciosa construção.
As dificuldades no texto aplicativo de Augusto Comte foram achadas na ditadura que não é ditadura, no autoritarismo inexistente do pensador que é um liberal fanático, na sua criptografada ciência política da liberdade, na democracia que não é democracia.
Esse foi o esforço realizado para ajudar na difícil compreensão da filosofia de Comte.  Um esforço para colaborar na decifração de suas dificuldades redacionais e para vencer os obstáculos aí colocados pelas interpretações falsificadoras dos comentadores de segunda mão.  Mas, por vezes, a forte complexidade do tema e sua extensão desmesurada parecia colocar-nos mal equilibrados no alto de uma esfinge, em risco de cair da imensa altura do pensar de Comte.   O consolo só viria ao ver que estávamos sobre fortes e elevados ombros.  Estávamos seguros, de pé sobre os ombros do grande pensador.

Decerto a extensa obra de  Augusto Comte, mesmo marginalizada pela criptografia própria ou adquirida, terá saliente lugar no grande debate filosófico da atualidade, seja ela uma doutrina de liberdade e de altruísmo, seja de repressão e de ditadura.   Mas, para facilitar sua compreensão, a explicitação dessa grande dificuldade semântica torna-se imprescindível.
A chave para decifração desse monumental trabalho intelectual estaria no glossário filosófico da doutrina de Comte para nossos dias, aqui tentativamente proposto e que segue em anexo a esta pesquisa. 
Sua necessidade mesma comprova a criptografia que queríamos pesquisar.  
Q.E.D.  Quod erat demonstrandum
Que era a demonstrar 


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[1]Assim, finalmente, terminou uma liberdade particular e iníqua, em proveito próprio e exclusivo de uma das seitas, a católica, ao impor pela coerção suas idéias, seu culto e suas práticas a todo o povo brasileiro.  Era então oficialmente vedado, na monarquia, o culto de todas as outras demais seitas tanto das mais antigas como das resultantes da fragmentação religiosa com que a doutrina sobrenatural divide os humanos, dentro da perigosa crise da modernidade, numa perversão da eterna missão aglutinadora da religião.
[2]A França passou a ser o centro do ocidente a partir sobretudo de Carlos Magno, na visão de Comte. (Politique, I,p.82)   T.N.Clark, in Prophets and Patrons, p. 237,  diz que o brilho de Paris faz qualquer uma das universidades estrangeiras empalidecer, na comparação.  Portanto, Paris ainda poderia, talvez, ser tida como a capital do pensamento humano, como afirmou Comte.
[3]GOBLOT, Edmond, in  UTA, Michel, 1928, La théorie du savoir dans la philosophie d’Auguste Comte, préface, p. XVI.
[4]STUART MILL,1890,  Auguste Comte et le Positivisme, p. 200.
[5]ARBOUSSE-BASTIDE, Paul,  Ante una Tumba Abierta, in Revista mexicana de sociologia, Universidade Autonoma de Mexico, 19:3, set-dez 1957;p, 690.   Ver  A.W.GOULDNER,  For Sociology, N.York,Basic Books, 1973,   sobre a polêmica de Durkheim contra Augusto Comte..
[6]Conforme pesquisas da escola psiquiátrica do Prof. ANÍBAL DA SILVEIRA, da USP, em S.Paulo. Ver COELHO, Lúcia, 1980, Epilepsia e Personalidade.
[7]ALCEU AMOROSO LIMA, 1956, in  Política, p. 115, considera que a liberdade religiosa promovida pelas doutrinas de Comte foi benéfica para a Igreja Católica, com a separação em relação ao Estado.
[8]LITTRÉ, in Auguste Comte, p.257;  LOMCHAMPT, in Revue Occidentale, juillet 1889, p.24; ambos apud GRUBER, in  Auguste Comte, Sa Vie, sa doctrine, p.79, 80.  Para a referência diabólica, ver p. 331.
[9]A identificação clara da necessidade de um estudo das deformações existentes na interpretação dos textos de Comte,  recebeu incentivo importante do ilustre prof. David Carneiro Júnior, da Universidade Federal do Paraná e do Centro Positivista em Curitiba, a quem devo expressar meus agradecimentos.
[10]COMTE, 1972, Opúsculos :  os tradutores indicam ter usado a tradução de Henry Dix-Hutton para esclarecer dúvidas de diversas passagens obscuras do original na p. XIII.
[11]Existe uma tradução dessas Lettres em português,  por Egydio RUSSO,1990
[12]A expressão anfibologia foi usada por Kant na Crítica da Razão Pura, na seção 3a. da doutrina transcendental da capacidade de julgar, em apêndice.
[13]Ver in  PEREIRA, Eduardo Carlos, Gramática Expositiva, Curso Superior,  101ed.., S.Paulo: Cia.Ed.Nacional,1957, p.271 e 275.    A anfibologia é identificada na Sintaxe como um vício de linguagem, entre o barbarismo, o solecismo, a cacofonia, o eco, o arcaísmo, o neologismo.
[14]Ver LINS,1963,p.361, e a Politique, v. I p.7 do prefácio;  ver COMTE, 1900, Síntese Subjetiva, p.755,seg.
[15]A numeração arábica do volume I da POLITIQUE inicia-se após o prefácio até a p. 24.  Depois da numeração em algarismos romanos da “Dédicace”, reinicia-se nova numeração arábica.
[16]A interdição do positivismo por M.Fichant, apud M. BRITTO, in Seminário Nacional sobre a Interdisciplinaridade,1993/94, p.64,  atesta o êxito de Comte ao fazer com as incipientes ciências de seu tempo a filosofia da ciência, alvo de atenção e de debate.
[17]HABERMAS, 1982, refere-se com frequência ao êxito de Comte na metodologia das ciências:p.16,27,78,92,93.
[18]Os Opúsculos de filosofia social estão traduzidos para o português. Ver COMTE,1972
[19]CAIO PRADO Jr.,1986,p.104.
[20]JAPIASSU,MARCONDES,1989,p.99
[21]MORENTE,1966,p.31.
[22]Aforismo formulado em 1817, aos 19 anos de idade.  (Política, v.IV,apêndice,p.II)
[23] MARITAIN, 1977,Problemas da filosofia moral,p.40
[24]Sílvio Romero percebeu o emprego do método de pensar positivo em Tobias Barreto, classificando-o de “positivista a contra-gosto” ao usar contra Comte os meios comtianos de pensar.
[25]ASSIS BRASIL, 1927, refere-se à “democracia exagerada, que se confunde com a demagogia”.
[26]LITTRÉ 1864, p.259, refere-se à força, à novidade e à grandeza da expressão no estilo de Comte.
[27]Seria ele o “último idólatra da razão”. Ver, no prefácio, HÜHNE,1995,p.7
[28]A referência  é  feita  na Politique Positive, III,559,   sendo ele o rei   Francisco I de França (1494-1549), na batalha de Pávia, em 1525, onde foi feito prisioneiro.  Reinou de 1515 a 1547.
[29]Vejam-se os textos, por exemplo: Na Philosophie, v. IV, p 33,53,60; v.V, p 331; v. VI, p 38.  Na Politique,   v. I, p 196; v. III, p 529,529,580,596; v. IV, p 333,334,381 a 384, 468, appendice 188,205.
[30]Ver in KANT,  Crítica da Razão Pura, trad. de V.ROHDEN e U.MOOSBURGER, S.Paulo, Abril, 1980
[31]Em HABERMAS, 1982,p.94, por exemplo, lê-se que a hierarquia fenomênica comtiana seria de seis ciências,da matemática até a sociologia, e não de sete degraus, com a psicologia ou moral teórica por último..
[32]Citação encontrada em  LAUBIER, 1957, p.47, aqui mostrada com a paginação verificada e corrigida.
[33]O abandono de orações adversativas de sequência no texto de Comte é a causa de enganos, como o cometido por Poppper, como ensina  OLIVA, Alberto, p.204, in ÉVORA ,Século XIX, 1992
[34]Ver  AZZI,R.,1980,192.O autor cita os positivistas  idealizando a Idade Média como a época áurea da história do Ocidente. 
[35]Ver AZZI, R.,1980, p.253 e seg., que afirma que Comte enaltece a idade média, com a concepção autoritária do Estado.
[36]Henri Gouhier apresenta St-Simon como usuário de  ghost writers,  ou jovens que para ele escreviam, cujos textos eram assinados sem ser de sua autoria e conhecimento, por vezes em teses contraditórias. Ver H. GOUHIER,1931,p.25 e 242.  Para esse biógrafo de Comte, que lhe estudou a vida detidamente, Saint-Simon teria uma ambição tão universal e variada quanto a sua incompetência.
[37]HABERMAS, 1982, p.93,94: mesmo sem citar a obra principal de Comte, a Politique, afirma que o estilo estranho do filósofo se deve a ser ele apenas um plagiador, e a criptografia seria resultante do mau ajustamento das múltiplas compilações feitas. O caráter fastidioso do texto de Comte resultaria da combinação eclética de elementos já conhecidos. Por isso corajosamente afirma Habermas  ter ele plagiado tanto a lei dos 3 estados como a hierarquia das ciências. Mas para Habermas seria original em Comte uma metodologia que coloca o progresso técnico-científico no lugar do sujeito numa filosofia científica da história. Um objetivismo que teria permanecido até nossos dias como signo de uma teoria da ciência imposta pelo positivismo de Comte.
[38] Paulo FRANCIS em sua página de jornal no O Globo de 11-06-1995 conta que o filme  “Baby doll”, de 1957,  condenado pelo cardeal Spellman, tornou-se, por isso, um sucesso de bilheteria, embora fosse um filme insípido.   Ivan LINS,1958,p.373, indica o desuso das excomunhões e do Index. A inclusão em uma ou em outra se constituem em propaganda e fama para os  prestigiados por tais antigas penalidades religiosas.
[39]Tem razão HABERMAS quando afirma não constituir o Cours de Philosophie uma síntese, in “Conhecimento e Interesse, 1982, p.90,94.  Mas não conheceu ele uma   “intricada explicação”   de Comte para referir as concepções por ele propostas a um centro comum, não absoluto, portanto demonstrável, que se lê no Système de Politique, v. I, p. 580.  Habermas busca a realização de uma síntese em torno da ontologia, por uma gnosiologia metafísica.  E não cita o Système de Politique, que parece desconhecer ou desconsiderar.
[40]DURKHEIM, The Division of Labor in Society, trad. G. Simpson, Free Press, 1947,p.358, apud ALVIN W. GOULDNER, in For Sociology. N.York: Basic Books, 1973, p. 372
[41]Ver CAVALCANTI,, Iniciação filosófica, 1914, p.210, dedicado ao Padre José Maria da Maia Mello.
 [42]Ver HABERMAS, 1982, p.96, que tem razão quando nega a unidade de síntese em Comte no Cours de Philosophie. O que foi identificado e corrigido no Système de Politique,volume I, p.580 e seguintes,  numa “explication difficile”, para reduzir as concepções humanas a um centro comum, teleológico.
[43]Ver CARNEIRO Jr. Davi,1990, Positivismo e Humanismo, p.93. Ver PERNETTA, 1957, Filosofia Primeira,  p.24.
[44] OLIVA, Alberto, 1992, explica bem essa deformação semântica posta indevidamente na epistemologia de Augusto Comte.
[45]A verdade é um fato social, o saber tem caráter coletivo. Essas teses de Comte são suficientes para colocá-lo ao nível dos maiores mestres do pensamento humano, diz GOBLOT in UTA, 1928, p.XVI.
[46] Ver in COELHO, Lúcia, 1980  o estudo das funções psíquicas segundo Comte, p.73
[47]CRUZ-COSTA,1959, p.73: a sua Moral está esparsa em toda a obra de Comte, sem contornos, pouco definida em seu método ou nos seus princípios.
[48]PIAGET,1950, v. II, p.300,  declara a sociologia de Comte insuficiente , com preconceitos anti-psicológicos.  CLARK,1973,na p.169,170,  afirma que Augusto Comte errou ao deixar de incluir a psicologia em sua lista de ciências.
[49]Refere-se esse autor às teses heideggerianas sobre a  técnica  como violência exercida sobre o   Ser,   que   ‘provoca para produzir’,   foram retomadas pela escola de Frankfurt e difundiram-se através dos textos de Adorno, Horkheimer e Marcuse.  A escravidão, a opressão, passaram a depender do “caráter diabólico da conquista e sujeição do mundo material.” ROSSI,1989, (p.12 e 13)
[50]A proposta de uma nova epistemologia encontra-se em BACHELARD, 1968. Ver sua crítica em CUPANI, 1985, p.41 a 56  e p. 100 a 104
[51]Ver JAPIASSU, 1978,p.245
[52]Fala Paolo ROSSI, 1989,p.12    “do marxismo mal digerido e os resultados do irracionalismo de Heidegger.   Seriam formas de um obscurantismo anticientífico e seguidores da mística da vida disfarçados de pensadores revolucionários”
[53]V. J.Camilo TORRES,1943 e seu prefaciador E. CANNABRAVA apresentam a crítica mais severa, na postura metafísica e monarquista contra o positivismo comtiano, embora sem citar o texto original de Comte, exemplificando bem o enganoso embrulho feito em leituras de segunda mão. Mesmo em segundas  mãos ortodoxas e apostólicas.  E foi o maior conjunto de erros num só livro.   Camilo, assim, colaborou, em muito, por sua colossal reunião de erros, como grande auxiliar em nossa pesquisa.
[54]HABERMAS, 1982, p.93, afirma ter Comte plagiado Condorcet, Saint-Simon e outros.
[55]R. AZZI, 1980, ao estudar a doutrina de Comte por meio das publicações dos apóstolos brasileiros,  conclui  ser ela um autoritarismo de Estado, contra o ideal liberal, tendo em mente o modelo da ditadura medieval. (p.258).  A criptografia apostólica parece ter sido tanto ou mais enganosa do que a da bibliografia de Comte, que não é citada.
[56]Para Toynbee, o regime católico da Idade Média é o Reich de mil e trezentos anos, um totalitarismo católico: ver TOYNBEE,1975,p.61.
[57]Ver padre Leonel FRANCA,1955, p.191.   O autor argumenta como se a lei fosse o princípio  regulador do pensamento humano por seus filósofos, quando ela refere-se apenas a cada ramo do saber; e como se a lei  impedisse a simultaneidade dos 3 estados na mente individual, o que é bem mostrado por Comte como possível e freqüente.  Notar que Franca  não cita o original, mas cita profusamente textos de segunda mão.
[58]ABEL,1972, cita a tradução de Miss MARTINEAU, de edição de 1896, que não foi possível conferir.
[59]Apud BRITTO, 1990, p.174,175.
[60]É clássica a observação de Aristóteles de que a mão separada do corpo vivo não seria mais a mão, conforme a Política, livro I, parágrafo 9, p.15.
[61]Apud  BRITTO, 1990, p.175.
[62]Ver J.Camilo de Oliveira TORRES, in “O positivismo no Brasil”, com o maior repertório de enganos devidos à criptografia comtiana de segunda mão, já que jamais cita o texto original, e apenas as publicações do Apostolado Positivista do Brasil.   Constitui o melhor exemplo do que produz a criptografia de Comte mantida fielmente nas publicações do  Apostolado, e aquela criptografia feita ingenuamente pelo leitor desatento. No caso, também sob interpretação adversa, de viés clerical e monárquico.O mesmo erro grave aconteceu ao brazilianist   BOEHRER, G.  in  Da Monarquia à República, p.230, Nota 47, que, coerentemente, diz ser a incompetente obra de Camilo Torres o melhor exame geral do positivismo no Brasil.  Sim, de segunda mão.
[63]CARNEIRO, Paulo, 1982, p.26
[64]CARNEIRO, Paulo, 1982, p27,  mostra que Comte propõe um governo presidencial, e que a palavra ditadura adquiriu conotações opostas  a que ele lhe atribuia.
[65]LINS, Ivan,1965,  Perspectivas de Aug.Comte,p.208
[66]ARROW, 1963, p.59,93,95
[67]Não é o que diz  Jean Piaget, afirmando que a lingüística saussuriana teria sido a primeira em dar um estatuto positivo à oposição relativa entre as considerações sincrônicas e diacrônicas em ciências humanas. V. PIAGET, 1970, p.273  
[68]A conciliação da ordem com o progresso, indicada pela preposição  ADITIVA “e” não apresentaria a dificuldade de um conflito sem solução, como indicado por Brunschvicg, apud BRITTO, 1990,p.177.
[69]HAYEK, 1977, p. 17,158.
[70]GOUHIER, 1933, pp. 238,239.
[71]CRUZ COSTA, 1959,p.XVII:  Comte seria romântico, ao pretender a evolução social sem a violência da revolução.  Cruz Costa  pretendeu usar no comunismo a base intelectual do  positivismo de Comte.
[72]Ver VERDENAL, 1974, p.35, sobre o espiritualismo oficializado na França.
[73]Ver HABERMAS, 1982, p.93,94: que acusa Comte de plágio.  Seria então um plagiador “às claras”, uma vez que ele sempre indica as fontes usadas.   E Habermas acha que a dificuldade do estilo no filósofo decorreria exatamente por ser o texto, então, uma colcha de retalhos.
[74]LITTRÉ, 1864, p.259 cita como exemplo o texto onde Comte chama a seqüência de príncipes medíocres e inferiores a sua função política de   “o vulgar dos reis”, numa oposição dos dois termos, vulgar e rei,  de verdadeira beleza.  Refere-se ainda à força, novidade e grandeza de expressão do estilo comtiano.
[75]Ver a apreciação de VERDENAL, in CHATELET, 1974, História da Filosofia, vol. VI,p.39
[76]VERDENAL, in CHATELET, 1974, p.41. Em Royer-Collard a acusação é contra os fazedores de sistemas:p.43. 

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